• Nenhum resultado encontrado

DIFICULDADES DA NATURALIZAÇÃO RADICAL

3.1 NATURALIZAÇÃO RADICAL

3.1.1 DIFICULDADES DA NATURALIZAÇÃO RADICAL

Em recente contribuição, Alexandre Guay e Thomas Pradeu (2017) analisaram as teses da ontologia naturalizada segundo a proposta radical de Ladyman e Ross, apontando duas excessivas simplificações a que esses auto- res incorreram e que impuseram sérias complicações à defesa das abordagens radicais de naturalização. Nas palavras deles:

“A recente metafísica científica [ontologia naturalizada] di- vulga que oferece tanto o diagnóstico quanto a cura. O diag- nóstico é que a metafísica atual é inteiramente incorreta, e a cura é substituir essa metafísica inadequada por uma nova forma de metafísica, baseada exclusivamente nos resulta- dos da ciência atual. Em nosso ponto de vista, no entanto, a metafísica científica faz um diagnóstico impreciso e até mesmo errado, de modo que não pode oferecer uma cura satisfatória.” (GUAY & PRADEU, 2017, p. 6, tradução nossa)

36

Em relação ao conteúdo dessas duas simplificações, a primeira nos diz que a abordagem radical da ontologia naturalizada não qualificou seu alvo precisamente. Na verdade, para sermos fiéis em nossa interpretação das críticas de Guay e Pradeu, explicitemos que aquilo que eles estão chamando de “metafísica científica” inclui algumas diferentes abordagens de metafí- sica baseada na ciência,11e, em particular, inclui a ontologia naturalizada de Ladyman e Ross, na qual estamos interessados (GUAY & PRADEU, 2017, p. 2). Assim, no que concerne à primeira simplificação, eles dirão que os teó- ricos da abordagem radical não foram capazes de caracterizar com precisão o seu alvo, pelo menos até o momento. Como vimos, a motivação para as on- tologias radicalmente naturalizadas utilizava como argumento uma série de incorreções cometidas pela investigação metafísica e ontológica quando dis- sociadas parcial ou totalmente dos resultados de nossa melhor ciência. Como o ponto de partida para essas investigações não era a ciência, identificá-lo poderia servir para apontar o alvo responsável pelas incorreções. Justamente neste ponto, os proponentes da naturalização radical descreveram a inves- tigação metafísica e ontológica como sendo, ao mesmo tempo, “a priori”, “baseada em intuição”, “analítica” ou “baseada em abordagem de poltrona” (armchair metaphysics) (LADYMAN & ROSS, 2007, p. 10). A acusação de simplificação se torna agora óbvia: tais características são distintas umas das outras, não podendo ser atacadas como se fossem todas iguais (GUAY & PRADEU, 2017, pp. 6-7). Desse modo, e apenas para começar, confi- gura uma falha da abordagem radical de naturalização da ontologia misturar muitos adversários impropriamente caracterizados, fazendo com que toda a discussão esteja baseada na caricatura de um oponente.

Por último, a segunda simplificação dos teóricos da abordagem radi- cal é reduzir todas as abordagens da ontologia ao reducionismo físico, univer- salismo ontológicoe realismo científico, excluindo sem prévia análise outras alternativas e sem apresentar justificação para esses comprometimentos nada óbvios. Vejamos o que são cada uma dessas características:

1. Reducionismo físico: a realidade se reduz fundamentalmente à física. 2. Universalismo ontológico: há somente uma abordagem apropriada que pode nos fornecer a ontologia de que precisamos. Ela deve ser exclusiva e fundamental.

3. Realismo científico: existe um mundo independente de nossas cren- ças, práticas linguísticas e esquemas conceituais, e este mundo é a

11Apenas para que fique claro, na exposição de Guay e Pradeu também podemos entender os

37

fonte veritativa para nossas afirmações científicas, sendo a ciência pos- suidora de ferramentas capazes de descreverem adequadamente o mundo.

De acordo com Guay e Pradeu, essas três características exibem a abordagem radicalmente naturalizada à ontologia segundo o modo como ela é vista pelos próprios naturalistas (ou pelo menos como eles a apresentam). Mesmo assim, eles passam longe de justificá-las, ainda que para cada uma delas exista pelo menos uma alternativa teórica. Isso nos leva para a segunda acusação de simplificação, qual seja, de que esses três comprometimentos não são de modo algum óbvios a ponto de desobrigar os teóricos da aborda- gem radical a apresentar motivações para sua adoção (GUAY & PRADEU, 2017, pp. 5-8).

