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3. UMA COISA COM ARISTÓTELES: DAS DING COMO RESPOSTA À ÉTICA A NICÔMACO NO SEMINÁRIO A ÉTICA DA PSICANÁLISE (1959-1960)

3.2. Das Ding: a resposta psicanalítica

O manuscrito Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie) foi escrito por Freud nos idos de 1895, mas logo abandonado nos anos subsequentes. Após um

154 esforço de décadas por parte de Freud para ocultá-lo, o manuscrito veio a público na década de 1950 por intervenção de Marie Bonaparte, surpreendendo toda a comunidade psicanalítica com o que foi entendido na época como uma tentativa de aproximação entre as descobertas germinais da psicanálise e o domínio da neurologia nascente (BEZERRA JR, 2013). Foi no

Projeto que Freud (1895) pela primeira vez desenvolveu muitos dos conceitos cruciais para sua

metapsicologia, como o processo primário e secundário, a noção de vivência de satisfação (Befriedigungserlebnis) e o conceito de desejo (Wunsch), bem como as primeiras intuições sobre o funcionamento dos sonhos. Em passagens não muito centrais desse escrito freudiano, Freud apresentou a noção de Das Ding, ‘a Coisa’. As passagens freudianas que versavam sobre

Das Ding permaneceram desprovidas de interesse até que Jacques Lacan, tendo sido afetado

pela leitura da clássica conferência de M. Heidegger (1994), “A Coisa” (“Das Ding”, em alemão”), soube ver nesse conceito mais do que aprouvera aos outros.

Nas primeiras lições do seminário A ética da psicanálise, Lacan elaborou uma releitura sumamente original da noção freudiana de Das Ding contida no Projeto. Não mais um escrito neurológico, Lacan decidiu interpretá-lo como um escrito ético no qual Freud depositaria as suas mais intensas considerações até então elaboradas sobre o problema moral. Na realidade, pode-se apenas compreender como o Projeto se tornou um escrito eminentemente ético no ensino lacaniano se acaso se observa o momento inteiramente especial em que sua releitura ocorre. Trata-se do instante em que Lacan (1959-60), havendo escolhido como objeto de seu sétimo seminário a interrogação sobre a ética da psicanálise, elege Aristóteles como o primeiro e mais destacado alvo de sua análise crítica. Após haver relido Aristóteles à luz da psicanálise, Lacan retorna propriamente a Freud, ao constatar que, tal como na Ética a Nicômaco, será através de um questionamento central sobre o prazer que a psicanálise nascerá – com a insólita distinção, porém, que, na psicanálise, a realidade se contrapõe ao prazer. Se, ao grande público, as contribuições freudianas mais complexas sobre o prazer e a realidade se apresentam no célebre capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, foi, todavia, no Projeto para uma psicologia

científica que elas pela primeira vez foram elaboradas.

No seminário A ética da psicanálise, Lacan procura demonstrar que a ética da psicanálise não apenas comporta algo completamente imprevisto pelo pensamento moral anterior, mas, acima de tudo, cria a necessidade de subverter os fundamentos éticos ocidentais,

155 localizados, por Lacan, na filosofia aristotélica e em suas derivações. Veremos, assim, que não será no conceito do Bem – como Aristóteles e boa parte da tradição cristã – fundamentaram suas éticas, mas, sim, no Desejo que Lacan sustentará a própria essência da ética freudiana82. Assim, a ética psicanalítica deverá se situar para além do Bem, em direção a algo que o conceito de Das Ding parece preservar. Será, enfim, quase como um libelo contrário a Aristóteles que Lacan conceberá o mais essencial da ética psicanalítica83.

3.2.1. Prazer, realidade e Real

Há algumas maneiras distintas de encarar a sempre surpreendente referência a Das Ding no interior da tradição lacaniana. Já se disse, retomando Freud, que A Coisa seria a parte constante e inassimilável de uma experiência de satisfação84; que seria o vazio ou o nada a partir

