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Percorremos um longo caminho que mostrou não apenas como se configurou a ideia hoje vigente de “Humano”, como elaborou a dignidade como instrumento discursivo fundamental para posicionar os outros Humanos no mundo. A polissemia que o conceito de dignidade alcançou permitiu que ela caminhasse entre extremos: de status social produtor de vulnerabilidades não-humanas a princípio ético voltado à proteção destas vulnerabilidades.

Contudo, se a Bioética latino-americana defende hoje a polissemia da dignidade ainda não o fez com o conceito de Humanidade; sua universalidade (e igualdade) permanece um pressuposto coerente. Sobre isso, um dos bioeticistas mais respeitados do Brasil, o professor de Ética Aplicada e Filosofia da Ciência Fermin Roland Schramm, afirmou: “na sua gênese, a ética (que ele chama de “ética natural”) tem um fundamento biológico: a legitimação do agir ético só seria uma maneira de afirmar, portanto, que toda ética é, antes e fundamentalmente, uma bioética” (Schramm apud Garrafa 2005a). Mas este biológico não precisa estar em um corpo humano. É sobre esse entendimento do Humano como produto de uma taxonomia que definiu a espécie Homo Sapiens Sapiens que teceremos o capítulo 3 – Não Humanos e outras humanidades – de modo a pautar dignidades que não são, necessariamente e exclusivamente, “humanas”.

Em um esclarecedor artigo, Gill Gott (2002) reconstrói a história do que chama de “humanismo imperial” e mostra que seu desenvolvimento tem a estrutura de uma “dialética aprisionada”, na medida em que os direitos humanos de hoje surgem lado a lado com o humanismo imperial que acompanhou o processo de colonização e, por conseguinte, tanto aquele quanto sua versão contemporânea própria do mundo pós-colonial teriam um pé nessa origem e nessa coetaneidade. O humanitarismo – dos missionários e dos voluntários – entra em conflito com as administrações coloniais em cuja companhia chegou às terras conquistadas, mas não pode se libertar de sua natureza derivativa do sistema colonial (Segato 2006: 215). É nesse sentido que a defesa dos direitos humanos pelo discurso

86 hegemônico do ocidente se pauta na desmoralização da diferença: todos os outros são moralmente condenáveis enquanto há um cinismo discursivo quanto às violações dos direitos humanos cometidas pelos países ocidentais. Como bem observou Segato, as consequências deste discurso custam muitas vidas.

É a partir dessa reflexão que analiso a maneira como o conceito de “dignidade” estreou como princípio ético na Carta das Nações Unidas – que proclamou em assembleia geral a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – e a maneira como a dignidade se apresenta na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005). Houve mudanças discursivas?

A DUDH estabelece em seu preâmbulo:

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações (Preâmbulo – DUDH – 1948).

Vemos que a dignidade aparece como um “valor humano”, e está relacionada à igualdade e à liberdade, como valores complementares. De fato, a carta pontua que “os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes”, o que significa que a violação de um direito afeta o respeito aos demais. Esta dignidade afirmada como “direito natural” pressupões uma igualdade discursiva inaplicável entre todos os viventes e seus cosmos.

Boa parte das interpretações sobre a crítica aos Direitos Humanos e ao uso da dignidade distingue problematizações “culturalistas” (o conceito de dignidade humana não contemplaria a diversidade cultural) ou “negativistas” (aqueles que negam a importância da dignidade, tratando-a pelo que “não é digno”, incorrendo contudo, no mesmo universalismo), como aponta, Phyrro et ali (2009) e que podem também ser reunidas pelas três críticas sintetizadas por Amartya Sen (2010): além da “crítica cultural”, aborda as “críticas da legitimidade” (os direitos humanos não poderiam ter status jurídico real pois seriam apenas pretensões; princípios pré-legais que não garantem um direito juridicamente exigível) além das “críticas da coerência” (um direito só poderia formalizar-se por meio de um dever correspondente; como os direitos humanos não imputam obrigações e responsabilidades a entes específicos, não teriam validade).

