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As tecnologias proporcionam novas formas de intervenção e conhecimento do mundo, influindo no estado de ser e no corpo humano como tentativa de desafiar as fronteiras epistemológicas modernas. Ao realizar esse processo, temos a constituição de uma relação de encarnação ou incorporação (embodiment) (CUPANI, 2016, p. 124), na qual a técnica representa uma extensão polimorfa à nossa corporeidade, como se a máquina se tornasse um desdobramento do ser humano.

A partir dessa simbiose homem-máquina, os algoritmos podem ser descritos pela (1)

interação do corpo: num processo de ciborguização; pelos (2) objetos resultantes da utilidade e incorporação das máquinas, e (3) pelo caminhar da transformação pós- humana.

Um dos principais estudos sobre o tema foi realizado por Donna Haraway (2000), que observa nossa corporeidade ao reconhecer as formas nas quais a ciência e a tecnologia têm penetrado o natural, de modo que o corpo, então, não pode ser visto independentemente de seu meio. Nessa perspectiva, o corpo é reduzido a um construto cultural (HUWS, 2011, p. 28). Assim, como uma construção cultural, o corpo, pelos estudos da cibernética, é uma mistura do orgânico, do mitológico e da tecnologia, que ao remodelar as promessas da biônica e perspectivas sociais dá origem a um novo ser: o ciborgue.

O ciborgue é um produto da era da Guerra Fria48 que se converteu em um representante

dos desejos e fantasias da pós-modernidade. Além disso, Donna Haraway (2009), define o ciborgue como uma imagem que condensa elementos entre a imaginação e a realidade material. Como se quiséssemos constantemente redesenhar nosso eu (sujeito) ao pensarmos no ciborgue. Através desse pensamento de Haraway, segundo Lemos (2009), é proposta “uma inversão de axiomas, a questão agora não é mais ‘quem é o sujeito?’, e, sim, ‘queremos ainda ser sujeitos?’,

48 Em 1960, Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, apresentaram, em um simpósio sobre os aspectos psico-

fisiológicos do vôo espacial, o termo cyborg, nascido da contração de cybernetics organism. Inspirados por uma experiência realizada nos anos 1950 em um rato, no qual foi acoplada uma bomba osmótica que injetava doses controladas de substâncias químicas, eles apresentaram a idéia de se ligar ao ser humano um sistema de monitoramento e regulagem das funções físico-químicas com intuito de deixá-lo dedicado apenas às atividades relacionadas com a exploração espacial. Para eles o termo organismo cibernético foi criado em referência a uma nova classe de humanos, capazes de sobreviver em diferentes meios, tais como o espaço sideral. A ideia foi concebida depois de refletirem sobre a necessidade de estabelecer uma relação de maior proximidade entre os seres humanos e máquinas, em um momento em que o tema da exploração espacial iniciava uma discussão (CLYNES; KLINE, 1960).

80 já que a autora apresenta o ciborgue como aquilo que transcendeu a categorização dicotômica do mundo.

Não distante dessa concepção, Toscano (2018) comenta que a mudança que vivemos na intersecção do self e da tecnologia não representa apenas uma atualização de como nos representamos em sociedade, mas fundamentalmente como responsável por alterar o que significa ser humano. De modo, a mudar “a forma como medimos nosso impacto no mundo; como aprendemos, reagimos e nos adaptamos a novas descobertas; e, finalmente, como nos entendemos” (TOSCANO, 2018, p. 8).

Ambas as buscas em definição do sujeito são caracterizadas pelo processo de interação, ou como Simondon (1980) descreve: a incorporação (2) resultante da utilidade das

máquinas. É como se o homem transferisse ao objeto um valor de dependência à sua própria

existência como ser. O objeto individuado, como o autor chama, é um objeto individuado para o homem: “há no homem uma necessidade de individuar os objetos que é um dos aspectos da necessidade de se reconhecer e de se identificar nas coisas, e de se identificar nelas como ser que tem uma identidade definida, estabilizada por um papel e uma atividade”. Assim, a individuação dos objetos não seria absoluta, mas uma expressão da existência psicossocial do homem (SIMONDON, 2005, p. 60), sua representação.

Na mesma direção, Yehya (2001, p. 76) afirma que esse movimento de incorporação é ao mesmo tempo marcado pela criação de ferramentas e recriação da própria imagem do indivíduo. Conforme tentamos e exploramos o uso de várias tecnologias temos nos transformado como uma espécie e, assim, desenvolvemos em nós novas habilidades que descrevem a transição inevitável da sociedade humana (2001, p. 15).

