• Nenhum resultado encontrado

3.1 Uma escola pra chamar de minha

3.1.1 Diferindo – É do meu jeito!

Entre os muros da escola, podemos conviver com as mais diferentes abordagens práticas e conceituais sobre diferença. É comum ouvirmos das colegas, coordenadoras, psicólogas do SOE (Serviço de Orientação Educacional) e da direção, a palavra diferença associada ao respeito. As crianças trazem, em suas narrativas, durante a resolução de conflitos, uma frase muito recorrente: “É do meu jeito!”. Essa frase demarca um limite imposto ao outrx que tente questionar a forma de alguém fazer alguma coisa, seja de ordem material, como um desenho, uma expressão corporal com dança, corridas e brincadeiras, ou subjetiva.

Essa frase é muito usada pelas crianças e muito validada pelxs adultxs, o que traz muitos ganhos na construção de uma noção de diversidade entre as crianças. Ela garante o processo de autoria nas atividades e demonstra o cuidado com a auto-estima de cada sujeitx. Para ilustrar isso, trago um diálogo, ocorrido quando eu estava em uma sala de aula acompanhando uma professora. Após ler uma história, a professora sugeriu que as crianças desenhassem a parte que mais gostaram. Para isso, disponibilizou caneta para desenhar, papel e lápis de cor e de cera. Uma das crianças, ao terminar, se aproximou da professora com o papel na mão e disse:

38 - Professora, terminei. Meu desenho, tá lindo?

Professora: - está lindo, mas por que você desenhou a essa mulher de cabelo roxo? Criança: - porque eu quis, eu gosto.

Professora: - mas não existe cabelo roxo! Quer outro papel pra desenhar um cabelo de cor normal?

Criança: - mas.... É do meu jeito! A amiga da minha mãe tem cabelo roxo!

Imediatamente, a professora se deu conta da situação e acatou a resposta da criança e legitimou a sua produção. O que a criança propôs foram diversos questionamentos que diariamente nos são feitos enquanto professoras de educação infantil e fundamental I naquela escola: qual é o nosso papel enquanto mediadoras de saber? Como nos implicamos nesse processo de mediação? De que forma contribuímos para a naturalização e normatização das identidades e subjetividades? Quais as linhas de fuga que temos enquanto formadorxs e como negociar isso com a instituição e as famílias?

A professora tinha muitas formas de fazer a sua intervenção, porém se deu conta de que a criança estava reivindicando não só seu processo de autoria, como também a possibilidade de existir e se identificar enquanto possibilidade de ter um cabelo roxo. Desse jeito, após revisitar como estava se implicando naquela intervenção, refez o percurso e legitimou a reivindicação da criança. O que teria se perdido nessa situação se a professora mantivesse sua postura inicial e impusesse que a criança voltasse a desenhar de acordo com que ela tinha estabelecido como um ‘cabelo normal’? Qual mecanismo de violência se produziria com isso? O processo formativo da escola com suas professoras contribui para que, em uma situação como essa, a docente consiga se refazer a partir de uma auto-crítica, de forma rápida. Mas nem sempre isso acontece porque as situações complexas não acontecem sempre no momento em que estamos necessariamente voltadxs para enfrentá-las. Algumas escolas tradicionais elegem uma disciplina para falar de respeito, diversidade, cidadania etc, na tentativa de trazer à tona respostas para as demandas de conflitos relacionais. Porém, esse movimento de conflitos não é estático, não espera 50 minutos de aula para acontecer. Acontece justamente quando os nossos ouvidos não estão presentes, quando o olhar dx adultx não está por perto ou pelo menos quando aparenta estar distante. São nesses momentos que os insultos, as violências, simbólicas ou não, acontecem, assim como as experimentações relacionadas ao exercício de poder.

39 Com isso quero dizer que as situações como essa estão o tempo inteiro acontecendo nas relações. Quando, ao invés de elegermos uma matéria, a escola nos designa para pensar nisso o tempo todo, nós conseguimos trabalhar de forma mais orgânica, em movimento e fluxo contínuo no cotidiano escolar. Assim, nossas ações conseguem de fato ser eficientes e críticas com relação ao respeito ao outrx, às subjetividades e diferenças. As situações não acontecem só dentro de uma grade curricular, não acontecem só dentro de um tempo de uma disciplina específica. As tensões estão ao tempo todo acontecendo. Como nós lidaremos com isso e colocaremos nosso juízo de valor vai determinar uma educação crítica ou não.

