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CAPÍTULO 1 NEGOCIAÇÕES DO CORPO: reconhecimento, cidadania e

1.2 NEM SÓ DE LEIS SE FAZ O DIREITO: acesso às práticas de poder

1.2.1 A diferença que faz a diferença

“Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança de alguma diferença em particular”. (LORDE, 1982, p.226)

A epígrafe da “Casa da Diferença” (LORDE, 1982) nos conduz a reflexão dos vários cruzamentos que se formam a partir dos diferentes marcadores definidos para delimitar, classificar, hierarquizar e padronizar a sociedade. Referimo-nos aos eixos dos sistemas de gênero, da “raça”, da etnia, da sexualidade, da idade/geração, da localidade geográfica, da classe, do estado civil ou conjugal, dentre muitos outros.

Essas interseccionalidades relacionam-se de modo assimétrico, criando desigualdades ou reproduzindo estratégias de oposição e transformação, para si ou

para meio social. Durante o atendimento das mulheres vítimas os profissionais de saúde se deparam com a possibilidade de agência desses sujeitos marcados por diferentes eixos de opressão. Como proposto por Adriana Piscitelli (2008) e tantas outras pesquisadoras a utilização da noção de interseccionalidades se faz importante, pois oportuniza caracterizar as diferentes desigualdades que habitam uma mesma sujeita.

A agência por sua vez seria uma singularidade universal dos grupos humanos, em que os atores sociais estão entrelaçados a uma estrutura social (ORTNER, 2007). E essa agência sofrerá mudanças de indivíduo para indivíduo, conforme seus marcadores sociais – características sociodemográficas - conforme apresentadas abaixo na Tabela 2. Ou seja, o atendimento médico de uma vítima de violência sexual poderá sofrer mudanças de acordo com seus marcadores sociais, quais sejam: idade, raça, grau de escolaridade, classe econômica.

Tabela 2 – Características sociodemográficas das mulheres. Serviços de Aborto Legal no Brasil, 2013-2015 (MADEIRO & DINIZ, 2016).

Características N %i

Faixa etária (anos)

Até 10 anos 05 0,4 11-14 193 15 15-19 283 22 20-24 251 20 25-29 266 21 30-34 158 12 35-39 89 7 >40 38 3 Escolaridadeii Analfabeta 71 6 Ensino fundamental 454 35 Ensino médio 471 37 Ensino superior 178 14

Estado civiliii

Solteira 913 71 Casada/União estável 183 14 Separada/Viúva 113 9 Cor/Raçaiv Amarela 09 1 Brancav 648 51 Indígena 26 2

Parda 336 26 Preta 128 10 Religiãovi Católica 547 43 Evangélica 302 24 Sem religião 164 13 Outras 78 6 Total 1.283 100 i

Os percentuais foram arredondados; iiFaltaram dados em 108 casos (8%); iiiFaltaram dados em 74 casos (6%);

iv

Faltaram dados em 136 casos (11%); vHouve maior número de casos analisados em serviços do Sudeste e Sul, o que pode explicar a concentração de mulheres da cor/raça branca22, além do que nos outros serviços este não era um dado de registro nos prontuários; viFaltaram dados em 192 casos (15%).

Observa-se, a partir dos dados contidos na Tabela 2, que o perfil da maioria das mulheres que buscam o serviço de aborto legal no Brasil seria: católicas (43%), solteiras (71%), com ensino médio completo (37%) e com idades entre 14 e 29 anos (62%). Esse perfil é essencial para a construção da realidade sobre o aborto, pois, embora legal, essas mulheres ainda terão seu acesso negociado e SERÃO postas em um “regime de suspeição” (DINIZ, et al, 2014). Segundo as autoras, “quando uma mulher alcança um serviço de aborto legal, há um regime de suspeição em curso que a antecede e a acompanha” (idem, p.293). Em suma, verifica-se que mulheres jovens e alfabetizadas são o maior público desses serviços, também se pode vislumbrar que mulheres ao procurar um serviço de aborto legal não trazem a sua religião como um marcador de interferência, segundo a tabela apresentada pela Antropóloga Debora Diniz, haja vista que mulheres de diversas religiões procuram esse serviço. Em contrapartida, veremos a frente que a religião do profissional de saúde poderá direta ou indiretamente interferir nessa atenção.

Via de regra, psicólogas e assistentes sociais são as primeiras profissionais a reconstituir a história sobre a violência sofrida, discurso este que será repetido para outros profissionais revitalizando desnecessariamente as sujeitas em questão. Além disso, a decisão soberana que acentuará esse biopoder, pensando aqui em termos

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O total de habitantes que se declararam cor/raça branca na região sudeste equivalem a 59,40% (IBGE, 2010).

foucaultianos, será do médico ou médica que está à frente do programa de atenção às vítimas de violência (IBDEM, 2014).

Conforme explana Diniz (2014), há um maior regime de suspeição para as mulheres que carregam algum tipo de estigma, as chamadas “liberais” ou solteiras - deve-se ter em vista que a maioria das vítimas que procuram este atendimento são mulheres solteiras, ou as que vivem em uma relação estável heterossexual23, para estas que estão dentro do “regime de suspeição” há uma ampliação dos testes para verificar se houve ou não a violência. Portanto, mesmo não existindo mais a premissa legal que informe que a mulher deverá ser “honesta”, para receber o tratamento adequado a sua necessidade, este adjetivo ainda é um imperativo categórico na prática hospitalar.

Ainda nos estudos realizados por DINIZ (2014) e VIEIRA (2011), as autoras alertam que no Brasil o aborto legal é restrito àquelas mulheres que estão de algum modo na situação de vítima, ou seja, que engravidaram em consequência de uma violência sexual, que está gerando fetos anencefálicos, ou tem algum risco de morte, podemos observar mais a fundo as características das interrupções de gestação previstas em lei.

Sendo a violência sexual, a única que permite um regime de suspeição em que a mulher irá passar por avaliações para identificar o nexo de causalidade entre a data da gravidez e da violência. As autoras ainda revelam que o maior motivo para o aborto legal são de gestações advindas de um estupro (94%). A idade gestacional predominante para a interrupção da gravidez foi entre 9 e 14 semanas (41%). Contudo, mesmo estando estas mulheres em situação de vítima, ainda se deparam com situações de conflito entre agência e poder dentro da maternidade. Porque ao médico é resguardada a Objeção de Consciência.

Então, o corpo seria legislado e operado não só através dos desejos e fervores dos indivíduos, mas a partir de um conceito social, de moralidade, a qual vincula a certos indivíduos caráter de cidadania, e, por conseguinte caráter de dignidade, aspectos esses que irão delimitar a chamada “Objeção de consciência” sobre o qual discutiremos a seguir.

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Relação estável heterossexual é posta em suspensão, uma vez que a concepção poderia ser fruto dessa relação, ora consentida, e não de uma violência sexual.