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Capítulo 2: A Teoria Consensual da Verdade (1972)

2.3 Diferença Entre Fatos e Objetos da Experiência

Habermas diferencia fatos de objetos da experiência. Os objetos são entes que existem no real; um fato é aquilo que uma asserção verdadeira enuncia sobre os objetos da experiência. Fatos e objetos possuem, portanto, estatuto ontológico distintos. Fatos não existem no mundo e a contraparte material das expressões referenciais são os objetos. Mas é justamente a pressuposição de que os fatos e os objetos possuem o mesmo estatuto ontológico que caracteriza, segundo Habermas, a teoria da verdade enquanto correspondência.

“Ora, se objetos da nossa experiência são algo no mundo, nós não deveríamos afirmar da mesma forma que fatos são ‘algo no mundo’. Exatamente esta afirmação ou uma equivalente precisa fazer uma teoria correspondencial da verdade: asserções verdadeiras devem corresponder a ‘fatos’. Decorre disso que essa expressão só pode ter um sentido se os correlatos das asserções representam algo real do mesmo modo que nossos objetos de experiência, ou seja, são ‘algo no mundo’.” (HABERMAS, 1986a, p.132-133)6970

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Habermas entende aqui o termo Wirkliches como se referindo ao estatuto ontológico dos objetos no mundo. Ele alterará esta perspectiva em seu ensaio Verdade e justificação no qual passará a conceber o Wirkliches como se referindo ao estatuto ontológico daquilo que é expresso por meio de sentenças verdadeiras, ou seja, do estatuto ontológico dos fatos. Cf. Seção 3.1.2 do próximo capítulo.

Fatos pertencem à esfera da linguagem, só podendo ser tematizados no âmbito do discurso. Fatos são estados de coisas existentes, estes últimos sendo entendidos como o conteúdo proposicional de afirmações verdadeiras. Admite-se, certamente, a existência de uma relação entre fatos expressos na linguagem e os objetos experienciados no mundo. O que não deve ocorrer é a identificação de ambos como sendo o mesmo.

“Fatos são derivados de estados de coisas; entendemos por fatos o conteúdo proposicional de enunciações cujo conteúdo de verdade foi problematizado. Se afirmamos que fatos são estados de coisas existentes, não pensamos com isso na existência de objetos, mas sim na verdade de proposições. Evidentemente pressupomos a existência dos objetos identificáveis aos quais atribuímos predicados. O sentido de ‘fato’ ou ‘estado de coisas’ não pode ser esclarecido sem a referência ao discurso, no qual nós examinamos as pretensões de validade suspensas de enunciações (. . .) Pensamentos sobre objetos da experiência não são o mesmo que

experiências ou percepções de objetos.” (HABERMAS, 1986a, p.134-135)

“. . .se estados de coisas são ou não são o caso, não é algo que seja decidido por meio da evidência de experiências, mas através de argumentações. A idéia da verdade só se deixa mostrar com a referência ao resgate discursivo de pretensões de validade.” (HABERMAS, 1986a, p.135- 136)

A dificuldade presente na distinção entre fatos e objetos da experiência deve- se à forma com que estes são expressos por meio da linguagem: não existe uma diferenciação gramatical na forma das expressões lingüísticas utilizadas para afirmar fatos e aquelas utilizadas para relatar experiências com objetos no mundo. A diferença entre ambas só pode ser tornada evidente quando distinguimos esfera da ação e esfera do discurso. A enunciação "Aquele passarinho é um bem-te-vi" pode ser tanto uma informação sobre um ente no mundo, caso em que pertenceria ao âmbito da ação, como pode também cumprir o papel da apresentação de um fato (sobre um objeto no mundo) na esfera do discurso, se a pretensão de validade implícita na enunciação for posta em questão. Uma pretensão de verdade pode basear-se sobre experiências de objetos no sentido de referir-se a elas como efetivas ao invés de ilusórias. Contudo, a justificação, fundamentação, daquela não se faz por meio da referência às experiências realizadas com objetos no mundo,

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É evidente que essa crítica de Habermas só atinge as teorias da correspondência que postulam fatos como sendo aquilo ao que as expressões lingüísticas correspondem. E somente aquelas que postulam que a correspondência se dá por uma relação de isomorfia. Cf. seção 1.6.

mas única e exclusivamente por meio de argumentos. Nenhuma referência à experiência com objetos pode ser tomada como argumento, visto que as experiências só entram no âmbito do discurso após terem sido interpretadas e é justamente a validade da interpretação que está sendo posta em questão. (HABERMAS, 1986a, p.135)

Habermas define verdade da seguinte forma:

“Denominamos verdade a pretensão de validade que vinculamos com atos- de-fala constatativos. Um enunciado é verdadeiro se a pretensão de validade dos atos-de-fala com os quais nós afirmamos o enunciado, através do uso de sentenças, é justificada.” (HABERMAS, 1986a, p.135)

Habermas procura deslocar a questão da verdade da relação enunciado/mundo para a relação enunciado/pretensão de validade. Para ele, no âmbito do intra-mundano, das nossas experiências com objetos, não se coloca a questão da verdade. O critério adequado para avaliar as informações que são trocadas sobre o mundo é o da segurança (Zuverlässigkeit) ou insegurança (Unzuverlässigkeit). Uma informação é tida como segura quando as expectativas de comportamento que ela contém são satisfeitas e insegura no caso contrário de se verem tais expectativas frustradas. Mas a verdade não diz respeito às informações acerca do mundo em si mesmo, mas aos enunciados que expressam tais informações. Uma compreensão adequada do significado da verdade numa teoria consensual só pode ser conseguida através da explicitação do que é propriamente o processo de justificação de pretensões de validade no discurso racional. 71 Segundo esta teoria, a atribuição por parte de um argumentante de um predicado a um objeto é tida como justificada na medida em que todos os outros possíveis interlocutores com os quais este indivíduo pudesse manter uma discussão também atribuíssem o mesmo predicado ao mesmo objeto, pois foram convencidos de que existem razões suficientes que legitimam a atribuição. Todos os outros interlocutores devem convencer-se de que o argumentante tem o direito de atribuir o predicado ao objeto em questão.

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"Der Sinn von Wahrheit, der in der Pragmatik von Behauptungen impliziert ist, lässt sich erst hinreichend klären, wenn wir angeben können, was 'diskursive Einlössung' von erfahrungsfundierten Geltungsansprüchen bedeutet. Genau dies ist das Ziel einer Konsensustheorie der Wahrheit." (HABERMAS, 1986a, p.136)

“A condição para a verdade de um enunciado é a anuência potencial de todos os outros. Todos os outros deveriam poder se convencer que eu atribuo justificadamente ao objeto o predicado enunciado e deveriam, então, poder concordar comigo. A verdade de uma proposição significa a promessa de se atingir um consenso racional sobre o dito.” (HABERMAS, 1986a, p.137)