82 Cf. LACAN, 1988, p. 12.

83 Alguns autores, como Jacques Le Brun (2002), recordaram a contribuição da obra heideggeriana para a releitura em torno de Das Ding realizada por Lacan. Com razão, como dissemos, o seminário A ética da psicanálise apresenta claros indícios da leitura da então recente publicação francesa dos Ensaios e Conferências de Heidegger (1954), em especial da conferência intitulada A Coisa (“Das Ding”, no original alemão). Todavia, se houve bem essa ‘inspiração heideggeriana’, não é possível dizer que Lacan transportou Heidegger à psicanálise, um abuso interpretativo sob todos os aspectos. Por sua radical investigação filosófica e filológica, o acesso à conferência A Coisa conduziu Lacan a discernir no Projeto para uma psicologia científica algumas consequências sobre o problema de Das Ding que parecem ter ultrapassado mesmo as mais ousadas elaborações freudianas. Não haveria, provavelmente, a discussão em torno do conceito de Das Ding sem Heidegger, tornando a obra do filósofo alemão novamente decisiva na própria constituição do ensino lacaniano. Tanto quanto a noção de Coisa, parece-nos ainda mais essencial que a apropriação heideggeriana por Lacan tenha se refletido na eleição de Aristóteles como o filósofo princeps da matriz filosófica ocidental. Tanto ao filósofo quanto ao psicanalista, Aristóteles será sempre o maior alvo, o maior objeto do esforço de reelaboração, pensamento, e ‘destruição’ . Tal como afirma Kahlmeyer-Mertens (2013, p. 65), “Aristóteles é um autor sem o qual Heidegger não seria o pensador que foi”, não havendo objeção de nossa parte, certamente, em se dizer o mesmo para Lacan. Outros comentadores, porém, como Vladimir Safatle (2002), insistiram que o Das Ding no seminário A ética da psicanálise serviria como uma resposta direta a Kant, precisamente ao Das Gute kantiano. Sem dúvida alguma, a discussão da ética psicanalítica levantada por Lacan nesse seminário através d’A Coisa atinge o pensamento dos grandes artífices da ética ocidental, que, segundo Lacan, são, além da Bíblia e dos gregos, também, Santo Agostinho, São Tomás, Bentham, Marquês de Sade e – claro – Immanuel Kant. É verdade, portanto, que a elaboração ética lacaniana em torno de Das Ding deveria se reportar ao imperativo moral kantiano. Além disso, não se pode ignorar, como salienta ainda Safatle (2002), que a leitura realizada por Lacan do par Kant e Sade – como veremos posteriormente – se apresenta como um verdadeiro point de torsion no ensino lacaniano. Todavia, convém recordar que o próprio nascimento da releitura do conceito d’A Coisa se realizará como o mais imediato desdobramento de questões elaboradas por Lacan através de sua análise da Ética a Nicômaco. O conceito de Das Ding não será meramente um fetiche ou deliberada inspiração estilística, mas uma decorrência necessária dos impasses promovidos pelo contraste ético entre Aristóteles e Freud. Como tentaremos demonstrar, A Coisa responde, ainda que nem sempre de maneira clara ou direta, às tensões entre a ética psicanalítica e a ética aristotélica, embora Kant venha a desenvolver uma parte importante nesse debate.

156 do qual as redes simbólicas se estruturariam85; que Das Ding demonstraria que a satisfação verdadeira “não se encontra nem no imaginário, nem no simbólico, mas [...] é da ordem do real” (MILLER, 2012, p. 12)86; que Das Ding empurraria a experiência humana para além do princípio do prazer87; que estaria no âmago do sujeito, sendo-lhe, ao mesmo tempo, exterior, uma ‘extimidade’88; que seria a falta central no registro do desejo89; que seria do âmbito do impossível90; que promoveria “o movimento do sujeito em busca de seus desejos” (SEGANFREDO; CHATELARD, 2014, p. X); que seria o motor da ficção da nossa história91; que o Mal estaria n’A Coisa92; que seria a referência humana para o desejo93, que a mãe ocuparia o lugar de Das Ding94; e que, afinal, A Coisa seria o objeto que se almeja encontrar95. Muito já foi dito, às vezes esclarecido, em torno desse conceito nada simples ao qual Lacan dedica seus primeiros esforços do seu seminário A ética da psicanálise. Por nossa via, iremos acompanhar algumas das formulações de Lacan sobre esse conceito, em especial aquelas que inauguram seu sétimo seminário, pois são elas, como buscaremos demonstrar, que mais claramente apresentam a resposta lacaniana a Aristóteles.