Tal como exposto, essas acusações configuram pelo menos dois pro- blemas à viabilidade de naturalização radical da ontologia. É claro que, mesmo depois de tudo, alguém ainda muito confiante na promessa de na- turalização poderia responder que ambas as simplificações podem ser ajus- tadas a fim de dissolver tais acusações e, possivelmente, isso resolveria os problemas técnicos analisados por Guay e Pradeu. Essa é certamente uma possibilidade interessante que poderia ser colocada em prática, mas o mais importante agora é notar um outro tipo de problema apresentado à aborda- gem radical que a qualifica como ainda insuficiente.

Gostaríamos de pensar que, quando os proponentes da abordagem radical à naturalização da ontologia requerem algo no sentido do que nos diz a primeira tese assumida por eles – qual seja, de que a nossa ontologia deve estar baseada apenas e completamente na ciência –, eles estariam dizendo que sua abordagem radical é capaz de retirar uma ontologia para qualquer teoria científica em jogo. É claro que a ciência pode nos surpreender e, neste caso, surpreende. No contexto de teorias físicas, por exemplo, há cenários em que o formalismo matemático da teoria científica é capaz de fornecer pelo menos duas ontologias compatíveis com a teoria e incompatíveis entre si, configurando o que se conhece por problema da subdeterminação ontológica. Para ilustrarmos, vejamos em que termos a subdeterminação da onto- logia pela física pode aparecer para o nosso metafísico radical. Como exem- plar de teoria científica, fiquemos com a abordagem usual da mecânica quân- tica e com o modo como se comportam seus objetos particulares – as partí- culas elementares da teoria. Desejosos por investigar a proposta para uma ontologia radicalmente naturalizada sob o ponto de vista de seus próprios proponentes, nosso objetivo é olhar para a mecânica quântica e entender o que ela está nos dizendo acerca de suas partículas elementares: que tipo de entidades elas são e quais propriedades metafísicas assumem? Sendo ainda mais específico que isso, alguém bastante interessado na ontologia dessa te- oria poderia também perguntar: são os objetos quânticos indivíduos ou, ao

38

contrário, algum outro tipo de objeto que não corresponde aos critérios de individuação?

Cotidianamente, pensamos que um indivíduo é aquilo que pode ser apontado como sendo distinguível de alguma outra coisa. Vivendo entre tantos indivíduos, costumamos caracterizar nossa individualidade em termos de diversidade: somos indivíduos porque nossas características específicas e combinadas de uma certo modo nos tornam distintos de qualquer outro indi- víduo – como essa diversidade de características e combinações é abundante, ela é capaz de nos distinguir dos demais. Mas o que significa ser distinguí- vel? Já sabemos que certas características nos permitem dizer que somos distintos uns dos outros: a cor de nossos cabelos varia, o tom da pele, nos- sas idades e, inclusive, nossas posições espaço-temporais. Somando essas e todas as demais características, podemos ser distinguidos de nossos pais, amigos e vizinhos. Assim, ser distinguível de algo é, em certa medida, ter al- guma propriedade que o diferencie dele (ser diferente de). Muito insistentes, continuamos a perguntar: e o que é ser diferente de algo? Várias respostas interessantes foram apresentadas pelos filósofos ao longo dos séculos, mas uma bastante comum é dizer que dois elementos a e b são diferentes entre si quando há pelo menos uma propriedade que os distingue. É assim que, mesmo sem possuirmos na Filosofia uma carta branca para a licença poética, não detemos o pleonasmo: ser diferente é não ser o mesmo. Alguém poderia notar que nossa caracterização para ser o mesmo, ser diferente, ser discer- nívele ser indiscernível está formando um raciocínio circular em torno do problema da caracterização de indivíduo, mas, de fato, foi desse modo que a tradição filosófica apresentou o problema até não muito tempo. O Princípio de Identidade dos Indiscerníveisé um caso famoso desse tipo de tratamento. De acordo com ele, objetos que partilham todas as propriedades qualitativas (portanto, são objetos indistinguíveis e, como a posição espaço-temporal é uma propriedade qualitativa de um objeto, são também indiscerníveis) são o mesmo objeto (são numericamente idênticos). Porque ele é um princípio largamente condizente com nossas intuições ordinárias sobre o mundo, nem sempre é óbvio perceber como poderia falhar e em quais situações, mas, a partir daqui, nosso problema (ou melhor, o problema para o radical da onto- logia naturalizada) deverá ficar mais claro.

Bastante utilizado na lógica (consequentemente, na nossa matemá- tica usual), o PII aparece também nas ciências físicas e naturais, levando para todos esses âmbitos um tratamento dos conceitos de identidade e in- discernibilidadecomo necessariamente relacionados. Assim, o PII parece assumir ao mesmo tempo duas teses que ficam subsumidas pela relação de bicondicionalidade entre identidade e indiscernibilidade, quais sejam:

39

são indiscerníveis.

