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3. EDUCAÇÃO FÍSICA NA FUNDAÇÃO CASA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E

3.2 E STRATÉGIAS EM JOGO : INSTÂNCIAS NORMATIVAS E DIFICULDADES INSTITUCIONAIS

3.2.1 O diferente em contexto

Não precisou de muitas aulas para as primeiras situações aparecerem. Era Brizola o primeiro escolhido pelos jovens para sofrer com as instâncias normativas que coexistem na Fundação CASA. Desajeitado com as práticas corporais e fora dos padrões esbeltos que a sociedade prega como o modelo de saúde e de beleza a ser seguido, Brizola sofria de constantes brincadeiras e de atitudes violentas que o inferiorizavam. Vigiando o gordo, constantemente, as linhas normativas do projeto de sociedade moderna se revelavam nas aulas, por meio de práticas performativas que, claramente, esquadrinhavam o espaço ocupado pelos corpos hábeis, fortes e ágeis e pelos corpos gordos, fracos e lentos.

De tal modo, este mecanismo, traçado pela tecnologia de poder que se deu por meio de uma racionalidade instalada no conjunto da população na sociedade moderna, como aponta Foucault (2010b), enfatiza a necessidade dos exercícios físicos e de corpos produtivos e vigora até os dias atuais. Conforme anuncia Góis Junior (2000; 2003), é no interior do projeto da modernidade e da industrialização que a ciência médica e, anos mais tarde, a pedagogia, reforçam o papel da educação física na manutenção da saúde da população.

Com isso, vê-se constantemente nas práticas de educação física, o reforço destas condições, ainda que em caráter não intencional, uma vez que são os elementos que configuram a própria composição do campo de conhecimento da área.

O subuniverso simbólico da educação física foi legitimado tendo como pano de fundo o universo simbólico da modernidade. Um elemento importante deste universo era a ciência de caráter mecanicista, que fornecia coerência, que legitimava a visão mecânica de corpo, ou seja, integrava coerentemente o significado de corpo e movimento (atividade física) do subuniverso da educação física ao universo mais amplo da sociedade moderna, e com isso a legitimava no contexto cultural e socioetário (BRACHT, 2003, p. 16).

Além de Brizola sofrer com a representação que tinha perante os demais, é importante pontuar que não era o único. Leo, assim como Brizola, era constantemente inferiorizado pelos pares, inclusive por Brizola. Muitos se dirigiam a Leo como a Barbie48, mulherzinha, rosinha. Ressalta-se destas práticas, a utilização de representações femininas para inferiorizar alguém, isto é, a mulher que assim é tida como inferior. Vale, então, chamar Leo de mulher para que o mesmo seja afetado pelo discurso dos jovens. Logo, o que torna Leo um alvo de deboche é a condição de sujeito que ele ocupa no espaço de privação de liberdade. O que colocaria Leo em um constante confronto com os jovens de sua turma era o fato de não ser um membro do grupo.

Era como se Leo estivesse privado da liberdade por um deslize. Repetidamente chamado de playboy, a representatividade de Leo entre os pares era marcada pela diferença que existia entre a vida dele e a dos demais. Por isso, Leo era um estranho à lógica ali existente, mas, no interior desta relação, era também muito querido por Betânia. Leo se autogovernava, pois cumpria os códigos da Instituição muito bem, assim, poderia ganhar a liberdade mais rapidamente que os demais.

Pontua-se nesta questão que há códigos internos que permeiam e regulam os espaços de privação de liberdade, bem como as periferias nas quais estes jovens se territorializam. Alguns autores como Moreira (2011), Feltran (2010, 2011, 2012) e Malvasi (2012) apontam o crime como instância normativa destes espaços, produzindo suas leis, seus sistemas e convivendo com as regulações estatais. Visto de outro modo, Leo não era o crime, Leo era o

playboy, aquele que o crime rejeita exatamente porque, na ordem “legal” e “moral” é quem se

reveste de uma proteção tal qual a justiça e a polícia não atuam de igual maneira como com quem vive na quebrada. O playboy, no limite, pode até viver na ilegalidade, mas não será produzido no discurso do delinquente e, tampouco, sofrerá de suas consequências.

Além disso, o playboy representa a figura daquele que dispõe de bens e condições para ter uma vida boa, financeiramente o playboy pode ter o que quiser. Bem diferente da realidade cotidiana dos demais que, pelo simples fato de viverem onde vivem, já sofrem da precariedade, da falta de infraestrutura e da insuficiência de garantia de direitos (MALVASI, 2012). Essa questão é facilmente percebida na narrativa de Feltran (2011) quando, ao participar de uma conversa com dois jovens internados na Fundação CASA, descreve:

Naquele momento, eu tomava distância do diálogo para ver os dois meninos, um ao lado do outro, e o abismo entre eles. Um playboyzinho falando sem

parar, que ia pedir uma moto para a mamãe, e um menino que tinha morado a vida toda na rua, cuja mãe não visitou nenhuma vez, quieto. Ele devia sentir raiva, eu pensava (FELTRAN, 2011, p. 13).

Estas relações apareceram também, durante as discussões provocadas por Betânia. E não foram apenas em temas afetos ao gênero e à sexualidade que as manifestações dos padrões dominantes apareceram. Nas aulas em que a professora levou imagens para mostrar como vivem diferentes “tribos urbanas” ou para apresentar que os hábitos e costumes se diferenciam de acordo com a cultura de determinados locais, o estranhamento nos jovens se fez presente. Além disso, surgiam também reações negativas em torno do que viam. Noivas casando de vermelho para os jovens pareciam ciganas ou “macumbeiras”; homens argentinos se cumprimentando com beijo no rosto, eram gays; jovens roqueiros vestindo roupas pretas e com cabelos coloridos, eram esquisitos. Enfim, à medida que se buscava discutir a diversidade, os jovens, de certa forma, não correspondiam às questões levantadas, sempre em tom de estranhamento ou de rejeição.

