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Diferentes percursos reprodutivos e novos padrões de fecundidade

A partir dos dados recolhidos pelo IFEC2013, o estudo dos diversos percursos reprodutivos que se destacam na sociedade portuguesa atual permitiu conhecer causas, compreender o que explica as diferenças, prever tendências futuras e ir um pouco mais além na identificação de novos padrões de fecundidade que parecem traduzir a emergência de novas normas de conduta em relação à família e aos filhos, socialmente aprovadas e inquestionavelmente aceites. Nos dias de hoje, as características individuais continuam a ser deter‑ minantes na decisão de se terem ou não filhos. Considerando que o período fértil dos homens é mais alargado do que o das mulheres, são eles que mais tarde tendem a entrar na parentalidade e, portanto, os mais suscetíveis a não terem (ainda) tido filhos. Também a participação no mercado de traba‑ lho parece ser mais condicionante para os homens do que para as mulheres. Já as mulheres, por entrarem mais precocemente na vida reprodutiva, têm, em geral, um maior número médio de filhos. Por sua vez, aquelas com níveis de escolaridade mais elevados, provavelmente por adiarem mais, apresentam uma maior intenção em terem mais filhos, apesar de serem as que atualmente têm menos, i. e., caracterizam‑se por um maior desfasamento entre o número

de filhos que têm e os que esperam vir a ter.

Se, por um lado, o avançar da idade favorece a que tanto homens como mulheres tenham tido filhos, por outro, tende a reduzir as intenções de se terem (mais) filhos, fazendo com que aqueles que atinjam idades mais avançadas sem vivenciarem a parentalidade, ou com apenas um filho sejam mais suscetíveis de nunca a experienciarem ou de permanecerem com um único filho.

espera ter. Quanto maior for a idade ao nascimento do primeiro filho, maiores são as possibilidades de permanecer apenas com esse filho. Contudo, o efeito do adiamento tem um impacto diferenciado conforme os distintos níveis de escolaridade. Por um lado, aqueles com ensino superior são os que mais adiam o nascimento do primeiro filho, apresentando por isso um menor número médio de filhos nas idades inferiores a 30 anos. Por outro, a partir dessa idade, são eles que evidenciam uma maior intenção de virem a ter filhos, esperando ter ainda um maior número de filhos no término da vida reprodutiva, o que nos permite concluir que, além das características individuais, as caracterís‑ ticas adquiridas ao longo do curso de vida, em particular a educação, também influenciam as decisões e as intenções de fecundidade.

Os contextos familiares de origem também se destacam como determi‑ nantes da fecundidade em Portugal, seja pelo efeito do nível de escolaridade das mães ou do número de irmãos. Os indivíduos oriundos de agregados cuja mãe tenha um nível de ensino mais elevado são mais propensos a terem uma escolaridade superior e a adiarem o nascimento do primeiro filho e, conse‑ quentemente, a ainda não terem filhos. São também eles os mais suscetíveis a se esperar que tenham um maior número de filhos.

Aqueles que provêm de famílias mais alargadas, com um maior número de irmãos, são mais propensos a terem ou a se esperar que tenham uma fecun‑ didade mais elevada. É claro que, face ao intenso declínio da fecundidade portuguesa no decurso das últimas décadas, o conceito de família alargada difere entre as diferentes gerações. Aparentemente, para aqueles com idades inferiores a 30 anos, ter uma família alargada significa terem pelo menos dois irmãos, enquanto para as gerações mais velhas significa terem três ou mais irmãos.

Apesar das alterações comportamentais ao longo das últimas décadas, a família e os relacionamentos conjugais – ainda que na forma de coabitação – continuam a ser centrais na vida dos portugueses, uma vez que aqueles que não vivem com cônjuge ou companheiro apresentam fecundidades mais bai‑ xas. Apesar do estado civil ainda ser um fator importante no que respeita às decisões de fecundidade, a situação conjugal ou a experiência de conjugalidade (atual ou passada) revelam‑se decisivas para se explicarem aquelas decisões.

A dimensão familiar considerada ideal é um dos principais determinantes do comportamento reprodutivo, sendo ainda um dos fatores mais críticos na

evolução da fecundidade futura. Ideais mais baixos potenciam a que se perma‑ neça definitivamente sem filhos ou a que se tenha menos filhos, dificultando assim a recuperação da fecundidade nos anos vindouros.

Uma transição tardia para a vida adulta, em particular o facto de não se ter ainda saído de casa dos pais ou tê‑lo feito após os 25 anos, potencia a que se tenha um menor número médio de filhos. Concomitantemente, uma entrada mais precoce no mercado de trabalho parece constituir um obstáculo ao adiamento da fecundidade.

