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3 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA: OS ACHADOS DA PESQUISA DE

3.3 Dialogicidade

Exercitar a participação exige dos sujeitos construtores do processo pedagógico a disposição para colocar-se em uma postura de aprendizes de sua própria realidade, de sua própria história. Neste caso encontra-se intrínseca outra dimensão da proposta da Educação Popular, a dialogicidade. Presente de forma implícita entre os objetivos de nossa pesquisa, emergira com maior freqüência nas entrevistas que se seguiram abordando o cotidiano das salas de aula no assentamento. Buscamos então ir aprofundando a compreensão vigente a priori entre as educadoras sobre esta categoria.

Na sala de aula com diálogo nós procurava mais conhecer, ter um conhecimento dele, o conhecimento que ele passava. Eu escolhia um texto que motivasse ele a vir à sala de aula, que eles estavam lá não só para aprender mais para ensinar também. Alguns já são velhos e eles dizem que para aprender já é tarde demais. Alguns problemas a gente resolve lá, alguns falam os problemas que tem e o pessoal tenta resolver, ajudar a eles e colocar as coisas deles em comum (Educadora Rocileide).

Inicialmente consideravam a dialogicidade - caso utilizássemos somente a palavra diálogo em nossas colocações ou perguntas – enquanto momento específico durante a aula, de fundamental importância, reservado para uma espécie de conversa entre ela e os educandos e destes últimos entre si. Representava principalmente para alguns educandos e educandas, a oportunidade de socialização, mesmo com pessoas que residem na mesma localidade, mas que encontraram na sala de aula um espaço de encontro e crescimento.

De acordo com Paulo Freire (2000) a dialogicidade consiste em uma postura de reconhecimento da experiência fundante de sermos inacabados. Seu fundamento pedagógico é a abertura, imprescindível para que o educador e educadora compreendam a importância inegável sobre nós e nossos educandos do contorno social, econômico e ecológico. Isso também exige curiosidade permanente sobre a visão de mundo, valorizar as capacidades de saber o mundo dos educandos e atenção para o movimento constante da história.

Portanto, Freire orienta superar a noção de diálogo como somente uma conversa, como utilizado em nosso vocabulário e compreensão cotidianos. O diálogo é um pensar crítico sobre nosso contexto e nossas posturas, que exige de nós ao menos o “respeito às diferenças entre mim, eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas” (p.152).

Como meio de elevar a auto-estima, insistia nas potencialidades para a aprendizagem da qual os educandos eram portadores, procurando incentivar sua participação. Valorizando as opiniões de cada pessoa, reforçava a participação através da fala, demonstrando a eles próprios que possuíam essa capacidade de aprender e sobretudo de socializar experiências que geravam reflexão e aprendizagem para as outras pessoas presentes.

Essa troca de saberes se concretizava no compartilhamento de problemas, colocando as dificuldades pessoais e até mesmo diárias da comunidade, tornando-se momento rico em conteúdo. Enquanto método de trabalho, contribuiu para ações colaborativas entre os alunos e resultou em desinibição e espontaneidade por parte dos educandos, em sala de aula e outros locais, como reuniões da associação do assentamento e na execução de tarefas na sede do município.

Aqui no assentamento existe uma acomodação muito grande, que eles deixam as coisas irem passando, quer dizer está bom do jeito que tá e não tentam mudarem. A escola contribui um pouco mais, é uma coisa na sala de aula todos concordam discutem, diz a opinião deles. Uma coisa bem diferente do que eles fazem e eu questionava assim aquilo não era pra ser só discutido tinha que ser posto em prática.(Educadora Evanir).

Dessa forma, também, a educadora adquire melhores elementos para conhecer a opinião dos alunos sobre diversas questões e principalmente seu cotidiano, causas de desânimos, das ausências, suas reais motivações para estar em sala de aula. Ajuda em sua prática, compreendendo os níveis de aprendizagem e de informação em que se encontram os educandos, podendo atender necessidades e superar dificuldades. Contribui também, segundo alguns depoimentos, para avaliar seu próprio método de ensino.

No entanto Freire (1992, p. 122) alerta para a utilização do diálogo somente enquanto técnica para obter resultados ou uma espécie de estratégia para conquistar a amizade dos alunos e alunas, tornando essa dimensão uma manipulação. Com esta preocupação, o autor prossegue reiterando a tese de que o diálogo é constituinte da própria natureza histórica da humanidade, no caminho necessário de tornamo-nos seres humanos criticamente comunicativos.

Na acepção de Freire (1987) o diálogo é um fenômeno essencialmente fundado num intenso sentimento de amor ao mundo, de humildade perante a existência das outras pessoas no mundo, confiança crítica e esperançosa nos seres humanos. Este amor gera compromisso, testemunho concreto e nunca autoritarismo, mas sim libertação. Abrir-se ao mundo e aos outros implanta essa prática e revela a inquietação e curiosidade diante dos rumos em que a história se movimenta. O pensar criticamente a realidade como processo histórico, não como algo estático, é constituinte da concepção de diálogo em Freire, e pressupõe também a comunicação progressista sem a qual não há verdadeira libertação.