Já na primeira lição do seminário A ética da psicanálise, Lacan (1959-60/1988) comenta que não seria razoável conceber que todo o problema da origem moral para a psicanálise deveria se restringir ao supereu. Se é verdade, dizia ele, que a dinâmica e as exigências superegoicas são importantes demais para serem ignoradas pela psicanálise, nem por isso, porém, devem os psicanalistas concentrar todas as fontes do questionamento ético na instância de censura moral. Lacan chegaria a dizer, referindo-se à psicanálise, que haveria mesmo um deslocamento constituinte da “ascese freudiana” (LACAN, 1959-60/1988, p. 16) que consistiria na travessia do sujeito materializada na sentença freudiana Wo Es war, soll Ich werden (“lá onde isso era, aí eu devo advir”), de modo que a “sua raiz [da ascese freudiana] nos é dada em uma experiência 85 Cf. LUCERO; VORCARO, 2013. 86 Cf. MILLER, 2012. 87 Cf. SAFATLE, 2002. 88 Cf. SEGANFREDO; CHATELARD, 2014. 89 DARRIBA, 2005. 90 COUTINHO JORGE, 2000. 91 Cf. SEGANFREDO CHATELARD, 2014. 92 Cf. SEGANFREDO CHATELARD, 2014. 93 Cf. LUCERO, 2009. 94 Cf. MILLER, 2012. 95 Cf. LUCERO, 2009.

157 que merece o nome de experiência moral e situa-se no próprio princípio da entrada do paciente em análise” (LACAN, 1959-60/1988, p. 16). Para além do supereu, Lacan estava sinalizando que a discussão ética na psicanálise deveria levar em conta, acima de tudo, o movimento realizado pelo sujeito de advir lá onde o isso era – o movimento que Lacan chama de “ascese freudiana”, de revelação. Lacan introduzia, então, a noção de que o âmbito da investigação ética na psicanálise não poderia de modo algum se resumir à análise superegoica; ao contrário, a psicanálise deveria ser levada adiante pelo espírito da prática nascida em Freud, que “é a experiência que voltou a favorecer, no mais alto grau, a função fecunda do desejo como tal” (LACAN, 1959-60/1988, p. 12). O desejo, enfim, deve estar no centro das preocupações éticas psicanalíticas, devendo ser, a partir dele, que todo julgamento ético deve se afirmar. Aparece, então, de imediato, a figura de Aristóteles, sendo entrevisto ao menos de duas maneiras diferentes. Por um lado, Lacan defende a total onipresença dos elementos da ética aristotélica na modernidade: “Aristóteles não perdeu absolutamente sua atualidade na moral teórica” (LACAN, 1959-60/1988, p. 14). Ética a Nicômaco não é um livro de filosofia antiga, mas, ao contrário, seus fundamentos estão concentrados ainda hoje, ainda que de maneira involuntária, na forma ética de agir e pensar a moralidade do homem moderno. Por outro lado, Lacan não admite que a ética psicanalítica possa se realizar plenamente senão em uma relação subversiva em relação a Aristóteles: “encontra-se exatamente dimensionado nesse local [no conjunto da moral de Aristóteles] o que comporta de subversão uma experiência, a nossa” (LACAN, 1959-60/1988, p. 14). A ética da psicanálise, uma subversão da ética aristotélica. Resta saber como Lacan concebe essa subversão.

A Ética a Nicômaco, como vimos, fundamentou seu edifício moral no problema do prazer – na interdição dos prazeres corporais, por um lado, no desenvolvimento dos prazeres intelectuais e do agir racional, por outro. Muitos pensadores da tradição ética deram primazia ao problema do prazer, como Epicuro, Santo Agostinho. Na obra freudiana, igualmente, muito cedo aparece bem delimitado o problema do prazer. No início, em Estudos sobre Histeria, o prazer está ligado ao desprazer e ao recalcamento; confrontado à realidade, o prazer subsiste como uma questão central no Projeto e na Interpretação dos sonhos. As histéricas recalcariam experiências que lhes seriam insuportáveis precisamente pela natureza complexa do prazer-desprazer que o funcionamento do inconsciente viria a revelar. Os recém-nascidos alucinariam

158 experiências de satisfação no instante em que se encontram nas urgências, nas necessidades da vida (Not des Lebens) (FREUD, 1985/1996). Para Freud, tanto quanto para Aristóteles, no princípio era o prazer: retire o enigma do prazer das investigações freudianas e dificilmente sobrará algum pilar de seu edifício teórico e metapsicológico. O prazer une e divide gregos e psicanalistas. Une, naturalmente, porque as questões relativas à natureza do prazer são indispensáveis a ambas as tradições. Divide, pois o encaminhamento ético destinado pela filosofia na Antiguidade diverge estruturalmente da ética psicanalítica.

