• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5. Possibilidades e alternativas no atendimento ao jovem autor de ato

5.2 As contribuições da Educação: a educação como estética da existência, da possibilidade

5.2.1 Dialogando com os autores

A negação das condições e das possibilidades dos homens de serem mais reforça os mecanismos de dominação e promove a dualidade da relação homem-mundo, alienando-o do seu poder de criação e inibindo-o. Tal negação faz com que os homens estejam simplesmente no mundo e não com o mundo e se tornem espectadores da existência de outros. Verifica-se a negação da educação enquanto processo de busca do homem de ser mais e também um processo de negação da sua vocação ontológica de humanizar-se. Representada por uma cultura do silêncio, tal concepção de educação, no dizer de Freire (2001a), coloca-se como instrumento de manutenção e estímulo da contradição opressor-oprimido e como instrumento de alienação.

Freire (2001a) apresenta os pressupostos da Educação como prática de liberdade, possível na medida em que a concepção da educação como processo de dominação seja superada. Tal superação deve ocorrer de tal maneira que ambos, educandos e educadores, simultaneamente, se reconheçam. O educador enquanto educa é educado e o educando ao ser educado também educa, numa relação que se constrói pela dialogicidade e pelo compartilhar de experiência. Nesse sentido, o educador refaz seu ato cognoscente na cognicidade dos educandos (FREIRE, 2001a, p.69).

Esses pressupostos de educação, denominados por Freire de educação

problematizadora e dialógica, concebem homem, mulher, criança e adolescente como seres

concretos e históricos, como sujeitos que pensam autenticamente, sujeitos criativos, inseridos num contexto de busca pela emancipação, sujeitos que reconhecem a sua vocação ontológica

de ser mais e de humanizar-se, em outras palavras, pessoas inconclusas e conscientes de suas inconclusões.

De acordo com Freire (2001a; 2001b), a consciência que os sujeitos têm de sua inconclusão os inscreve em um permanente movimento de busca pela possibilidade de serem mais nas práticas sociais das quais fazem parte. Desse modo, para Freire a educação em sua essência, assume a responsabilidade de produção do homem que, para se produzir necessita conquistar-se, conquistar a sua forma humana.

Nesse caso, a educação que se quer autêntica não deve ser compreendida como algo a ser depositado nos homens. Ela deve sim responder ao constante movimento de reflexão e ação dos homens sobre a realidade que os cerca e sobre as relações deles com o mundo. Isso só é possível pela concepção de educação que os situa como sujeitos ativos e investigadores críticos de todo o processo de educar-se e de todo o processo de "desvelamento" do mundo. Concebe-se, desse modo, a educação como prática de liberdade, a qual se faz mediante a dialogicidade.

Existir humanamente, afirma Freire, é pronunciar o mundo, é decodificá-lo, para assim modificá-lo. Ao pronunciar o mundo, os sujeitos criam e recriam suas histórias. Nesse sentido,

[...] o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 2001a, p.79)

Freire concebe, na relação dialógica, a possibilidade de forjar uma pedagogia com o oprimido e não uma pedagogia para ele. Sendo, portanto, o diálogo uma exigência existencial da condição humana, o ato de educar-se, de refletir e agir sobre o mundo não deve pautar-se ou reduzir-se ao ato de depósito e imposição de ideias de um sobre o outro, nem reduzir-se a simples troca de ideias a serem consumidas, mediante o uso de palavras destituídas de suas dimensões de ação e reflexão (FREIRE, 2001a).

É por meio do diálogo que os homens irão criar relações horizontalizadas, de confiança um no outro. Na dialogicidade homens, mulheres, crianças, jovens têm condições de recuperar a sua humanidade roubada, de solidarizarem suas reflexões e suas ações pela busca de sua liberdade.

Freire (2001b) defende que a educação como prática de liberdade pode ser desencadeada em diferentes práticas sociais, posto que uma educação que se diz

humanizadora e libertadora parte do saberes de homens e mulheres, crianças e jovens, de suas experiências, do estar-com-o-mundo, saberes e experiências que são centrais ao desencadeamento de processos educativos. Para ele, a prática educativa é uma dimensão necessária à prática social. Tanto a prática social quanto a prática educativa guardam em si riquezas e complexidades por serem fenômenos especificamente humanos.