O diálogo, mediatizado pela palavra e por seus elementos constitutivos, é formado por duas dimensões estritamente solidárias, a ação e a reflexão. Freire identifica como práxis ou palavra verdadeira que ao ser pronunciada solicita a transformação do mundo. A dicotomia desses dois elementos, inadmissível na perspectiva da educação progressista, pode gerar formas inautênticas de pensar

e de existir. A existência que se qualifica como humana, somente poderá fazer jus a esse adjetivo se, ao pronunciar o mundo, intervier através da práxis para modificá-lo.

Nessa perspectiva a pronúncia do mundo constitui-se como direito de todos os homens e de todas as mulheres. Na assertiva reside o significado da expressão diálogo: o encontro entre os seres humanos, mediatizados pelo mundo para pronunciá-los, individual e coletivamente, ampliando sua significação enquanto seres humanos. Esta relação de reciprocidade do ato de agir na pronúncia do mundo, não pode ser reduzido a uma troca alienada e alienante ou ação de tornar as pessoas depósito de idéias, mas sim resultar em compromisso com a conquista criativa do mundo para sua transformação.

A construção do conhecimento, que possui inegável aspecto individual, somente efetiva-se através de sua dimensão coletiva. Neste caso o ato de conhecer não pode prescindir da comunicação, enquanto símbolo do diálogo que segundo Freire, “sela” a relação entre os sujeitos para a transformação da sociedade. A mudança do mundo passa pela noção de comunicação democrática, ou seja, consiste no processo de constatação ou afirmação das próprias relações humanas, os centros de interesse desses relacionamentos e a sociedade na qual encontram-se inseridos. Deste modo, altera o pressuposto de que o conhecimento é objeto do qual somente alguns seres envolvidos em sua construção possam tomar posse: este mesmo conhecimento está posto como mediador da relação de aprendizagem entre os sujeitos. A noção de apropriação do conhecimento supracitada não nega a experiência gnosiológica56 que o

educador se utiliza para selecionar seus conteúdos. O que se afirma é que o acesso e elaboração do objeto de estudo não significam o esgotamento de todas as possibilidades desse objeto, o que implica a relação democrática entre educando e educador na investigação sobre esse objeto.

A prática desenvolvida pelas educadoras pesquisadas possui elementos que merecem algumas considerações. Como percebido pelas falas expostas, as condições enfrentadas pelos assentados de Ipueira da Vaca são adversas em todos os sentidos. Embora possuam certo nível de organização, a luta diária para reproduzir a existência e mesmo atribulados pelas dificuldades exige dos 56 A experiência gnosiológica de acordo com Freire é a relação que o educador estabelece com a

trabalhadores e trabalhadoras rurais a auto-descoberta enquanto sujeitos e que expressam essas dificuldades agora, a partir da presença da sala de aula do Pronera.

Os aprendizes e ensinantes de tantos saberes começam um processo de compreensão e de resignificação de suas vidas e das dificuldades enfrentadas, a partir dos temas sugeridos em sala pela educadora. Ao desenvolver essa metodologia, os educandos e educandas discutem suas necessidades e elaboram uma das dimensões do diálogo: a de descobrirem-se portadores de um outro diálogo, à sua maneira mas que se manifestou em outros espaços, antes não imaginados pelos próprios agricultores produtores daquele lugar. Acredito que a noção de diálogo já aparece como uma construção, pois a educadora chama à reflexão. Revela a professora:

Eu acho assim que até mesmo dentro da sala de aula existe pessoas que é inibida, que está assim na assembléia da associação e não quer fala por achar que ele não está certo, ta falando errado. E na sala de aula que ele está com as pessoas, que ele convive todos os dias, ele fica mais à vontade pra falar expressar suas opiniões contar uma brincadeira e dessa maneira. Aí quando ele vai pra reunião, ele pode se sentir mais à vontade para colocar suas opiniões e até questionar alguma coisa. Eu acho que também ajuda nesse sentido (educadora Evanir).

Do lugar do novo diálogo, nasceram além da nova postura ou da postura sempre sonhada mas nunca expressa pelos agricultores e agricultoras, outros discursos extremamente pertinentes ao assentamento. Desenvolveu-se nos assentados a compreensão de sua importância enquanto construtores do lugar em que vivem, ou seja, enquanto responsáveis pela permanência ou mudança de determinados condicionamentos aos quais estiveram submetidos durante a sua história.

A questão do lixo a gente trabalhou lá a gente viu que não podia ser jogado a céu aberto. Mas é assim que vocês estão fazendo? Eles diziam não, não é assim que nós estamos fazendo. Mas a gente tem que mudar não pode continuar desse jeito. Aí a gente viu que uns tomaram cuidado melhor e outros continuaram do mesmo jeito é por isso que eu acho as nossas aula tenha dado tanto resultado. A acomodação existe, a gente faz por onde mudar ... mas as vezes eles se acomodam muito! (Educadora Evanir)

3.4 A concepção de política para educadoras e educandas de Ipueira