Os momentos passados no parque e nas horas de conflito entre as crianças são situações em que podemos melhor observar como as diferenças emergem e como as crianças lidam com isso. Nessas circunstâncias, o mais imprescindível é que possamos saber agir diante das situações que nos são ‘ofertadas’ com esses conflitos. Por exemplo, quando um garoto de dez anos, durante uma disputa de bola com outro garoto, usa o termo viado para ofender o outro, e isso logo vira uma disputa corporal pela dignidade de sua sexualidade, o que devemos fazer? 1. Deixar passar e apostar que eles se entendam - é uma perspectiva muito recorrente nesse espaço - pensando que o processo de autonomia deve ser garantido? 2. Fazer uma intervenção moralista e rasa e reduzir isso a “não xingue seu colega, por acaso você gostaria de que ele lhe xingasse?” 3. Entender a potência daquele momento para desconstruir, positivar e ressignificar o termo viado diante de outras crianças?

Eu, que venho de uma formação que propõe pensar questões de gênero e sexualidade, vivenciei essa situação diversas vezes na escola e quase sempre a opção número 2 foi acionada com mais propriedade pelas professoras e pela equipe pedagógica de forma geral. Lembro-me de ter sido interpelada por outra colega quando propus uma reflexão sobre a necessidade de repensarmos sobre essa intervenção, pensando como esvaziamos a potência em uma situação como essa. A professora em questão então me questionou: - Já não temos que cuidar de coisa demais pra ainda estar me preocupando com isso?

Entendo e vivencio a sobrecarga de trabalhar com educação com crianças, da prestação de contas que temos que oferecer constantemente à instituição e às famílias, em dar conta de um currículo conteudista, da formação social e coletiva, mas não vejo minha função enquanto professora dissociada de educadora. E penso que é muito simples lidar com essas situações no trato cotidiano de uma intervenção como essa, infelizmente corriqueira, do que tratar disso de outra forma. Desde que entendemos, naquela instituição, a importância da contextualização dos conteúdos a partir da perspectiva das diferenças, lidar com essa situação

40 em um momento de conflito com a criança é uma forma de aprendizagem extremamente potente e transversal de diversas outras questões que estão amarradas na tentativa de uma criança ofender a outra através da utilização da palavra viado de forma pejorativa. Nesses momentos, quase sempre a sexualidade e a performatividade de gênero são acionadas pelas crianças. E não nos custa grande investimento material, mas investimento intelectual, sensitivo, e um grande esforço de empatia para com x outrx.

É perceptível que a escola tem um outro cuidado no que se refere as questões de classe/raça. Porém, ainda em uma perspectiva um tanto assistencialista, e com equívocos, a serem considerados. Posso ilustrar algumas situações para pensarmos as lacunas. A primeira situação em que pude fazer uma intervenção direta e acompanhar de perto a condução da escola ocorreu durante o projeto Multidade. Estávamos em sala e, na hora do lanche, um funcionário de serviços gerais entrou e iniciou a limpeza da sala. Quando ele se posicionou de frente para uma criança de 9 anos, ela colocou os pés calçados em sua calça jeans. O funcionário pediu que tirasse os pés de cima dele porque os sapatos estavam sujos. A criança respondeu que ele também era sujo porque o trabalho dele era com sujeira. Nesse instante, interferi no diálogo. O funcionário estava visivelmente impactado pela fala da criança e saiu da sala. Pedi que voltasse e, na frente dele, disse à criança que a posição social dela não dava direito de fazer aquilo com o funcionário. A criança parecia não estar impactada pela situação e encaminhei ela para a coordenação do projeto, que agiu imediatamente propondo uma retratação dela com o funcionário e uma reflexão sobre o que cuidado com o outro.