87 Estas críticas – sobretudo a culturalista – interessam na medida em que configuram um horizonte de disputa sobre os conteúdos dos princípios, preceitos e direitos estabelecidos no direito internacional que, como veremos, não apenas influenciou as leis e diretrizes de constituições nacionais como foram, após o “novo constitucionalismo latino americano”, influenciadas, renovando-se a partir de um novo ciclo de expansão de direitos.

De 1948 pra cá, a dignidade tornou-se também um princípio ético de referência fundamental para o surgimento e a configuração da Bioética. O debate que apresentamos acima marca como a postura latino-americana de defesa da polissemia da dignidade – e de alguns outros direitos – frente a sua interpretação universalista, ocorreu em paralelo a um longo confronto político (e internacional) que marcou a escrita da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.

A aprovação, em 2005, da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO atua como um marco da inclusão na pauta da Bioética de agendas sanitárias, sociais e ambientais. reafirmando ainda a Dignidade Humana como condição para pensar direitos universais e inalienáveis, marcando um enfoque mais “histórico e relacional” da dignidade em detrimento de sua exclusiva “reflexão ontológica”.De uma ciência voltada para as práticas biomédicas e biotecnológicas, a partir de 2005, a Bioética passou a ser reconhecida como um espaço acadêmico e político, capaz de contribuir na discussão de temas como a exclusão social, a guerra e a paz, o racismo e todas as formas de discriminação, direitos do meio ambiente e gerações futuras, além da saúde pública (Garrafa, 2006).

Assim como a DUDH, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos não tem caráter de lei, atuando como uma orientação para os países signatários em suas legislações relativas ao tema. O texto aprovado por unanimidade pelos 191 países membros da UNESCO na assembleia de 19 de outubro de 2005, em Paris, foi o resultado de dois anos de debates marcando um posicionamento firme dos países “periféricos” ao sistema-mundo vigente – e em geral, excluídos das tecnociências – em ampliar o campo de discussão e atuação da Bioética.

As duas diretrizes iniciais que marcaram a escrita do texto foram a Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos e a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos e o objetivo das nações “centrais” era a formatação de um documento voltado aos tópicos biomédicos e

88 biotecnológicos, deixando de abordar as vulnerações causadas por estas pesquisas e o debate ético que suscitam, por exemplo. E foram justamente os países que historicamente tiveram suas populações como cobaias humanas e sujeitos de pesquisa exploradas que marcaram posições antagônicas no debate, mostrando que as desigualdades entre centro-periferia têm origem colonial e por isso precisam ser abordadas também a partir de outros critérios.

Enquanto Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Japão defendiam a redução da agenda à área biomédica, o Brasil teve papel decisivo na ampliação do texto para os campos sanitário, social e ambiental conduzindo uma posição conjunta junto a países latino-americanos, africanos, alguns países árabes e a Índia (Garrafa 2005b) – e contando com o apoio da maioria dos delegados da Unesco – que pautava uma ampliação conceitual da bioética para os campos sanitário (a saúde como um bem público e universal, direito de acesso a medicamentos essenciais), social (desigualdades econômica, educacional, política) e ambiental (direito à água, à terra, à biodiversidade). A própria inclusão da referência aos Direitos Humanos, no título da Declaração, foi objeto de desacordos, sobretudo a partir de uma defesa de que a Bioética não deveria ser discutida no âmbito da UNESCO e, sim, da Organização Mundial da Saúde (OMS); tratava-se da defesa de uma Bioética principialista – ancorada em quatro princípios básicos pretensamente universais – que supervaloriza o princípio de autonomia tornando-se extremamente limitada frente aos macroproblemas coletivos verificados nos países periféricos do Sul do planeta (Garrafa 2005c).