Embora largamente desejada, a parentalidade já não é para muitos uma condição básica para se alcançar a autorrealização. Os que discordam de que a realização pessoal passa por ter filhos têm uma maior tendência a adiar a entrada na parentalidade, a não desejarem ter filhos e a permanecerem infecundos.

A crescente centralidade do “lugar” do filho na família é um dos fatores de maior relevância nas questões reprodutivas. Aqueles para quem é prefe‑ rível ter apenas um filho, desde que este tenha melhores oportunidades, são os mais prováveis a não terem entrado na parentalidade e também a não pro‑ gredirem para o segundo filho, o que pode indicar que restrições financeiras (ou de tempo) que possam comprometer as oportunidades futuras dos filhos constituem um fator limitativo para a recuperação da fecundidade. Aqueles que discordam desta compensação entre “quantidade vs. qualidade” são mais

suscetíveis a terem um maior número médio de filhos.

Esta atitude que tem condicionado os percursos reprodutivos dos por‑ tugueses nas últimas décadas, e que parece ter vindo a consolidar‑se gradual‑ mente ao longo do tempo, não implica uma diminuição do valor dos filhos, mas sim a sua crescente valorização. À medida que o número de filhos diminui, cresce a sua importância e assiste‑se a um progressivo investimento não ape‑ nas financeiro, mas também emocional dos pais em cada um dos seus filhos. O número “ideal” de filhos passa a ser aquele que permita aos pais manter um determinado nível de vida para a família em geral, com menos privações e sacrifícios, de modo a garantirem aos filhos melhores condições de vida, maior probabilidade de ascensão social, mesmo que para tal se tenha de diminuir o número de filhos até se ficar reduzido a apenas um.

A par da mudança na preferência por famílias de dimensão mais redu‑ zida, identifica‑se uma outra alteração: a deslocação da idade considerada

Parece existir um novo conceito de “idade para ter filhos” que deixa de estar relacionado apenas com o limite superior (já não tem idade), mas que reconhece a existência de uma etapa do curso de vida em que não se tem idade para se terem filhos, porque se é (ainda) demasiado jovem.

Muitos jovens deixaram de sentir urgência em constituírem família e terem filhos, guardando para mais tarde a decisão de serem pais ou mães, enquanto nos primeiros anos da idade adulta se dedicam principalmente à formação e investem nas suas carreiras profissionais, usufruindo de mais tempo e mais recursos para outras atividades, eventualmente mais centradas em si próprios. O adiamento da entrada na parentalidade corresponde a um novo modelo de comportamento, em que a idade aprovada socialmente para se ter um 1.º filho transfere‑se para idades menos jovens, o que, por sua vez, condiciona a intenção e compromete a decisão de se terem (mais) filhos.

A conjugação de ambos os comportamentos, e a sua aceitação social, implicou uma gradual e inexorável diminuição do número de nascimentos em Portugal.

A intensa participação da mulher no mercado de trabalho, tão caracte‑ rística das famílias portuguesas, parece agudizar a necessidade de partilha das tarefas domésticas e, em particular, do cuidar dos filhos entre o pai e a mãe. A importância da presença do pai no quotidiano familiar emerge como basilar nas decisões de fecundidade e assume uma clara relevância, principal‑ mente quando se trata de avançar para um segundo nascimento, e também para um terceiro.

Finalmente, para além dos fatores de carácter estrutural anteriormente identificados, existem outros de natureza conjuntural igualmente influentes. A tomada de decisão é sempre condicionada pelas circunstâncias que podem mostrar‑se mais ou menos adversas. Os indivíduos aprendem com o passado e com as vivências dos seus familiares, amigos e conhecidos. As inten‑ ções formuladas, tendo em conta as experiências individuais e o resultado da sua aprendizagem social, são frequentemente alteradas e ajustadas em função daquelas mesmas circunstâncias. Conjunturas críticas, como a recente emergência da crise económica e financeira, podem ter efeitos perturbadores nas decisões de adiamento ou provocarem mesmo a renúncia a nascimentos anteriormente adiados, efeitos que podem revelar‑se transitórios ou definitivos.

Em suma, a expectativa de um melhor nível de vida para si próprio e para os filhos comanda, de certo modo, os desejos, as intenções e as decisões ao longo do curso de vida dos indivíduos, i. e., os seus percursos reproduti‑

vos, permanentemente condicionados e muitas vezes constrangidos pelas circunstâncias dos contextos familiar, profissional, social, institucional e, também, político.

Partindo do princípio de que os portugueses querem ter pelo menos um filho e esperam, em média, vir a ter dois, os resultados do estudo mostram que existe atualmente uma oportunidade única para se criar um ambiente favorável à transição para a parentalidade, respeitando a liberdade de esco‑ lha individual e as mudanças culturais, o que permitirá uma recuperação da fecundidade em Portugal.