Outra situação aconteceu com uma criança cujo pai é funcionário de limpeza da escola. A criança experimentou pegar o dinheiro de algumas crianças na hora do lanche. Isso aconteceu muitas vezes durante o ano e o dinheiro era sempre usado para comprar picolés e lanches vendidos na cantina da escola. Esse é um sintoma muito esperado diante de tantas marcações de exclusão que essa criança vivencia. É esperado que haja esse tipo de experimentação e seria esperado que a escola conseguisse pensar em estratégias e trabalhar a precariedade de algumas vidas e as possibilidades de outras, e que algum tipo de política fosse pensada para dar conta desse tipo de demanda. Soltar uma criança de vunerabilidade econômica em um ambiente de privilégios sociais garantidos pode ser tão ou mais violento do que ela ocupar o espaço que lhe é “comum” socialmente. Que política de inclusão social de fato existe na escola, além da possibilidade de bolsa integral? O que a existência dessa criança promove de acréscimo ao grupo? Em que ponto sua existência pode ser colaborativa na construção de uma consciência crítica coletiva de classe/raça? Até onde tive conhecimento

41 dessa situação, famílias estavam reclamando do sumiço dos dinheiros e a escola teve algumas conversas com a família, mais no sentido da responsabilização da construção subjetiva da criança do que de fato propositiva, afim de garantir a permanência efetiva da criança naquele ambiente que, tantas vezes, lhes parece mais hostil do que benéfico. Penso em quais serão as memórias dessa criança em meio a tantas contradições sociais e afetivas.

Certa vez, uma pessoa adulta da equipe pedagógica foi na minha sala de aula resolver um conflito entre uma criança mais velha e uma criança do meu grupo. Em roda, sentamos para conversar e ela foi apurar os fatos com a criança menor. Começou retomando os fatos para entender o motivo da agressão do maior para com o menor. A criança menor relatou que bateu no maior porque ele lhe chamou de viado e continuou dizendo que apenas se defendeu. A pessoa adulta reagiu: - E por que você xingou ele? A criança não soube responder e ela continuou: - Você ia gostar que ele te xingasse?

Naquele instante me dei conta de que as pessoas educadoras simplesmente não sabem lidar com essas situações porque não estão pensando sobre aquelas coisas. Está tão naturalizado viado ser tratado como xingamento e há tantas outras coisas para se preocupar, enquanto equipe pedagógica, que uma questão dessa simplesmente passa desapercebida diante de pessoas que sabemos que possuem as melhores intenções em construir um mundo mais receptivo às diversidades.

Muitas vezes, durante o ano letivo, me deparo com esse tipo de conflito entre as crianças e quando recebo como relato de uma criança que se sentiu injuriada por outra sendo chamada de viado, eu retomo a conversa em grupo e, sentados na roda, como fazemos em qualquer resolução de conflito, provoco: - Vocês sabem o que é viado? As crianças envolvidas respondem: - É uma coisa muito ruim; é ser mulherzinha; é se vestir de menina; é ser menino e namorar com outro menino; é uma coisa para ter vergonha; é uma coisa que meu pai não gosta; é coisas da televisão; é quando a gente fica com raiva; é achar homem bonito; é quem não gosta de futebol; é menino que gosta de rosa.

Me pergunto: como uma escola que acolhe famílias LGB reifica essas concepções sobre ser viado? Como conseguimos entender que não é prioridade cuidar disso? Como não vemos essa negação institucional como uma violência para com diversas subjetividades? Quando as crianças relatam o que entendem por viado, eu preciso intervir de forma direta e precisa: - Gente, viado é como algumas pessoas chamam homens que namoram homens. Em geral, o grupo reage com risos. Espero as reações acontecerem e continuo: - Alguém aqui

42 conhece um homem que namora outro homem? Dificilmente acontece de um grupo inteiro dizer que não. Até porque há filhxs de LGB na escola e quando elxs se dão conta disso, associando a situação de que estamos falando, na mesma hora é perceptível o deslocamento de compreensão sobre o conflito estabelecido. E aí eu continuo: - Então gente, se ser viado é homem que namora homem, e vocês me disseram aqui que conhecem pessoas assim, que os pais de outras crianças aqui da escola são homens e namoram homens, vocês acham ainda que viado pode ser usado como xingamento? Precisamos xingar ou ficar chateados quando uma pessoa usa o termo viado pra falar da gente?

