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CAPÍTULO III – A EXISTÊNCIA HUMANA E A EXPERIÊNCIA DO MAL.

3.5 A DIMENSÃO RELIGIOSA DO MAL.

Ricoeur termina sua reflexão sobre o mal, considerando a dimensão religiosa do mesmo, que insere no âmbito da promessa e, consecutivamente, sob o signo da esperança.

o homem histórico que se manifesta como imoral, homem que pode e, por isso deve, deve porque pode, sair da imoralidade (cf. PK, 154s.).

Kant descobre o mal como princípio primeiro das máximas más, não para dar razão do mal, pois esse princípio permanece insondável para nós, mas “para fazer compreender que a conversão é possível posto que, ao mais irremediável absurdo, a vontade é presente, e para ensinar também que essa conversão, no interior de uma história, não pode senão tomar a forma das etapas pacientes de uma ‘reforma’.”

Colocando diretamente perante Deus – “pequei somente contra Ti e fiz o mal diante dos Teus olhos” 120 -, o mal é inserido no movimento da Promessa, no mistério pascal de Cristo, no qual está contida a sua redenção. A confissão do mal, o arrepender-se de o haver cometido, é já o início de uma nova criação, de uma nova união, que lança o sujeito para o futuro, para o possível, contrariamente ao que acontece com o remorso que volta para o passado e do qual é uma reminiscência paralisante no coração do pecador.

Posta à luz de Deus, a essência do mal, do pecado, que moralmente é considerada como transgressão de uma lei, sofre uma mutação que faz que ela seja agora a vontade que o homem tem de ser o senhor e o mestre da sua própria vida. É que a consciência religiosa, contrariamente à consciência moral, sabe que “a vontade de viver segundo a lei é também uma expressão do mal e mesmo a mais funesta porque a mais dissimulada; pior que a injustiça é a própria justiça”121. Mas também este aspecto pode ser manifestado em termos de Promessa e de esperança. A vontade não é só constituída pela relação entre o arbítrio e a lei, mas é sobretudo desejo de auto-realização, de totalização, de acabamento. E a reconciliação entre a virtude, entre a obediência ao puro dever e a felicidade, a satisfação do desejo, pode ser considerada como o equivalente kantiano da esperança. Sendo esta mira de totalização a alma da vontade, então o problema do mal não se reduz apenas às relações entre arbítrio e a lei. O mal verdadeiro, “o mal do mal”, são as falsas sínteses, as sínteses prematuras, as totalizações violentas levadas a cabo sobretudo pelas grandes empresas de totalização da experiência cultural, que são as instituições políticas e eclesiásticas122, bem como as protestantes.

Este aprofundamento na compreensão da natureza do mal, enquanto desejo de realização total do homem que o leva a lançar-se nos diversos totalitarismos patológicos, insere-se ainda na epopéia da esperança. Sem sabermos bem como, nós intuímos que o mal faz parte da economia da superabundância. “Ó feliz culpa”. “Onde o pecado abundou, superabundou a

120 Salmo 50. 121 Ibidem, p. 428. 122 Ibidem, p. 429.

graça”, como dizia São Paulo. Aos olhos da fé, o próprio mal contribui para o desenvolvimento do Reino de Deus sobre a Terra.

Contrariamente à perspectiva do moralista que opõe o mal ao bem, que condena aquele como fruto da liberdade humana, do inescrutável servo-arbítrio, ao qual é imputado, a fé, em vez de orientar o nosso olhar para o passado – de onde vem que nós façamos o mal? – projeta-o para o futuro, para a lei da superabundância, para o Deus que vem e que veio em Jesus Cristo, o cordeiro que tira o pecado do mundo. A perspectiva da fé, extremamente benevolente, não visa a origem do mal, mas o seu fim, a possibilidade que o homem pecador tem de se deixar redimir e salvar pelo Filho de Deus Encarnado “por causa de nós homens e por causa da nossa salvação”. O homem puritano volta para lei, que não pode salvar, e não transpõe o limiar da misericórdia divina. O que se reconhece pecador é capaz de transpor esta dimensão ética do mal, que condena, e de se lançar para o Deus, que salva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

No termo destas considerações finais queremos, ainda, retomar alguns aspectos relevantes apresentados no decorrer deste trabalho.

Fizemos um longo percurso, seguindo as reflexões de Paul Ricoeur, para tentar entender esses enígmas que rondam a existência humana. Segundo o que vimos, no conceito de falibilidade, existe uma “fenda originária” na condição humana. Essa fenda é a não coincidência do homem consigo mesmo. Foi ela que permitiu a entrada do mal, que o tornou possível, que lhe deu condições para se efetivar concretamente no homem. Vimos que a falibilidade não é, pois, a finitude, mas aquilo que na infinitude/finitude do homem se apresentou como “ponto de menor resitência por onde o mal pôde entrar.” Mas, essa reflexão do ponto de vista descritivo, não deixou claro a questão do mal que atingiu e atinge concretamente a existência humana.

A apreensão da passagem da fragilidade constitucional, ou seja, da falibilidade como “lugar” humano do mal, a falta propriamente dita, só foi possível através de uma linguagem simbólica. Por isso, entramos no mundo dos mitos com intuito de apreendermos, de maneira concreta, a experiência do mal. Analisamos o mito adâmico, pois consideramos como o único, mais especificamente, antropológico, porque situa o mal no homem. Este mito colocou o homem na existência como obra de Deus, um ser bom. Isto nos fez perceber a presença de uma “raiz” de existência eminentemente boa, e conseqüentemente, a encarar o mal como um acontecimento que adveio ao homem. Assim, o mal aparecece simultaneamente, como mal que o homem fez, e o mal que já estava presente no mundo. O homem o encontrou, como encontrou a linguagem e uma série de outros elementos culturais do mundo em que vive. Aqui podemos colocar a questão do “ontologicamente bom” apresentado nas reflexões introdutórias. Essa questão está relacionada com o estatuto primitivo do homem, segundo o mito, consiste em ter sido criado bom. O homem continua a “ser criado bom”, portanto, não cessa de ser fundamentalmente bom, apesar do pecado. Não é o mal que é originário, é a bondade do ser que é originária. Esta questão nos faz lembrar o