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3 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO

3.2 Dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais

No constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais foram concebidos como limites impostos ao poder estatal, consubstanciando-se em mandados de abstenção. Os direitos fundamentais de primeira dimensão eram impregnados por um caráter subjetivo, caracterizando-se direitos de defesa dos cidadãos contra os arbítrios do Estado.

O advento do Estado Social, somado às mudanças promovidas pelo neoconstitucionalismo, no período pós segunda guerra mundial, importaram numa reforma significativa na concepção dos direitos fundamentais, havendo não só uma positivação de novos direitos, que visavam garantir a igualdade material e as condições mínimas de vida, mas também uma reformulação da aplicação e eficácia dos direitos de primeira dimensão.

Com efeito, os direitos fundamentais de primeira dimensão eram visualizados sob uma perspectiva subjetiva, pois apenas identificava quais pretensões o indivíduo poderia exigir do Estado em razão de um direito positivado no ordenamento jurídico. A doutrina objetiva vai agregar novos efeitos aos direitos fundamentais. “A dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política.”41

Percebe-se, portanto, a partir do reconhecimento de que os direitos fundamentais constituem os valores mais importantes do ordenamento, devendo ser perseguidos ao máximo, a perspectiva objetiva amplia o campo de incidência dos direitos fundamentais, retirando do Estado a exclusividade na sua garantia, impondo também à sociedade a responsabilidade na sua implementação. Nessa mesma linha de pensamento, assevera Daniel Sarmento42:

A dimensão objetiva decorre do reconhecimento de que os direitos fundamentais condensam os valores mais relevantes para determinada comunidade política. E, como garantia de valores morais coletivos, os direitos fundamentais não são apenas

41 Ibidem, p. 105 42

um problema do Estado, mas de toda a sociedade. Neste sentido, é preciso abandonar a perspectiva de que a proteção dos direitos humanos constitui um problema apenas do Estado e não também de toda a sociedade. A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais pertinentes, mas também no

espaço público, através de mobilizações sociais, de atuação em ONG’s e outras

entidades, do exercício responsável do direito de voto.

Emerge a ideia de que a realização efetiva da dignidade da pessoa humana não repousa apenas nas mãos do Estado, visto que não é o único detentor de poder opressor. Por isso, faz-se necessária a existência de políticas públicas que garantam a eficácia dos direitos fundamentais.

A consagração explícita da dimensão objetiva dos direitos fundamentais ocorreu, como paradigma jurisprudencial, na decisão proferida pela Corte Federal Constitucional Alemão, em 1958, no caso Lüth.

Segundo relato de Daniel Sarmento43, tratava-se de discussão acerca da legitimidade de um boicote organizado por Lüth, um judeu que presidia o clube de imprensa de Hamburgo, contra um filme dirigido pelo cineasta Veit Harlan, de passado nazista, resultando no fracasso do filme.

Diante disto, a produtora e a distribuidora do filme ingressaram com ação judicial alegando que a atividade de Lüth violava o artigo 826 do Código Civil Alemão (BGB), em que havia a previsão de que quem causasse danos intencionais a outrem fica obrigado a reparar o dano. A tese consagrou-se vitoriosa nas instâncias ordinárias, com aplicação do disposto no Código Civil.

Entretanto, Lüth, inconformado com essas decisões, impetrou queixa constitucional para o Tribunal Constitucional Federal, alegando ofensa ao direito fundamental à liberdade de expressão, garantido na lei fundamental de Bonn, de 1949. O tribunal, então, realçando o avanço que representou a consolidação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, julgou procedente o pedido veiculado por Lüth, dando prevalência à liberdade de expressão em detrimento da liberdade de exercício da atividade empresarial de promover e divulgar filmes.

Consagrou-se, então, a teoria de que os direitos fundamentais compõem uma verdadeira ordem de valores, baseada na dignidade da pessoa humana, válida para todo o ordenamento jurídico, começa a ser reconhecida.