O texto da DUBDH, traz 28 artigos divididos em cinco capítulos: disposições gerais, os princípios, suas aplicações, suas implementações e considerações finais. O capítulo referente aos Princípios traz catorze artigos (do Art.3 ao 17), incluindo direta ou indiretamente os quatro princípios tradicionais (principialistas), “traduzidos em outras palavras” (Garrafa et ali 2012), ou ainda “ampliados em conteúdo”. Destes catorze princípios, nos interessa, particularmente, mencionar: Dignidade Humana e Direitos Humanos (Art. 3); Respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual (Art. 8); Igualdade, justiça e equidade (Art. 10); Não-discriminação e Não- Estigmatização (Art.11), Respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo (Art. 12); Solidariedade e cooperação (Art. 13); Responsabilidade social e saúde (Art. 14); Compartilhamento dos benefícios (Art. 15), Proteção das Gerações Futuras (Art. 16)

89 e Proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade (Art. 17). Vemos que pautas importantes aos movimentos sociais e às agendas das ciências humanas foram nominadas, ainda que voltadas predominantemente a um debate sobre saúde.

O termo “Dignidade Humana” é mencionado nas “Disposições gerais” voltadas aos “objetivos da Declaração” com o seguinte teor:

(iii) promover o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, assegurando o respeito pela vida dos seres humanos e pelas liberdades fundamentais, de forma consistente com a legislação internacional de direitos humanos;

(iv) reconhecer a importância da liberdade da pesquisa científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, evidenciando, ao mesmo tempo, a necessidade de que tais pesquisas e desenvolvimentos ocorram conforme os princípios éticos dispostos nesta Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

Vemos que “Dignidade Humana” é contemplada em sua acepção como um valor inerente a toda pessoa humana. Como primeiro, dos 14 “princípios” que devem ser respeitados, o Artigo 3 “Dignidade Humana e Direitos Humanos” afirma:

a) A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser respeitados em sua totalidade.

b) Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade.

Coadunamos aqui com a importância de pautar a proteção dos sujeitos de pesquisa frente às grandes corporações que as financiam, mas ao afirmar que “direitos individuais” tem preponderância sobre “interesses coletivos” marcar-se também no seio da Declaração uma hierarquia que não abre espaço para a noção de “direitos coletivos”, fundamental para a fala de grupos minoritários frente a “sociedades nacionais”.

A dignidade é mencionada ainda nas “Considerações Finais”, no Artigo 28 que aborda a “Recusa a Atos Contrários aos Direitos Humanos, às Liberdades Fundamentais e à Dignidade Humana”:

Nada nesta Declaração pode ser interpretado como podendo ser invocado por qualquer Estado, grupo ou indivíduo, para justificar envolvimento em qualquer atividade ou prática de atos contrários aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana. Os ganhos simbólicos que o texto da DUBDH traz ao sistema-mundo atual são significativos. Ao ser publicada dois anos depois do início das críticas bioéticas anglo-saxônicas e eurocêntricas sobre a “inutilidade da dignidade humana”, a

90 Declaração marca uma tomada de posição, reafirmando a dignidade como um princípio equitativo aos Direitos Humanos e liberdades fundamentais. Ainda assim, a DUBDH não pôde trazer em seu texto a polissemia defendida textualmente anos depois e que tornou-se uma marca da bioética pensada em solo latino-americano. Contudo, se a polissemia da dignidade não foi afirmada explicitamente, podemos identificá-la quando se afirma a importância de pressupostos como o pluralismo, a solidariedade, a cooperação e a repartição de benefícios, por exemplo – pautas voltadas às demandas “periféricas” por equidade e direitos à diferença. Pautas que abrem espaço para sugerirmos que as palavras Dignidade e Humano, quando utilizadas por sociedades sem-Estado, podem estar evocando também hominímias e significados diversos.

Ainda assim – ou justamente por isso – permanece o receio de que “la aparente complejidad del término [dignidade] y las incertidumbres operacionales indicadas conducen a su gradual abandono”:

Sin embargo, ninguno de esos intentos parece haber sido suficientemente contundente como para, de hecho, elevar justificadamente la dignidad a una posición central en el discurso bioético. No obstante, no es pequeño el riesgo de que ese principio sea eliminado de la reflexión y de la práctica cotidianas. De alguna forma, las intervenciones críticas a la propuesta de Macklin parecen no alcanzar el efecto deseado con la defensa del concepto de dignidad, por el hecho de que ninguna de ellas contempla la radicalidad de la crítica y el necesario cambio de perspectiva sobre el tema que el editorial impone (Phyrro, Cornelli e Garrafa 2009: 66). A defesa de uma dignidade orgânica e polissêmica resvala na omissão do euro-centro em assumir não apenas sua responsabilidade pelas desigualdades estruturais do atual sistema-mundo bem como nas dificuldades de assumirem a origem de seus privilégios – que permitem a estes países centralizarem as questões emergentes em bioética – enquanto grande parte de suas antigas colônias ainda estejam falando de situações persistentes de bioética, coisas como direito à habitação, à educação, à saúde e à segurança alimentar.