Mas não há prazer, para Freud, sem a realidade. Compreender o prazer na obra freudiana consiste menos em saber sua definição de prazer – que, no fundo, é muito simples, a redução das excitações (FREUD, 1920/1996) – do que em investigar a complexa dialética entre o princípio de prazer e o princípio de realidade. Lacan (1959-60/1988) recorda que a realidade constitui uma contraparte tão presente do prazer que ela mesma participa do enigma do prazer. Se, por um lado, é certo que cabe à realidade interceptar o funcionamento disparatado do princípio do prazer, não é muito claro, por outro, qual seria a verdadeira essência ou sentido da

realidade na obra freudiana. Na psicanálise, a essência do problema do prazer estará na

realidade.

Se não há Lustprinzip sem Realitätsprinzip, é impossível compreender o prazer na obra freudiana sem compreensão do conceito de realidade. O problema, porém, começa no instante em que Lacan se pergunta pelo sentido do termo realidade em Freud, destacando, assim, sua multiplicidade e sua natureza muitas vezes escorregadia:

[...] o que aparece diante de nosso olhar é o caráter problemático do que Freud coloca sob o termo de realidade. Trata-se da realidade cotidiana, imediata, social? Do conformismo às categorias estabelecidas, aos costumes admitidos? Da realidade descoberta pela ciência, ou daquela que absolutamente ainda não o é? Será a realidade psíquica? Essa realidade, nós mesmos, como analistas, encontramo-nos justamente na via de sua busca, e esta nos arrasta para um lugar bem diferente de algo que possa expressar-se por uma categoria de conjunto – arrasta-nos para um campo preciso, o da realidade psíquica, que se apresenta a nós com o caráter problemático de uma ordem até então jamais igualada (LACAN, 1959-60/1988, p. 31-2).

O conhecimento filosófico de Lacan não lhe deixou escapar as convergências e dissensões sobre o prazer na psicanálise e na ética aristotélica, não o deixaria negligenciar, desta vez, a complexidade propriamente filosófica que a introdução do termo ‘realidade’ traz à

159 psicanálise. Lacan começa então a fazer, de maneira ainda muito sutil, uma divergência, uma separação entre ‘realidade’ e ‘real’, sendo a realidade quase sempre um representante terminológico da realidade psíquica, ao passo que o Real, extraído de uma referência ao princípio de realidade no Projeto em torno de Das Ding, deverá se tornar o mais fundamental de seus conceitos. O Real será o traço distintivo da ética psicanalítica.

O termo ‘real’, porém, não surge espontaneamente no seminário A ética psicanalítica (1959-60), mas, ao contrário, bem antes, em um movimento de elaboração teórica de Lacan que convém ao menos delinear sua história. Desde 1953, Real, Simbólico e Imaginário são categorias indispensáveis na estrutura do ensino lacaniano, quando, em uma conferência intitulada sobriamente O simbólico, o imaginário e o real, Lacan (1953c/2001) conceberá essas categorias conjuntamente. Já naquela conferência, Lacan anunciava existir, na base de todos os fenômenos presentes na análise, uma “confrontação desses três registros que são bem os registros essenciais da realidade humana” (LACAN, 1953c/2001, p. 409)96. Nos primeiros seminários de Lacan, as investigações recaíram sobretudo no problema do Imaginário, em especial na formação do eu e nas relações com o ideal. A partir de suas investigações sobre a psicose, Lacan começou cada vez mais a deslocar seu interesse ao funcionamento do Simbólico através de releituras de trabalhos dos linguistas e antropólogos estruturalistas, chegando, em seu quinto seminário, a ler o Édipo estabelecendo as distinções entre os fenômenos imaginários do processo e os elementos que o estruturariam simbolicamente (LACAN, 1957, 1998). O esforço em distinguir claramente Imaginário e Simbólico, porém, nasce muito cedo na obra lacaniana, sendo seu célebre esquema L – apresentado em seu segundo seminário (LACAN, 1985) – um dos mais importantes meios de clara diferenciação entre ambos os registros, especialmente por ter separado o ‘eu’ e o ‘outro’ (imaginários) do Sujeito e do Outro (simbólicos):

96 Nossa tradução. Texto original: “[...] confrontation de ces trois registres qui sont bien les registres essentiels de la réalité humaine” (LACAN, 1953a/2001, p. 409).

160 Figura 2 – Esquema L97

Assim, pela via estrutural, Lacan diferenciava não apenas Ich [eu] e Es[isso], como fizera Freud (2011) em sua metapsicologia, mas introduzia o correspondente imaginário do ‘eu’ [moi, m] – o ‘outro’ [autre, a], seu semelhante. Igualmente, no esquema L, Lacan sustentava o ‘Sujeito’ [Sujet, S] como uma entidade simbólica do inconsciente, indicando sua contraparte – o ‘Outro’ [Autre, A]. Assim, para além do ‘eu’ e do ‘outro’ imaginários, haveria um outro eixo atravessado ao Imaginário, no qual o ‘Sujeito’ e ‘Outro’ simbólicos se estruturam. Portanto, distinguir Simbólico e Imaginário foi, durante muitos anos, um dos mais árduos trabalhos conceituais de Lacan.

