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Trazer ao debate como o pensamento ocidental foi construído, é problematizar a questão das dicotomias produzidas, tendo como um de seus expoentes o filósofo Platão.

Fuganti (2008) enfatiza que o pensamento desse filósofo busca a verdade como razão que transcende e é superior à natureza física dos corpos que a compõem. Foi na Grécia do século VI a. C. que emergiu um Estado que fora nomeado civilizado ou democrático, e estabeleceu modos de subjetivação no ocidente. Essa formação é baseada na moral, na razão e no Estado. Foucault (2005) diz que a semelhança e a unidade desde Platão caracterizam o conhecimento, ou seja, tudo aquilo que se diferencia, é colocado em oposição, produzindo dicotomias.

Porém, foi somente no final do século XVIII quando a ideia de um sexo oposto se tornou politicamente importante. A teoria do sexo único predominou desde Aristóteles (LAQUEUR, 2001 apud ZANELLO, 2018). Louro (2012) compreende que essa lógica dicotômica é problemática para a perspectiva feminista, pois parece apontar para lugares naturalizados e fixos para os gêneros. Supõe uma oposição entre os polos masculino e feminino, em que o masculino seria hierárquico, pois a dicotomia marcaria a superioridade do primeiro elemento. A única forma de pensar essa relação seria como dominação-submissão, lógica que parece perpassar as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres.

As ideias da autora dialogam com Escóssia (2014), que utiliza o conceito de dicotomia como um modo de organização que opera com termos duais, mas que não os opõem. Mulheres e homens não são opostos, mas sim seres em relação num determinado contexto histórico, que produz múltiplos modos de subjetivação. Delimitar polos dicotômicos, normatizar e hierarquizar modos de existência são fenômenos políticos produzidos por relações de poder. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).

No campo da violência contra as mulheres têm sido a maneira pela qual os movimentos feministas têm conseguido com que o Estado implante políticas públicas para o enfrentamento à violência contra as mulheres. (CAMPOS, 2011).

O documento da SPM (BRASIL, 2011b), que trata das “Diretrizes gerais dos serviços de responsabilização e educação do agressor”, chama a atenção para a nomenclatura utilizada, pois de imediato fixa o homem no lugar de agressor. Entretanto, opto por utilizar a nomenclatura “homem autor de violência”, conforme coletânea de estudos organizada por Beiras e Nascimento (2017). Além disso, o documento enfatiza que o serviço faz parte da rede de enfrentamento à violência contra a mulher, mas está vinculado aos Tribunais de Justiça estaduais e do Distrito Federal, ou Secretarias de Justiça, ou órgão responsável pela administração penitenciária.

A mesma SPM (BRASIL, 2006b), ao elaborar a norma técnica para o funcionamento dos CRAM (Centro de Referência de Atendimento à Mulher), utiliza a nomenclatura “mulher

em situação de violência”, não utiliza “vítima de violência”, demonstrando que o serviço objetiva que a mulher deixe a condição de vítima na qual se encontra. Aqui, podemos nos questionar a partir dessas duas diretrizes da SPM: afinal, para a Secretaria, a mulher tem condições de sair da sua condição de vítima, mas o homem nunca deixará de ser agressor?

Sobre a “vítima”, encontramos no Dicionário Etimológico (VÍTIMA, [2019?]) e no Dicionário de Português do Aurélio on-line (VÍTIMA, 2018), algumas definições. No Dicionário Etimológico, a origem da palavra vem do latim, victima, e era a pessoa, ou animal, imolada em holocausto aos deuses, aquela ofertada em ação de graças.

No Dicionário de Português do Aurélio on-line (VÍTIMA, 2018), “vítima” recebe cinco definições. A primeira definição está alinhada com o Dicionário Etimológico (VÍTIMA, [2019?]), ou seja, (1) Pessoa ou animal oferecida em sacrifício aos deuses ou num ritual religioso. As demais são: (2) Pessoa que morre ou sofre pela tirania ou injustiça de alguém, (3) Pessoa que foi assassinada, ferida ou atingida casualmente, criminosamente ou em legítima defesa, ou por um acidente, crime, catástrofe, etc., (4) Pessoa que é sacrifica aos interesses de outrem, (5) Tudo que sofre dano ou prejuízo.

