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Capítulo  2:   Pode a política ser pensada? 58

2.9.   Dialética ou Dualismo 108

Esta disjunção radical entre filosofia política e metapolítica decorre da temporalidade própria que Badiou prescreve ao pensamento filosófico na sua relação com os processos reais que o condicionam, como foi acima examinado. Se à metapolítica lhe cabe extrair as consequências de políticas concretas e traçar as suas consequências no mundo, é porque, como referimos, a filosofia, em Badiou, é sempre segunda em relação aos processos reais de verdade. Esta temporalidade, quanto aplicada ao pensamento da política, tem algumas especificidades.

Esta sequencialidade não deixa de levantar sérias questões em termos de articulação entre prática e teoria. Se é verdade que a filosofia política corre o risco de se limitar a um mero exercício de juízo e discussão num suposto espaço público, o carácter secundário da metapolítica em relação ao real pode condená-la à inoperância política, a ser a eterna espectadora. Interrogar as razões desta inoperância implica questionar os próprios fundamentos da tradução, na política, da ontologia de Badiou.

Um dos aspectos mais problemáticos da filosofia de Badiou pós-1988 é a da articulação entre os conceitos de situação ou estado da situação e de acontecimento ou, mais precisamente, a insuficiência do pensamento dessa articulação. Pode sustentar-se que existe no pensamento badiouano uma discrepância acentuada entre, por um lado, ações que se mantêm no movimento lento da inércia das realidades de um estado da situação e, por outro lado, acontecimentos que irrompem numa cena estática, com a consequência de despoletar trajetórias de transformação que rompem com, e estilhaçam, as realidades estagnadas do estado das coisas.

Esta dicotomia drástica separa as dinâmicas temporais e os ritmos dos processos sociopolíticos entre meras ações envolvidas no fluxo contínuo de uma dada realidade estruturada, (i.e. a stasis da repetição) e atos grandiosos resultantes de acontecimentos, que emergem com uma velocidade imensuravelmente infinita na aparência (uma velocidade que a cronologia não consegue captar) de modo a explodir a ordem do estado num gesto instantâneo de ruptura (i.e. a kinesis do devir). Resumindo, um gesto

genuinamente transformador é apenas aquele que se subtrai à ordem da existência quotidiana. É nesta divisão que encontramos o principal limite ao potencial da filosofia badiouana em fazer sentido dos processos de mudança política.

Esta separação rígida entre as operações ligadas ao funcionamento dos mundos quotidianos e aquelas ligadas a processos de verdade tem como consequência a impossibilidade de se pensar as condições de ruptura e de transformação política a partir de uma determinada situação, nomeadamente a partir de uma situação pré-acontecimento. É esta separação rígida que levou a críticas, como a de Daniel Bensaïd, de que a política Badiouana é uma nova teologia, com o acontecimento no lugar do milagre ou do messias181.

Em entrevista concedida em 2005 a Bruno Bosteels182, em resposta a objecções como a de Bensaïd, Badiou afirma que o que lhe interessa é pensar o acontecimento a partir da situação, é pensar justamente a articulação entre ordem e acontecimento, e não postular duas ordens radicalmente divergentes. Numa fórmula sucinta, mas esclarecedora, Badiou afirma que, na expressão que dá título à sua obra mais importante - O ser e o Acontecimento - o mais importante é a conjunção que une os dois termos, o « e ».

Essa conjunção é operada na ação do sujeito de uma verdade política, nas operações que consistem em trazer à situação a novidade introduzida pelo acontecimento, por forçar na situação as consequências do acontecimento, resumindo, na fidelidade de um sujeito. Mas a saída de Badiou deste impasse teórico leva apenas em conta o tempo pós- acontecimento. O problema continua a ser a falta de qualquer relação entre o acontecimento e a ordem pré-acontecimento da situação.