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O precedente em tela consolidou a noção de que a Constituição é uma ordem de caráter preponderantemente valorativo, não podendo ser neutra do ponto de vista axiológico, devendo seus princípios irradiarem valores para todo o ordenamento jurídico.

Desta feita, percebe-se que os direitos fundamentais vão se concebendo como consagradores dos valores mais importantes de uma determinada comunidade política, e que essa dimensão possibilita a irradiação de tais direitos para todos os campos do ordenamento jurídico, influenciando a interpretação de suas normas e institutos, permitindo, deste modo, a aplicação destes a uma vasta quantidade de relações que não sofreriam sua incidência se nós os visualizássemos apenas como direitos públicos subjetivos.

A dimensão objetiva também permite a atribuição de efeitos jurídicos àquelas normas consagradoras de direitos fundamentais que, por sua natureza, carecem de integração legislativa para criação de direitos subjetivos concretos. Estas normas, assim como as demais normas constitucionais, produzem efeitos hermenêuticos, condicionando a interpretação e integração de todo o ordenamento, vinculando todo o Estado, visto que o legislativo deve evitar a produção de lei contrária ao texto constitucional, o Judiciário deve declarar não recepcionada lei antiga que vá de encontro aos dispositivos constitucionais ou a inconstitucionalidade de lei superveniente contrária à Constituição e o executivo deve pautar suas políticas públicas com base nos princípios inscritos na carta política.

Robert Alexy44 tenta delimitar o conceito de dimensão objetiva de direitos através do procedimento da tríplice abstração, que tenta chegar ao direito fundamental objetivo através da identificação e, posterior separação, dos seguintes caracteres: titularidade do direito fundamental, destinatário da norma constitucional e peculiaridades do direito tutelado. Ele fornece o seguinte exemplo: suponha-se o direito fundamental a que o Estado não impeça o exercício da liberdade de opinião. O titular do direito é o indivíduo que deseja manifestar-se, o destinatário é o Estado e a prestação exigida uma abstenção. Abstraindo do titular, do destinatário e da prestação, sobra o bem jurídico tutelado – liberdade de opinião. Portanto, a dimensão objetiva vai consistir, na prática, na tutela deste bem jurídico, reconhecido como um valor fundamental da ordem jurídica que vai por ela se irradiar e influir em todo o direito objetivo.

44 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva.São Paulo:

Infere-se, portanto, que o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais não significa a superação da dimensão subjetiva, mas uma forma de reforço a esta. Não há mais necessidade de estrita previsão de aplicação da norma para um determinado caso. O direito fundamental, objetivamente dimensionado, irradia-se por todo o ordenamento, interferindo em normas e institutos, mesmo que não haja lei dispondo tal efeito.

Este avanço das normas constitucionais sobre o ordenamento jurídico e, em especial, ao campo direito privado deve ser feito de forma a garantir a dignidade da pessoa humana. Deve-se ter em mente que, ao se conferir natureza de norma objetiva aos direitos fundamentais, de conteúdo indeterminado e aberto, com sua projeção sobre todos os demais ramos do direito, não se pode resultar em confisco ou aniquilamento total da liberdade de atuação do legislador e, principalmente, dos particulares no que tange à concretização de seus direitos nas relações privadas, visto que a autonomia da vontade continua a ser o elo criador destas relações jurídicas.

Daniel Sarmento45 tenta fazer uma ponte entre a dimensão objetiva dos direitos fundamentais e a aplicação destas entre particulares:

No mesmo diapasão, afirma-se que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes transcedam o domínio das relações entre cidadão e Estado, às quais estavam confinados pela teoria liberal clássica. Reconhece-se então que tais direitos limitam a autonomia dos atores privados e protegem a pessoa humana da opressão exercida pelos poderes sociais não estatais, difusamente presentes na sociedade contemporânea.

Diante deste contexto, surgiram teorias, principalmente no direito alemão, que regulavam a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas.

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4 TEORIAS ACERCA DA VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS

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