A partir dessa perspectiva, as crianças trazem outras narrativas e compreendem o termo viado de outro jeito. Normalmente eu só preciso fazer uma roda dessas uma vez durante o ano letivo, o que não significa que não aconteçam mais conflitos desse tipo durante o ano. Pelo contrário, situações assim acontecem porque as crianças estão experimentando isso a todo o momento mas, depois de uma roda de conversas dessas, as próprias crianças passam a problematizar as falas dxs colegas quando algo parecido acontece em outro contexto.

Uma vez, na fila da cantina, eu estava afastada e percebi um conflito entre uma criança do meu grupo, que havia participado de um momento de discussão sobre o termo viado, e outra criança de outro grupo que lhe empurrou na fila e disse: - Sai daí seu viado!!!! Ele imediatamente respondeu: - O que é que tem? Você sabia que o pai de seu colega, Davi, é viado? Viado é homem que namora homem e isso não é xingamento. Aquela criança, além de fortalecida diante de outro que tentava exercer poder sobre ela, problematizou a fala dele, o fazendo pensar nos pais do seu colega. A criança agiu então como multiplicadora e esvaziou completamente a injúria da palavra viado. Eu não gastei horas de planejamento, nem precisei dedicar uma aula inteira para falar de sexualidade e identidade, respeito e diferença com crianças de seis anos. Eu apenas precisei compreender o processo de naturalização das normatividades e fazer o esforço crítico de entender meu papel enquanto pessoa educadora diante da formação de crianças para uma coletividade.

Quanto uma instituição precisaria investir para que isso fosse algo de praxe naquele espaço? Talvez precisasse gastar um tempo a mais para refletir sobre a importância de desnaturalizar as identidades para garantir o bem-estar de muitas subjetividades e compreender de que forma isso está ligado ao processo de aprendizagem conteudista das crianças.

43 Pensando ainda nas diferenças, segundo Hopenhayn (1999), talvez seja imprescindível pensar nas diferenças enquanto multiplicidade e singularidade, ao mesmo tempo.

A diferenciação, pensada como diferença operando ou acontecendo, é ato de deslocamento plural entre muitas alternativas de interpretação, mas também é ato de posicionamento singular frente a essa luta de interpretações possíveis. (HOPENHAYN, 1999, p.129)

A diferença, assim, não se trata de uma forma de percepção, uma opinião, e sim uma condição que separa duas condições, é uma diferença entre perspectivas "que articula o singular de uma perspectiva e o plural de seus deslocamentos virtuais" (HOPENHAYN, 1999, p.131). Para Derrida (2001), a diferença não é uma oposição. O filósofo pensa a diferença enquanto potência à alteridade, à heterogeneidade, um de “devir-espaço”, “devir-tempo”.

Insisto, diferença não é uma oposição, tampouco uma oposição dialética: é uma reafirmação do mesmo, uma economia do mesmo em relação ao outro, sem que seja necessário, para que ela exista, fixá-la, congelá-la, ou fixá-la em uma condição ou em um sistema de oposições duais. (DERRIDA, 2001, p. 34)

Pelo que é vivenciado na rotina escolar daquele espaço, é notável um cuidado ao lidar com a diferença. A formação das professoras é insistente na construção de uma narrativa não opositora da diferença, e isso fica explícito de diversas formas, desde as relações trabalhistas entre xs funcionárixs da escola, passando pelo cuidado com as crianças no processo de aquisição de saberes curriculares e relações sociais até na forma como se dão as construções de saberes do grupo de professorxs. Talvez o que seja preciso desconstruir é uma noção generalizada de uma hierarquia de importância sobre o que deve ficar de fora ou não da lista de importância da formação de uma pessoa.

Quando uma escola se propõe a trabalhar a partir da perspectiva da diferença, interseccionalizar as diferenças deve ser um esforço cotidiano em todas as práticas educativas dos currículos ocultos ou não. 2