Por outro lado, é justamente a partir destas configurações que novas agendas estão surgindo justamente do hemisfério Sul do planeta, abordando não apenas a polissemia da dignidade mas exigindo o alargamento dos direitos humanos – com a inclusão da água potável, ao esgoto e à alimentação como direitos humanos essenciais, no caso da nova constituição boliviana – e a inclusão de novos sujeitos de direito como a “natureza” e “Pacha Mama”, no caso das novas constituições do

91 Equador e da Bolívia. Estes textos constitucionais abriram um interessante precedente ao afirmarem estes direitos como “humanos” – ainda que na própria DUDH eles não constem – levando à reformulação dos direitos humanos na ordem internacional:

No final de julho de 2010, só então, a Assembleia Geral das Nações Unidas declara solenemente “o direito à água potável e ao saneamento como um direito humano essencial ao pleno desfrute da vida e de todos os direitos humanos” (Clavero 2015: 123).

O discurso do embaixador boliviano na ocasião é também um marco:

Os direitos humanos não nasceram como conceitos totalmente desenvolvidos, são fruto de uma construção dada pela realidade e pela experiência (Clavero 2015: 123).

O que Bartolomé Clavero está nos mostrando em sua análise é que uma maleabilidade dos direitos humanos está ocorrendo a partir do que tem sido chamado de “novo constitucionalismo latino-americano”. Um movimento de “expansão de direitos” que Rita Segato já vislumbrava com o seu texto “Antropologia e Direitos Humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais” (2003). Ao citar o teórico dos direitos humanos no mundo islâmico, Abdullahi An-Na’im, e sua análise sobre o processo de renegociação de direitos que ocorre internamente, em diversos povos, também quando suas leis são confrontadas com o discurso dos direitos humanos, Abdullahi An-Na’im aposta que seria mais interessante deixarmos de falar de “resolução de conflitos” para passar a falar em “transformação dos conflitos”.

No entanto, como ressaltou Norberto Bobbio (1991), em seu ensaio “Sobre el fundamento de los derechos del hombre”, os direitos humanos desdobram-se em um processo inacabado, do qual a Declaração Universal deve ser entendida como o ponto de partida em direção a uma meta progressiva. O problema não é, portanto, somente o de construir os instrumentos para garantir os direitos já definidos, mas também o de:

[...] aperfeiçoar o conteúdo da Declaração, articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo cristalizar-se e mumificar-se em fórmulas tanto mais solenes quanto mais vazias [...] Trata-se de um verdadeiro desenvolvimento, ou talvez até de uma gradual maturação da Declaração, que gerou e está por gerar outros documentos interpretativos ou simplesmente integradores do documento inicial (Bobbio 1991:50). (Segato 2003: 22).

Podemos transformar não apenas “conflitos” morais, mas os próprios princípios éticos que são colocados à prova diante das realidades cotidianas. Diante

92 do encontro com outros povos, outras línguas, outros mundos. Diante da diversidade cultural, jurídica e bioética dos outros mundos e de todos os seus humanos e não- humanos.

Mais do que uma mudança dos direitos humanos, Bartolomé Clavero sugere que quando o Estado boliviano reconheceu em sua carta constitucional o Sumak Kawsay, por exemplo, estava afirmando a produção política de uma “nova antropologia para os direitos” (humanos) – sugestão que nos interessa sobremaneira:

Bom viver ou viver bem não é algo que se traga à tona agora apenas para significar uma alternativa ao desenvolvimento desconsiderado com a natureza e, em contraposição, assim, a outra expressão como a usual de bem estar ou, formando palavra singular, bem-estar. Bom viver traduz sumak kawsay, suma qamaña ou ñandereko, expressões que estão vinculadas a uma determinada concepção da natureza tão inclusiva que a humanidade guardaria com ela uma relação de dependência e filiação (Clavero 2015: 125).