Badiou procura pensar a política para além da dialética entre potência e ato, entre possibilidades não realizadas e realização dessas possibilidades, de modo o que o novo não seja entendido como realização de possibilidades

181 Cf. BENSAÏD, Daniel, « Alain Badiou et le Miracle de L’Évenement », in Résistences:

Essai de Taupologie Générale. Fayard, Paris, 2001, pp. 143-70.

182 Cf. BOSTEELS, Bruno, « Can Change be Thought?: A Dialogue with Alain Badiou » in

RIERA, Gabriel (Ed.), Alain Badiou: Philosophy and its Conditions, State University of New York Press, 2005, pp. 246-255.

que o existente já encerrava em si. Mas fá-lo mantendo o privilégio fundador do ato, o que resulta numa absolutização da figura do acontecimento, que o seu pensamento, até agora, não conseguiu evitar.

A intenção de Badiou é clara: evitar as formas de historicismo que reduzem o acontecimento a variáveis sociais, explicáveis pelo jogo de posições num todo estratificado e portanto assimiláveis ao tempo histórico contínuo e mensurável da cronologia oficial. Mas essa subtração ao tempo linear e cumulativo da história é feita à custa de uma não-relacionalidade total entre a ordem da existência, onde os homens vivem e agem todos os dias, e um acontecimento disruptor das coordenadas simbólicas que regem essa ordem. Fora de uma dialéctica entre acontecimento e situação, poderá haver alguma eficácia política no próprio pensamento da política?

Curiosamente, este dualismo aproxima, de certa forma, Badiou de Kant. Se a filosofia teórica de Kant limita o conhecimento ao campo da experiência possível, a sua teoria moral ordena o homem a uma liberdade que não se deixa submeter a nenhuma condicionante empírica ou interesse particular. É um domínio do humano subtraído à causalidade empírica, regido pelo formalismo universalista do imperativo categórico.

A divisão entre o domínio do empírico e da causalidade, e uma ordem de liberdade submetida apenas à autonomia do sujeito, fundada em princípios estritamente universais não está próxima da conceção badiouana de política, também ela subtraída do jogo das particularidades e dos interesses? Do mesmo modo, a injunção ética por excelência de Badiou: manter a fidelidade ao acontecimento e não ceder às pressões da ordem dominante ou ao egoísmo individualista, não deixa de ter ressonâncias da concepção Kantiana de dever183.

É verdade que para Kant a autonomia é uma dimensão constitutiva de todos os seres racionais, enquanto que, para Badiou, a liberdade é uma exceção ao que existe. Temos também de ter em conta que o conteúdo do universalismo adquire formas radicalmente diferentes nos dois autores, uma vez que a universalidade de uma prescrição política não resulta, em Badiou, de um ditame da razão pura prática, que é um fundo comum da humanidade,

183 Cf. HALLWARD, Peter. « Badiou and Kant », in BARTLETT, A. J. e CLEMENS, Justin

mas sim de uma intervenção localizada e singular. Encontramos porém, em ambos, o mesmo gesto ordenador da prática humana segundo uma ordem prescritiva, incondicionada pelo domínio dos interesses e das relações.

Apesar do seu auto-professado anti-humanismo, há uma antropologia em Badiou, no sentido em que o domínio da verdade, cuja hipótese é inaugurada por um acontecimento, é reserva do animal humano.

Podemos dizer que, enquanto Kant pergunta Que é o homem? < Was ist der Mensch? >184, Badiou perguntaria o que pode ser o homem? Ou, que ao seu anti-humanismo teórico corresponde, de certa forma, um humanismo prático. Mas um humanismo em que a humanidade em causa permanece uma hipótese, sempre em aberto, e nunca uma garantia associada à espécie, nem sequer uma possibilidade, a não ser que seja a possibilidade de uma impossibilidade

184 BARATA-MOURA, José. Kant e o Conceito de Filosofia. Com um texto em apresentação

bilingue extraído da « Lógica ». Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. 2007,