De acordo com Freire (2001b), homens e mulheres arriscam-se, aventuram-se, educam-se no jogo da liberdade conquistada no interior de suas relações. Ao inventar sua existência com os materiais que a vida lhes oferece, homens e mulheres descobrem, nas práticas sociais das quais fazem parte, suas possibilidades, o que implica uma liberdade não recebida, mas criada, e pela qual tiveram que lutar.

A este respeito, Fiori (1986) argumenta que o homem não pode libertar-se se ele mesmo não protagoniza a sua história, se não toma sua existência em suas mãos. É nesse sentido que o autor reafirma a função conscientizadora da educação, a constituição da consciência como existência. Para o autor a conscientização diz respeito a um processo de constituição da consciência mediada pelo encontro com o outro, junto com o outro e com o mundo. Ou seja, eu me constituo no encontro com o outro, nas interações.

Nesse sentido, “a consciência é para si, sendo para o outro: simultaneamente, implicadamente, dialeticamente” (FIORI, 1986, p.4). A significação do mundo consiste num processo ativo, num movimento dialético da consciência do mundo ou do mundo consciente. Segundo Fiori (1986), o mundo não pode refletir-se na consciência, antes de ser mundo consciente e a consciência não pode ser determinada pelo mundo, antes de ser consciência do mundo.

O sujeito ao ser transformado em objeto de outros e ao não ter a sua subjetividade reconhecida pelos outros, torna-se alienado. Mesmo assim, o autor aponta para o fato de que, por mais ferozes que sejam algumas práticas de dominação, elas não são capazes de coisificar totalmente o homem, impossibilitando-o da práxis libertadora, práxis da existência enquanto processo de criação, de valorização, historicização e humanização. O ato de re-produzir a si e ao mundo e o despertar do homem novo consistem na principal função da educação.

Tais pressupostos da educação como prática de liberdade e como possibilidade do homem conscientizar-se e humanizar-se dialogam com os pressupostos de Dussel (2002), levando-se em consideração que o ponto central da ética da libertação é a defesa da universalidade da vida, da corporalidade e alteridade das vítimas, da possibilidade de elas serem mais.

Para Dussel (2002), as vítimas, ao reconhecerem sua alteridade e tomarem consciência das relações de dominação e exclusão, terão condições de refutar os valores do sistema vigente, o projeto de vida dos poderosos, as relações que estabelecem a negação e a má vida de milhares de povos latino-americanos, tornando-os vítimas da exclusão e submersos em um contexto de dor, infelicidade, pobreza, fome e injustiças sociais.

A ética da libertação consiste na identificação e reconhecimento da pessoa que deve ser libertada: não só o índio, a mulher, o homem, as crianças, os escravos, os assalariados, os povos latino-americanos, mas também todos aqueles que estão negados em sua condição de “ser”. Para o autor, faz-se premente, na atualidade, promover a crítica, de maneira ética, sobre as condições que oprimem os seres humanos, partindo da análise do modo como são produzidas a negatividade de suas existências e desencadear uma análise das causas dessa negação, do ponto de vista da razão ético-crítica, apoiada na alteridade das

vítimas (DUSSEL, 2002, p. 315), uma vez que a crítica a essa negatividade parte única e

exclusivamente das vítimas.

Tal processo implica o reconhecimento do outro como outro. Nesse sentido, mudam-se as perguntas: “quem são as vítimas, por que são vítimas, em que circunstância de fato concretas, etc.?” (DUSSEL, 2002, p.373). O reconhecimento do outro pressupõe a ética da vida. Há por parte de Dussel uma preocupação permanente com a afirmação da vida.