Louro (2000) sinaliza os marcadores destes processos e aponta como se dá a construção dos estereótipos corporais, marcados por relações desiguais de sexualidade, gênero, classe social, raça e, também, marcadores da sociedade moderna, como o corpo perfeito. Neste sentido,

Distintas e divergentes representações podem, pois, circular e produzir efeitos sociais. Algumas delas, contudo, ganham uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade. Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, "normais" (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos "outros" (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos. Por tudo isso, podemos afirmar que as identidades sociais e culturais são políticas. As formas como elas se representam ou são representadas, os significados que atribuem às suas experiências e práticas são, sempre, atravessados e marcado por relações de poder (LOURO, 2000, p. 9).

Como se pode observar nas aulas transcritas, ao trabalhar com relação ao respeito à diversidade, à igualdade de gênero, à violência contra a mulher, muitos foram os discursos de resistência à ação docente que buscava promover uma espécie de defesa aos direitos humanos: aos homossexuais, às mulheres e às diversas outras formas culturais de viver em sociedade. No entanto, observou-se ser esta uma questão difícil de equacionar na lógica da “moral”. O que se viu foram movimentos de resistência, em meio a relações de poder travadas durante as

aulas. Esses enfrentamentos, decorrentes entre a busca de normalizar os sujeitos no sistema da moral, do respeito, do convívio, dos direitos individuais, encontraram terreno fértil para explicitar as resistências que decorrem destas relações. Como defende Foucault (2014a), o poder não se detém, é exercido, não é negativo, mas sim produtivo, pois é o modo como certas ações estruturam o campo de outras possíveis ações.

É claro que, ao analisar o exercício das relações de poder nas aulas de educação física, percebe-se, por outro lado, que as resistências operam e, conforme alerta Foucault (1995), onde há poder, há resistência.

Pois, se é verdade que nos centros das relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma “insubmissão” e liberdades essencialmente renitentes, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de um modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venham a se superpor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir (FOUCAULT, 1995, p. 248).

Ao problematizar na turma as questões envolvendo a sexualidade e o machismo, Betânia se defrontou com um grupo fortemente armado às discussões ali promovidas e os jovens se depararam com alguém tentando mover a fronteira estabelecida pelo controle, pelo universo disciplinar construído na narrativa de positividade do crime. Para quem vive os ambientes de privação de liberdade, fica claro os movimentos que permeiam este outro mundo. No seio das relações que se estabelecem, há um espaço fortemente controlado por técnicas de poder: incontáveis regras (do que pode e que não pode), hierarquias, sistema de justiça, relações patriarcais49, consumo, ostentação, valores, entre tantos outros fatores que marcam aqueles que se constituem neste sistema.

E o que chama atenção, é a materialização destes códigos quando os mesmos vêm à tona a partir da narrativa dos jovens traduzidas em repúdio à publicização de relações homoafetivas nas vias da quebrada e em intolerância com a exposição do corpo da mulher em locais públicos, ainda que esta estivesse amamentando. Quando Domenick, MC: JS e MV, inconformados com a ideia de uma mulher expor seus seios para dar de mamar a uma criança, reforçam a condição existencial sexualizada e viril do mundo do crime, em que o “comportamento sexual da mulher é controlado de modo rígido e extremamente violento”

49 Tipo de organização social que se caracteriza pela sucessão patrilinear, pela autoridade paterna e pela subordinação das mulheres e dos filhos ((MICHAELIS. Dicionário brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/patriarcado/>. Acesso em: 11 de novembro de 2017.

(ZALUAR, 1993, p. 138) e vivificam a simbologia que representa este mundo, caracterizado por relações autoritárias que o constituem. São os elementos do crime que envolvem virilidade, força e poder que figuram na mulher uma relação narcisista. Isto é, ostenta-se o dinheiro, as roupas de marca, mas também as mulheres, que não podem ser “vistadas50”, muito menos desejadas por qualquer outro homem. Moreira (2011) apresenta estas relações regimentais e que configuram este arranjo social do crime, a que os jovens e suas namoradas e mulheres estão submetidos, quando aponta exatamente o fato de que não é permitido olhar para a mulher do outro: “nos dias de visita não é permitido tocar nos órgãos genitais, falar palavrões e olhar para as mulheres que visitam os companheiros” (MOREIRA, 2011, p. 126).

Configura-se, assim, um espaço fortemente atravessado por leis “legais” e “ilegais”, marcando as relações que os jovens estabelecem em seu cotidiano. Apontam-se estas questões, longe de se traçar um cenário pessimista, mas para rastrear as forças que atuam dentro deste espaço e que, incessantemente, buscam dar forma aos indivíduos que ali se encontram.

Em alguns casos, as discussões provocaram alguns efeitos desejados pela educadora, quando, por exemplo, Leo expressou nunca ter pensado nas outras possibilidades de ser e de estar no mundo, ao se retratar da aula em que foram discutidos os hábitos e costumes, e também, quando MC: JS aponta ter compreendido que a violência doméstica é muito mais do que a submissão da mulher ao sistema que a machuca. Busca-se, no entanto, fazer provocações e mostrar como as relações de poder se estabelecem diante daquilo que Foucault (2010b) sinaliza sobre o caráter relacional do poder. Para o autor, “o poder sempre é apenas uma relação que só se pode, e só se deve estudar de acordo com termos entre os quais atua essa relação. Portanto, não se pode fazer nem a história dos reis nem a história dos povos, mas a história daquilo que constitui, um em face do outro” (FOUCAULT, 2010b, p. 142).

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