No contexto da violência contra as mulheres, podemos pensar que essas definições produzem uma verdade sobre as mulheres que sofrem violência. O sinônimo da palavra “vítima”, de acordo com o Dicionário de Português do Aurélio (VÍTIMA, 2018) é “mártir”, que significa “Pessoa que foi submetida a torturas, a sacrifícios ou à morte por um ideal ou por uma crença; quem se sacrificou em nome da fé e de suas convicções”. Ou seja, a mulher que se sacrificou e permaneceu numa relação violenta em nome da família, de suas crenças, às vezes em função de sua religiosidade e de tudo aquilo que se espera das mulheres enquanto tidas como responsáveis pela manutenção da família.

Sousa (2017) nos mostra que, para ser reconhecida como vítima, a pessoa deve ser considerada uma vítima sofredora, ou mesmo, no caso das mulheres, uma cidadã vítima.

Há um estudo realizado no interior de São Paulo que demonstra os vários discursos a respeito da violência contra a mulher. Esses discursos foram nomeados pela autora como reguladores, contradiscursos e discursos jurídicos. (OLIVEIRA, 2014).

Os discursos reguladores dizem respeito aos papéis tradicionais que devem ser seguidos rigidamente, discursos que moralizam a conduta das mulheres. Ou seja, a safada ou a santa. A mulher que sai para “bagunçar” e deixa os filhos em casa, por exemplo. Se a mulher agir como safada, não cumprindo com suas obrigações “de mulher” de ficar em casa e cuidar dos filhos, teria merecido sofrer violência.

Os contradiscursos ou discursos de resistência foram considerados como discursos polêmicos por Oliveira (2014), visto que fogem das ideias normativas, mas não se pautam por uma ética de mudança das relações sociais. São discursos que, para se pôr em igualdade com o outro, se necessário, utilizam da violência como meio para tal objetivo, como, por exemplo, esperar o companheiro dormir para agredi-lo, visto que na força sabe que não conseguiria superá-lo, como no exemplo dado na pesquisa, “[...] eu sei que no soco não vou bater em você, mas você vai dormir, na hora em que você dormir eu te ‘lanho’ inteirinho”. (OLIVEIRA, 2014, p. 566).

Já os chamados discursos jurídicos vieram no sentido de fazer com que a mulher procurasse o sistema de justiça e conhecesse seus direitos, ao mesmo tempo que busca punir os homens autores de violência: “Cê já pensou em ir numa delegacia denunciar ele?”. (OLIVEIRA, 2014, p. 568).

Para Campos (2011), um deslocamento discursivo é produzido quando, incialmente, a vítima, antes em uma posição exclusivamente passiva, passa a ser colocada enquanto “mulher em situação de violência”, ou seja, de uma situação vitimizante é colocada em uma situação de superação. Isto é, ser vítima não é um destino a ser cumprido. Ao mesmo tempo, a autora afirma que no campo jurídico, a Lei Maria da Penha, ao colocar a mulher exclusivamente no polo passivo, mantém o dualismo de gênero.

A autora também refere que a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006a) trouxe algumas conquistas no que se refere ao rompimento da dicotomia mulher vítima/homem-agressor, ao considerar que mulheres também podem ser autoras de violência, visto que a lei considera que uma mulher lésbica que sofra violência de sua companheira pode ser amparada por esta lei.

São inegáveis as repercussões da violência cometida contra as mulheres, o que se confirma através dos números que têm sido divulgados referentes ao tema, e ao último estágio da violência contra as mulheres, o feminicídio, que tem ganhado destaque pelo aumento de situações ocorridas. Mas ressalta-se novamente que as medidas tomadas para enfrentar a violência contra as mulheres têm sido paliativas, frente ao seu complexo emaranhado de significados e práticas.

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