Ao falar de uma “nova antropologia”, de uma nova maneira de pensar o Humano, chegamos ao tema que movimentou a escrita desta tese, desde sua origem na dissertação de mestrado em antropologia social. Mas agora não estou apenas perguntando “quem são os humanos dos direitos” mas buscando elaborar quem são os outros humanos, que não estão nos direitos. De que maneiras eles estão ausentes desta linguagem jurídica? E como sua linguagem extrapola este tipo de narrativa dos direitos? Este será o tema do capítulo 3 –Não Humanos e outras humanidades.

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Encerro este capítulo sabendo do difícil percurso de tecer um pensamento crítico aos direitos humanos ao mesmo tempo em que torna-se imperativo lutar pela sua defesa e permanências simbólica e performativa. O contexto político latino- americano atual – depois de mais de uma década de mandatos presidenciais coetâneos com agendas de caráter mais “social” e menos “liberal”, voltadas a políticas de inclusão e de discriminação positivas (políticas afirmativas) e na elaboração de “novas constituições” – estamos vivendo uma onda crescente de conservadorismo político. No Brasil, desde junho de 2013, iniciou-se um ciclo difuso de protestos sociais e escândalos políticos unilaterais (que recaem apenas no atual partido governista) que ampliou o espaço de visibilidade das pautas de uma “elite”

93 insatisfeita com a limitação de alguns privilégios. Setores da classe média e alta passaram a afirmar ideias que resvalam em fascismo ao criarem uma guerra da “boa sociedade” contra “a barbárie socialista” (que nunca existiu no Brasil) e defendendo uma criminalização crescente dos movimentos sociais. Uma indignação seletiva aliada a bandeiras obsoletas que pediam “Intervenção Militar”, “Feminicídios”, o “Fim do Gayzismo”, e que compreendem que “justiça se faz com as próprias mãos, pois o Estado é inoperante” – o que resultou na aprovação social de uma sequência de linchamentos públicos de jovens negros e pobres, acompanhando de um crescente assassinato a transexuais e travestis.

Um contexto em que tecer críticas ao imperialismo moral dos Direitos Humanos tornou-se extremamente delicado quando os próprios Direitos Humanos estão sendo colocados em questão – não devido ao seu universalismo que silencia diferenças ou à sua origem liberal – mas porque Direitos Humanos tornou-se uma “agenda socialista”, um mecanismo que protege “marginais” e “movimentos sociais”. As demandas por “novos direitos” tem perdido voz dando espaço à luta pela permanência de direitos já conquistados, ainda que insuficientes.

Somente ao longo do ano de 2015, o congresso brasileiro votou e aprovou projetos de lei e emendas constitucionais que retrocedem conquistas históricas de pessoas e grupos tornados vulneráveis. O PL 215/2015, por exemplo, tem como um dos pontos fundamentais a proibição de divulgação de nomes e referências a políticos envolvidos em escândalos e acusações – mas que ainda não foram julgados pela justiça –, o que tem sido chamado por críticos de “direito ao esquecimento”. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, aprovada em outubro de 2015, transfere do poder executivo para o poder legislativo a atribuição de demarcação de terras indígenas e unidades de conservação – deixando a obrigação constitucional de resguardar estes povos e ecossistemas aos interesses políticos e econômicos de uma minoria. Por sua vez, o PL 5069 dificulta o direito ao aborto em casos de gestação resultada de estupro, tipificando como “crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevendo penas específicas para quem induz a gestante à prática do aborto”.

94 Capítulo 3 – NÃO-HUMANOS E OUTRAS HUMANIDADES

Encerrei o capítulo 2 sugerindo uma outra maneira de pensar o humano, movida pelo fato de que os humanos sobre os quais versam os direitos, inclusive os universais, trazem uma compreensão que não dá conta de tratar dos fluxos de inter- relações inter e trans-específicas que elabora diversas cosmologias – inclusive a