(∗) Identidade dos Indiscerníveis: se a e b são indiscerníveis, então são idênticos.

Voltando ao nosso ponto inicial, vejamos como essas duas teses su- postamente complementares podem ser aplicadas para as partículas elemen- tares da mecânica quântica. Nossa intenção é verificar se nossas concepções mais fundamentais sobre o mundo e sobre a concepção de indivíduo, supos- tamente enunciadas pela plausibilidade do PII, são igualmente corroboradas pelo comportamento a nível quântico das partículas que compõem nosso uni- verso – compondo inclusive nós, os indivíduos e sujeitos no mundo.

Para fins de exemplo, imaginemos dois elétrons quaisquer descritos dentro da teoria clássica da mecânica. Cada um deles ocupa uma posição espaço-temporal bem definida, distintas e que, segundo a física clássica, pode ser medida a qualquer momento. Vamos nomear um desses elétrons de A, enquanto o outro será chamado de B. Sabemos que A e B são objetos distintos não porque seus nomes são diferentes, afinal, eles foram arbitra- riamente atribuídos por nós e sabemos que diferentes nomes poderiam ser utilizados para se referir ao mesmo objeto. Em termos físicos, acreditamos que eles são diferentes porque fomos ensinados que todo elétron ocupa uma determinada posição no espaço e essa posição faz parte de suas propriedades qualitativas. Além disso, os elétrons são impenetráveis e dois (ou mais) de- les não poderiam ocupar a mesma posição. Na mecânica clássica, a posição de um elétron é representada por uma tripla ordenada com valores quaisquer capazes de indicar a posição X ocupada por A e a posição Y ocupada por B, bastando observar a diferença entre os valores de posição desses elétrons para constatar que A e B não são o mesmo objeto (é mais de um). Portanto, para os objetos da mecânica clássica, o PII se aplica sem problemas, afinal, haverá sempre alguma característica que distingua entre as partículas (em última instância, a posição).

O tipo de indistinguibilidade entre partículas A e B que acabamos de explicar aparece de forma não problemática no contexto da mecânica clássica e “não se costuma defender que essa indistinguibilidade possa afetar o sta- tus de indivíduo de cada uma dessas partículas” (ARENHART & KRAUSE, 2012, p. 44). Agora, vejamos o que a mecânica quântica pode nos informar sobre o estado de suas partículas. Apenas para recordarmos, o que queremos saber é se um princípio metafísico como o PII se aplicaria aos objetos des- critos por uma teoria física diferente da mecânica clássica – uma teoria mais atualmente bem-sucedida que ela.

Desse modo, agora voltados para a mecânica quântica, imaginemos outra vez dois elétrons cujos respectivos estados são descritos por meio de

40

vetores em um dado espaço vetorial. Quando tais elétrons não estão rela- cionados em um mesmo sistema, sendo independentes e analisados isolada- mente, o estado de um deles é descrito pelo vetor |ψ1i, enquanto o estado do outro é descrito pelo vetor |ψ2i. Enquanto a análise procede com os elétrons isolados, as coisas se passam tal como se passavam classicamente. A situa- ção aparentemente inusitada aparece quando essas partículas são analisadas em um mesmo sistema ou em sistemas em interação – em termos práticos, a interação entre sistemas são os casos predominantes da mecânica quântica e, pra fins de análise, os mais importantes para a observação do funcionamento das partículas, afinal, partículas estão sempre colidindo umas com as outras. Assim, para o caso dos elétrons correlacionados, a descrição de estado fica dificultada pelo que se conhece como fenômeno de emaranhamento quântico – muito grosseiramente, partículas emaranhadas não podem ter seus estados descritos sem contar com informações sobre o estado umas das outras, por- tanto, elas são dependentes entre si. Nesses casos, a descrição do estado de partículas de sistemas em interação só pode ser apontada por uma função que descreva o sistema inteiro. Mais do que isso, ao fenômeno de emaranha- mento juntam-se outras características atípicas da mecânica quântica, como a probabilidade dos eventos, a complementaridade e o problema da medição como processo ativo que modifica (ou decide) o sistema que está medindo. Com isso em mente, para o caso dos dois elétrons anteriores, a descrição de estado das partículas antes do sistema ser medido é dada por uma combina- ção linear entre os dois vetores supracitados, representando o que se conhece por estado de superposição quântica, ou seja:

|ψi = a|ψ1i + b|ψ2i

Em termos bastante gerais, o que isso nos diz é que, apesar de ha- ver no sistema uma quantidade de duas partículas superpostas, o estado de emaranhamento entre elas não nos permite informar qual delas é a partícula descrita por |ψ1i e qual é a partícula descrita por |ψ2i. Nesse contexto, sem colapsarmos o sistema com a medição, é ontologicamente impossível que tais elétrons sejam discerníveis e distinguíveis (aqui, não podemos distingui- los sequer pela posição que ocupam), mas, em virtude de sabermos que há dois deles, gostaríamos de garantir que suas identidades não sejam comple- tamente dispensadas, afinal, eles não são o mesmo elétron (não são numeri- camente idênticos). Por tudo isso, a bicondicionalidade entre indiscernibili- dade e identidade, postulada pelo PII, não parece se aplicar nesse contexto, onde é possível encontrar uma maior parte de casos em que partículas são indiscerníveis, mas não são idênticas (a Indiscernibilidade dos Idênticos se segue, mas a Identidade dos Indiscerníveis não parece se seguir). O que esse caso nos mostra é que uma ontologia que caracterize seus objetos particula-

41

res como indivíduos nos termos do PII não poderia ser aplicada em contexto quântico. E é claro que isso ainda não é um problema para o proponente da naturalização radical, afinal, ele dirá que a teoria está simplesmente fazendo o seu trabalho de “eliminar” ontologias inadequadas, mantendo aberto o es- paço para que outras formas de caracterizar a individualidade de seus objetos particulares seja apresentada a partir da própria teoria.

No entanto, o que efetivamente acontece é que esse espaço tenta ser ocupado por mais de uma proposta de ontologia com diferentes caracteriza- ções dos objetos particulares (e baseados na própria teoria científica!). Nesse grupo de propostas, por exemplo, algumas dirão que partículas indiscerníveis e não idênticas podem ter sua individualidade preservada porque são distin- tas em termos de feixes de propriedades, enquanto, com o mesmo objetivo, outras mencionem um substratum. Outra vez, a pergunta aparece: com es- sas e outras opções, o que então confere individualidade às partículas que, como vimos, não são idênticas, mas são indiscerníveis? A subdeterminação aparece aqui, quando, olhando para ontologias de feixes de propriedades e ontologias de substratum (por exemplo), a teoria não é capaz de informar qual é a ontologia adequada – se é alguma das propostas ou nenhuma de- las. Fornecer essa informação ultrapassa os méritos da teoria, de modo que ficamos com pelo menos duas ontologias distintas, incompatíveis e subde- terminadas. Finalmente, esse parece ser o obstáculo mais complicado para o sucesso da abordagem radicalmente naturalizada à ontologia, que passa a não ser capaz de retirar com base apenas na teoria científica a ontologia dessa teoria, exigindo do metafísico um pouco mais do que ciência para compor o seu trabalho.

O problema da subdeterminação da ontologia pela física se impõe como um óbvio obstáculo à promessa de sucesso oferecida pelos proponen- tes da abordagem radical, afinal, o que essa proposta deveria fornecer em termos práticos é a obtenção de uma única ontologia baseada na mesma te- oria, mas, para o caso em que obtemos mais de uma, o que devemos fazer? Como decidimos qual é a ontologia adequada? Nesse ponto, um certo cui- dado deve ser tomado para não parecer que estamos avaliando o sucesso da naturalização radical sob a imposição de que ela deva fornecer uma única on- tologia fundamental e exclusiva (no sentido mais geral), mas, dentro do con- texto de uma teoria científica (no sentido mais específico), devemos esperar que, sendo a mesma teoria, com o mesmo conjunto de sentenças verdadeiras e com o mesmo formalismo, apenas uma ontologia pode ser assumida com base nela.

A pergunta volta a ser feita: como decidimos qual é a ontologia ade- quada? Se já retiramos tudo quanto podíamos da teoria científica, resta-nos duas alternativas: fornecemos razões que assegurem essa subdeterminação

42

da ontologia como um fator temporário e passível de resolução através do desenvolvimento gradual da própria teoria ou, do contrário, assumimos que se trata de uma insuficiência da proposta de naturalização radical e que, para resolver a subdeterminação, considerações para além da teoria científica de- verão ser feitas e assumidas dentro da metodologia – neste caso, rompendo com a primeiras das teses assumidas por Ladyman e Ross, dado que a onto- logia já não seria rigorosamente “espelhada” pela teoria científica.

Enfraquecida, a proposta metodológica de ontologia radicalmente na- turalizada, pelo menos nos termos de Ladyman e Ross, precisaria de alguma revisão. Tanto por isso, algumas formas de superação dessa abordagem sur- giram no formato de propostas menos radicais, nomeadamente moderadas.

Documentos relacionados