Todavia, o lugar do Real também estava bem demarcado desde a conferência O

simbólico, o imaginário e o real (1953). Sua clara demarcação do real como um registro

autônomo e enlaçado ao Simbólico e ao Imaginário não impediu que Lacan deixasse um enorme vazio explicativo em torno do termo. Lacan explicita tão pouco o Real nessa conferência que dá margem ao Dr. Liebscrutz questionar: “você nos falou do simbólico e do imaginário, mas há o real, do qual você não falou” (LACAN, 1953c/2001, p. 422)98. Com exceção de uma definição seguramente enigmática, “o real ou é a totalidade ou o instante esvanecido” (1953c/2001, p. 422), não há na resposta de Lacan nada que venha a responder propriamente à questão demandada por Liebscrutz. Em seguida, Lacan é imprensado por Françoise Dolto em torno do mesmo tema: “o que você entende por realidade?” (LACAN, 1953c/2001, p. 422). Também à Dolto, Lacan apresenta uma resposta escorregadia.

A despeito da elaboração teórica realizada por Lacan nesses anos, não era infrequente,

97 LACAN, 1954-55, p. 89.

98 Nossa tradução. Texto original: “Vous nous avez parlé du symbolique de l’imaginaire. Mais il y avait le réel, dont vous n’avez pas parlé” (LACAN, 1953a/2001, p. 422).

161 porém, que até 1959 o termo real ainda se remetesse ao domínio da realidade psíquica, muitas vezes evocando a inspiração hegeliana da clássica asserção “o que é racional, é real; e o que é real, é racional” (LACAN, 1953c/2001, p. 420). Com muito exagero, François Roustang (1988, p. 50) chega a dizer que “não existe nenhum texto em que o real seja por si mesmo objeto de um desenvolvimento”. Esse argumento é desmontado por Chaves (2006), que demonstrou o trabalho realizado por Lacan (1955-56/1997), especialmente no seminário As psicoses, para introduzir propriamente a ideia de que, na psicose, tudo o que seria recusado pelo simbólico deveria aparecer no real. Entretanto, por mais que Lacan houvesse realizado um notável trabalho para definir o Real como distinto do Simbólico e do Imaginário, essa diferenciação se conclui efetivamente no momento da passagem da realidade ao Real por ordem da investigação ética da psicanálise. Se as respostas de Lacan aos inquiridores sobre o termo ‘real’ é uma evasiva em 1953, se suas referências ao Real se vão sofisticando até 1959, o seminário A ética da

psicanálise se apresenta como o momento de irrupção no qual Lacan decisivamente apresenta

em sua forma elementar o conceito de real para lidar com o problema da ética da psicanálise. As investigações lacanianas sobre a ética da psicanálise são realizadas no mesmo movimento que leva à elaboração de um conceito de Real como distinto da realidade psíquica.

A passagem realizada por Lacan que diferenciou a realidade (em geral, remetida agora à realidade psíquica) e o ‘Real’ (registro que será remetido ao princípio de realidade e, em última instância, à pulsão de morte), se constitui no instante em que ele busca sondar quais seriam as relações entre a ação moral e a psicanálise:

L'action morale, précisément dans la mesure où elle est entrée dans le réel, où elle ne peut se concevoir, elle, autrement que comme notre action au moment où elle nous apporte, dans le réel, quelque chose qui y apporte du nouveau, qui y crée un sillage, quelque chose qui est en somme là où se sanctionne le point de notre présence, est ceci : à savoir en quoi l'analyse nous y rend - si elle nous y rend apte - en quoi l'analyse nous y amène, si l'on peut dire, à pied d'oeuvre, et pourquoi elle nous y amène ainsi ? Pourquoi aussi elle s'arrête à ce seuil ? C'est là l'autre terme où s'axera ce que j'espère ici articuler, en précisant par là, et dans cette question, ce que j'ai indiqué la dernière fois comme étant les limites de ce que nous articulons, et ce en quoi nous nous présentons capables d'articuler une éthique. Cette notion des limites éthiques de l'analyse coïncide avec les limites de sa praxis considérée comme prélude d'une action