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Fundação Francisco Manuel dos Santos

Coordenadora da Área da População: Maria João Valente Rosa Outros estudos

Processos de envelhecimento em Portugal: usos do tempo, redes sociais e condições de vida [2013]

Coordenador: Manuel Villaverde Cabral, publicado em duas versões: estudo completo e versão resumida

Dinâmicas demográficas e envelhecimento da população portuguesas: 1950-2011 Evolução e perspectivas [2014] Director: Mário Leston Bandeira

MENDES, Maria Filomena

Professora Associada no Departamento de Sociologia da Universidade de Évora e membro integrado do CIDEHUS-UÉ. Doutorada em Sociologia, lecciona Demografia a cursos de licenciatura e mestrado.

Tem coordenado vários projetos de investigação na área da Demografia e da Sociologia.

Tem várias publicações nestes domínios científicos. É atualmente Presidente da Direção da Associação Portuguesa de Demografia. AFONSO, Anabela

Doutorada em Matemática pela Universidade de Évora em 2010. Área de especialização em Amostragem e Amostragem em Populações Animais, mas também com publicações em Modelação Estatística. É docente do Departamento de Matemática, membro integrado do Centro de Investigação em Matemática e Aplicações e Adjunta do Diretor do Mestrado em Modelação Estatística e Análise de Dados, da Universidade de Évora. MACIEL, Andreia

Doutorada em Sociologia pela Universidade de Évora em 2015, é Mestre em Sociologia pela mesma Universidade. Área de especialização em demografia, e a sua investigação centra-se na temática da fecundidade, estudando a dimensão familiar ideal, as intenções de fecundidade de curto prazo e ao longo do curso de vida. É membro integrado do CIDEHUS-UÉ. RIBEIRO, Filipe

Doutorado em Sociologia pela Universidade de Évora em 2015, é Mestre em Modelação Estatística e Análise de Dados, pela mesma Universidade, e Mestre em Demografia pela Universidade de Lund, European Doctoral School of Demography. O seu interesse de investigação centra-se no estudo da velocidade de envelhecimento e na elaboração de previsões e projeções de mortalidade e população. É membro integrado do CIDEHUS-UÉ.

TOMÉ, Lídia Patrícia

Doutorada em Sociologia pela Universidade de Évora em 2015, é Mestre em Modelação Estatística e Análise de Dados pela

Universidade de Évora e em Demografia pela Universidade de Lund, European Doctoral School of Demography. Área de especialização em Demografia, a sua investigação foca-se na temática da fecundidade e transição para a parentalidade. É membro integrado no CIDEHUS-UÉ.

INFANTE, Paulo

Doutorado em Matemática pela Universidade de Évora em 2004. Área de especialização em Controlo Estatístico de Qualidade, mas também com várias publicações e orientações em Modelação Estatística. Atualmente é docente do Departamento de Matemática, membro integrado do Centro de Investigação em Matemática e Aplicações e Adjunto do Diretor do Departamento de Matemática. FREITAS, Rita Brazão

Doutoranda em Sociologia na Universidade de Évora, mestre em Modelação Estatística e Análise de Dados pela mesma Universidade. Desde Fevereiro de 2016, investigadora no Vienna Institute of Demography (FWF-projects 28071), no âmbito do projeto: “Running against the clock: realizing family plans over the life course”. Área de especialização em Demografia. É membro integrado do CIDEHUS-UÉ.

Portugal regista atualmente um dos mais baixos níveis de fecundidade da Europa e do mundo, resultado da redução do número de filhos e do adiamento dos nascimentos para idades mais tardias.

As características individuais e a idade ao nascimento do primeiro filho são determinantes cruciais para o número de filhos que se tem e que se espera ter, variando em função do grau de instrução. Apesar das alterações comportamentais ao longo das últimas décadas, os contextos familiares e a conjugalidade continuam a ser centrais na vida dos portugueses, pois aqueles que não vivem com cônjuge ou companheiro apresentam fecundidades mais baixas. A dimensão familiar ideal é outro determinante crítico, dado que ideais mais baixos potenciam que se tenha menos filhos, dificultando a recuperação da fecundidade. O ideal parece corresponder ao número de filhos que permite manter um determinado nível de vida para a família e ainda garantir aos filhos mais oportunidades, mesmo que para tal se tenha apenas um filho. Daí também a atual relevância das questões económicas nas decisões de fecundidade.

A alteração de mentalidades parece ter gerado um novo modelo social marcado por uma crescente valorização dos filhos.

Coordenadora

Maria Filomena Mendes Paulo Infante

Anabela Afonso Andreia Maciel Filipe Ribeiro Lídia Patrícia Tomé Rita Brazão de Freitas

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