Semelhantemente, McLuhan (2002) argumenta que os artefatos tecnológicos são caracterizados como extensões das capacidades sensoriais humanas. Enquanto, Santaella (1997) por sua vez, vai adiante e acredita que estes não desempenham apenas essa função, mas “são, acima de tudo, extensões da capacidade dos seres de produzir significados” (SANTAELLA, 1997, p. 204), isto é, máquinas, criadas devido à necessidade humana de refletir ao mundo o que se sente ou pensa.

Essa noção das modificações temporais pela revolução da tecnologia, bem como através de sistemas algorítmicos computacionais, nos leva a uma outra concepção a ser abordada na relação do corpo: a anunciação da transformação na imagem de um homem supostamente melhorado, que acopla os dispositivos tecnológicos a seu corpo, ou redesenha em sua natureza na (3) direção da imagem de um ser pós-humano.

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Para Geertz, essa relação acontece como parte da evolução cultural e da evolução biológica, que levam a um processo contínuo de realimentação e influências recíprocas e condicionadas:

Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio desenvolvimento biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou. (Geertz, 1989, p. 60).

Enquanto para Toscano (2018, p. 24-25), essa busca pós-humana já é reflexo em nosso corpo através das deformidades posturais que nos definem como seres homo versantur, cujas mudanças são reflexas do nosso prolongado envolvimento com máquinas. Assim, quanto mais interagimos com os dispositivos algoritmos, em suas materialidades técnicas, mais remodelamos nossas materialidades biológicas e evolutivas.

Figura 16: Caracterização do Homo neanderthalensis, Homo sapien e Homo versantur

Fonte: Toscano, 2018.

O movimento da nossa cabeça ao olhar os dispositivos algoritmos como um comportamento prolongado e permanente, não é a única desconformidade que resulta dessa interação. Não só a fisiologia estrutural humana tem desdobramentos visíveis, como também, são apresentadas no corpo humano condições de desordens do sono, solidão, depressão e até mesmo vulnerabilidade social, afetando fatores de ordem biológica, psicossocial e social (TOSCANO, 2018, p. 26).

Nesse sentido, essas mudanças também se relacionam à noção do tempo pós-cibernético, no qual certas questões ultrapassam a noção homem-máquina que habitualmente conhecemos. Estaríamos falando de uma noção homem-máquina-máquina e máquina-máquina que podem ser relacionadas aos avanços do recrudescimento da tecnocientificação da vida, que gerará um

82 futuro para além da noção humana (VILAÇA; DIAS, 2014, p. 344). Essa noção se manifesta, em especial, quando nos relacionamos com algoritmos computacionais que buscam mimetizar a vida (tecnologia da informação, robótica, biônica e nanotecnologia) e ou ainda nos algoritmos desenvolvidos para manipular a vida (como os algoritmos genéticos e biotecnológicos), nos quais a relação entre organismo e máquina depende intrinsecamente não só de uma construção de lógica e controle, mas também de dimensões que determinam o funcionamento das máquinas (sociotécnica) e dos seres vivos (natureza evolutiva).

De modo simplificado, todos esses fatores resultam da condição “pós-industrial e descentralizada, nas quais o controle toma conta do existir e é substituído por um futuro complexo, simbiótico” (GEORGIOU, 2016). Nessa perspectiva, estaríamos diante de noções do tecnohumanismo, pós-humanismo e transhumanismo49.

Assim, o imaginário ciborgue sci-fi não representa, obrigatoriamente, apenas, o fetichismo do autômato, do androide ou sequer do homem/mulher biônico(a), mas os arranjos indissociáveis de tecnologias, partes orgânicas, discursos, imagens, relações, histórias, inteligências artificiais, heranças psicológicas e muitos outros recursos. Trata-se da revolução simbólica e dicotômica do corpo que Simondon descreve:

O homem que quer dominar seus semelhantes suscita a máquina androide. Abdica, então, frente a ela, e delega-lhe sua própria humanidade. Busca construir a máquina de pensar, sonhando em poder construir a máquina de querer, a máquina de viver, para permanecer por trás dela sem angústias, livre de todo perigo, isento de todo sentimento de debilidade e triunfante, de modo imediato, por aquilo que inventou. Pois bem: nesse caso, a máquina convertida pela imaginação nesse duplo do homem que é o robô, desprovido de interioridade, representa de modo demasiado evidente e inevitável, um ser puramente mítico e imaginário. (SIMONDON, 1980, p. 32)

Dessarte, quer na interação com as tecnologias ou na sua utilidade expressa, é possível demonstrar na simbiose homem-máquina a visão de que os seres vivos e as máquinas não são essencialmente diferentes. Somos todos ciborgues a partir do momento em que nascemos e começamos a interagir com as tecnologias, em uma constante retroalimentação.