• Nenhum resultado encontrado

Dialogismo e Memória de Futuro

Memórias Tupi sobre a lua: Sahy, Zahy Jahy, Jac

4.1.2. Dialogismo e Memória de Futuro

Para Bakhtin, o enunciado conhece outros contornos, que não apenas a inserção do sujeito como pessoa na linguagem. Ele está ligado a uma cadeia discursiva, que pressupõe uma memória, onde há uma negociação de sentidos, como explicita a afirmação seguinte:

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra ―resposta‖ no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-se como conhecidos, de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN: 2003, 297)

E toda a ―esfera da comunicação discursiva‖ em que se situam os enunciados, os sujeitos e, por consequência também a memória, constroem-se a partir de signos ideológicos:

Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem no processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social. (BAKHTIN :1999, 34)

Para o Círculo de Bakhtin, na Rússia, nas primeiras décadas do século XX, a memória é um processo complexo e está relacionada às definições de signo, enunciado, dialogismo, memória do passado e memória de futuro.

Sem dúvida alguma o pensamento bakhtniano alicerça-se em dois pilares: a alteridade, pressupondo-se o Outro como existente e reconhecido pelo ―eu‖ como Outro que não-eu e a dialogia, pela qual se qualifica a relação essencial entre o eu e o Outro. Evidentemente assumir a relação dialógica como essencial na constituição dos seres humanos não significa imaginá- la sempre harmoniosa, consensual e desprovida de conflitos. (GERALDI: 2007, 42)

O processo em que a memória se constitui também é dialógico e acontece entre eu e o Outro, numa relação marcada por juízos de valores que se constituem a partir do contexto social e histórico e da posição que estes sujeitos ocupam nos diferentes grupos sociais.dos. Eu não me dissolvo com o Outro, eu me constituo com ele, a partir das cadeias ideológicas em que estamos envolvidos. Para Bakhtin (2003: 117):

Ninguém pode ocupar uma posição neutra em relação a mim e ao outro; o ponto de vista abstrato-cognitivo carece de um enfoque axiológico, a diretriz axiológica necessita de que ocupemos uma posição singular no acontecimento único da existência, de que nos encarnemos. Todo juízo de valor é sempre uma tomada de posição individual na existência.

Mas a memória conhece duas perspectivas diferentes para Bakhtin: a memória do passado e a memória de futuro. ―Para mim, a memória é a memória do futuro, para o outro, a do passado [...] Em que consiste a minha certeza interior, que me apruma a coluna, me levanta a cabeça, me faz olhar para frente?‖ (BAKHTIN, 2003: 115). A memória do passado é do outro. Em relação às sociedades indígenas, é a memória que os não-índios contaram sobre elas. O outro conta uma história selecionada, estetizada, pronta e acabada, livre do por-vir.

A memória de futuro é que é minha, pois apenas eu não estou livre do por-vir, o que permite que eu funde no futuro a minha própria memória. É memória que eu, como um ser sempre inacabado, projeto no futuro, a partir dos meus próprios atos responsivos diante da existência. Ela é baseada em cálculos de possibilidades daquilo que quero realizar e posso realizar.

Uma das mais conhecidas narrativas Guarani, ―A Terra se Mal‖ propõe que os índios devem procurar uma terra melhor para viver, onde não haja doença, fome, pobreza. A busca desta terra e o que eles vão viver nela se projeta em uma memória de futuro dos Guarani. Se pensarmos que é uma busca social, neste sentido, podemos também pensar em

uma memória coletiva de futuro. Em relação à Terra sem Mal, este futuro não pode ser contado pelo não-Guarani, pois é um tempo particular de realização social, que inclusive pode não acontecer. Não é o Outro que escreve esta memória. Sem memória de futuro não

conseguimos nos deslizar no presente.

Muitas sociedades indígenas vivem nas fronteiras culturais e históricas do Ocidente. A forma como reagem a este contato muitas vezes gera uma série de dificuldade com suas próprias tradições. Nestas fronteiras, a negociação com futuro às vezes toma proporções dramáticas, pois produz uma sensação de não pertencimento, isto é, não pertencem nem a uma sociedade indígena, nem conseguem inserção no mundo ocidental. A situação dos Kaiowá de Dourados, com um número elevado de suicídio entre os jovens revela esta falta de futuridade para esta sociedade.

Nas fronteiras, mas sem condições de transitar, estas sociedades começam a criar novas formas de significação, mas este processo é violento e desigual. As condições econômicas desfavoráveis e as tecnologias do Ocidente muitas vezes tornam insustentável a vida tradicional indígena. Acredito sim que é possível que estas sociedades inventem novas formas de viver, mas não podemos ignorar que para muitos índios, principalmente os mais novos, que são expostos a uma sociedade de mercado sem muita chance de concorrer às melhores oportunidades, a relação com a cultura ocidental representa uma grande dificuldade para projetarem uma memória de futuro.

Analiso nesta tese uma memória discursiva Tupi que se constitui na relação dialógica com as sociedades indígenas com que interagi, com os narradores indígenas que se dispuseram a compartilhar comigo suas histórias. Fundei entre eles uma memória de futuro que me permite, agora, escrever esta tese.