A primeira condição de possibilidade da crítica é, então, o re-conhecimento da igualdade do outro sujeito, da vítima, a partir de uma dimensão específica: como vivente. Este “conhecer” um ser humano a partir da vida; este “re”- conhecê-lo “a partir de” sua vulnerabilidade como vítima. [...] A vítima é um vivente humano e tem exigências próprias não cumpridas na reprodução da vida no sistema. A responsabilidade pelo outro, pela vítima como vítima, é igualmente condição de possibilidade, porque em sua origem, o destituído não tem ainda capacidade para pôr-se de pé. (DUSSEL, 2002, p.375)

Essa responsabilidade mútua, esses princípios para uma ética da libertação tornam-se possíveis mediante uma comunidade constituída pelas próprias vítimas que, nas palavras de Dussel (2002), se reconhecem como dignas e se afirmam como autorresponsáveis por sua libertação. A comunidade intersubjetiva das vítimas que se reconhecem negadas pelo sistema possibilitará validar os discursos sobre uma práxis libertadora, marcando o surgimento da “consciência ético-crítica” de afirmação da vida humana e da exterioridade do outro. Isso só será possível mediante a articulação entre teoria e práxis, uma práxis de libertação, construída por essa comunidade.

O ponto principal para essa articulação é uma pedagogia constituída nas relações intersubjetivas e dialógicas dessa comunidade. O processo de libertação propõe uma ética pedagógica que tem como pressuposto a educação com prática da liberdade, inspirada nos valores e na cultura, dentre outras possibilidades de alteridades, alteridades que há muito tempo têm sido desprezadas pelas relações totalizadoras do sistema vigente. É o educar-se no encontro de alteridades e de culturas, no encontro do "ser" com os outros, numa relação de exterioridade – frente a frente –, na qual se reconhece, se valoriza e se respeita o outro, e que transcende as determinações impostas pelas relações de totalidade (DUSSEL, 1998).

A libertação não se dá somente no nível intelectual, mas, sobretudo, na ação que está intimamente ligada à reflexão. Desse modo, a educação libertadora vê oprimidos como homens capazes de pensar certo, sendo necessários o estabelecimento de uma relação dialógica permanente e o desenvolvimento de práticas sociais e processos educativos que tenham co-intencionalidade, que tenham como principais pressupostos a vocação ontológica e histórica do homem de "ser mais" e a capacidade de restaurar suas subjetividades e de forjar alteridades.

Dessa consensualidade crítica das vítimas se origina um paradigma teórico-prático de desconstrução dos valores vigentes, por meio de um processo de tomada de consciência ético-critica de sua negatividade, de sua impossibilidade de “ser” mais. A comunidade das vítimas em relações de intersubjetividade e dialogicidade poderá compartilhar práticas afirmativas em diferentes contextos nos quais se vê negada em sua subjetividade (DUSSEL, 2002).

Dussel (2002; 2005) denuncia a produção de teorias e pensamentos que de algum modo subvencionaram e justificaram a exploração dos povos latino-americanos e as relações de dominação. De acordo com seus pressupostos, a ciência crítica é possível, desde que se paute em uma ética da vida, de reconhecimento das vítimas. Implica reconhecer que elas têm um nome, têm rostos e têm vozes. Um discurso ético-crítico, marcado pela positividade – no sentido de afirmação – tem como referência o reconhecimento das diferentes situações e práticas humanas de dominação e exploração e de produção do “não-ser”. Dussel defende, portanto, uma ciência ético-crítica com características próprias dos rostos latino-americanos e não mais resultante de uma lógica do “sistema-vigente”.

Escutar a voz do outro se coloca como um dos pontos centrais para o reconhecimento da vítima e superação das condições que a oprimem. A revelação do outro por meio de sua própria palavra, representada, sobretudo, por clamores de justiça, pela sua posição de poder falar por si mesmo e pela possibilidade de romper com as relações que os

oprimem, compõe os princípios e pressupostos de educação defendidos por Dussel, Fiori e Freire. É nesse sentido que é possível dialogar com tais autores, de modo a pensar em alternativas no atendimento ao adolescente autor de atos infracionais.

Reconhecer no adolescente que infraciona as condições de dominação significa reconhecer as condições de produção da negatividade, as falhas e as injustiças. Como afirma Dussel (2002, p.382), “para que haja justiça, solidariedade, vontade diante das vítimas é necessário ‘criticar’ a ordem estabelecida para que a impossibilidade de viver destas vítimas se converta em possibilidade de viver e viver melhor”.

Documentos relacionados