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Direção democrática: a coerência da educação permanente como estratégia de

A problematização, tal como apreendo das teorizações de Foucault, oferece um modo de construir nexos entre conhecimento e sujeito inventando novas possibilidades de exercício do poder. Ou seja, reforçam o caráter político da pedagogia da problematização, que coloca o trabalho e a própria instituição diante do exercício do pensamento. A leitura de Sousa Filho lançou luz sobre um aspecto fundamental das pesquisas de Foucault para analisar a educação:

Estudar o poder, a sujeição, as técnicas de fabricação da subjetivação permitiam a Foucault evitar enganos de pensar a liberdade como aquela constituída por mecanismos jurídicos, com base nos embates com a lei, e assim como quase sempre a temos buscado. A mesma liberdade que, concedida através do aparato jurídico- político do poder é por ele usurpada e serve para legitimá-lo nas suas próprias concessões. Dessa liberdade deve-se desconfiar. (SOUSA FILHO, 2008, p.15)

Por isso, para produzir uma posição ativa no processo de aprendizagem é necessário um certo trabalho sobre si, uma reflexão ética de sua relação com o mundo e, mais especificamente no foco deste estudo, de sua relação com a proteção social pública. Daí a força de perguntas que dispara nos educadores e nos trabalhadores muitas e diversas possibilidades de pensar e agir fora da captura da obediência irrefletida às normas ou da produção de informações ignorando suas finalidades. Irene, no Segundo Ato, corrobora a ideia de que na Assistência Social, território ainda é um mito, dada a distância entre o conceito e as decisões de gestão: Nós na gestão, muitas vezes, perdemos a referência do território. A família está no território. Nós temos o equipamento de referência no território que é o CRAS, temos a relação direta com essa família. Se acontece algum tipo de violação de direito, com o adolescente por exemplo, ele vai para a proteção especial. Muitas vezes os profissionais acabam desconectando essa família da Política, achando que isso é da especial.

Assim, a problematização é um exercício político de combate ao exercício do saber- poder como forma de sujeição: seja ela de trabalhadores e gestores pela universidade; seja de trabalhadores de nível médio de escolaridade por aqueles que possuem graduação; seja dos usuários pelos trabalhadores do SUAS. Exige, portanto, deslocamentos nos modos de pensar e agir, dentro de um espaço e tempo específicos, para produzir respostas (contingentes) ou

propostas (viáveis) diversas daquelas inicialmente consideradas como dadas e imutáveis por ser, supostamente, a expressão da verdade ou da ‘realidade’.

A propósito da relação do sujeito com a verdade, a reflexão de Foucault é oportuna:

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentos de poder. (FOUCAULT, 1979, p.12)

Ao percorrer o trajeto de estudos de Foucault, num engendramento não linear e unívoco, Castro (2006) retoma o espectro dos mecanismos de poder disciplinar e de segurança. Nesse espectro, encontra o tema do governo, da governamentalidade, para expor uma via ainda pouco explorada no campo educativo: o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre o outro e as técnicas de si como exercício de liberdade. Por outras palavras, tal como sugere Sousa Filho:

Quando o sujeito se exercita pelo pensamento a considerar como devendo produzir- se como uma obra de arte, permanecendo mestre de si, vivendo consigo mesmo, repousando em si próprio, refletindo sobre a natureza do seu próprio governo, sendo o sujeito ético que se pensa, sendo capaz de agir em função de uma verdade, e devendo sê-lo pelo exercício da reflexividade e da ação. (SOUSA FILHO, 2008, p. 21)

Ao dar consequências para afirmação de que as situações problemáticas são uma produção coletiva, é fundamental expor seu posicionamento político: a construção de situações problemáticas não é o imediato retrato em negativo da realidade.

Quando digo que as situações problemáticas são coletivas é porque elas dizem respeito a situações e acontecimentos que afetam um conjunto de relações sociais, sejam elas entre os membros da equipe de um serviço ou departamento, entre a equipe e os cidadãos usuários, entre membros de diferentes equipes e instituições ou mesmo entre equipes de trabalhadores e equipe gestora.

Por isso, a reflexão sobre si mesmo é necessária, mas nunca isolada. É um ato reflexivo com o outro, tal como expressam as problematizações de Laís: Acho que a gente está num momento de mudança de paradigma, de tentar não ser mais conservadores. Mas estamos colocando essas famílias e esses indivíduos nas caixinhas! Então ele é da caixinha do CRAS, ora ele é da caixinha do CREAS. Pelas falas, me parece que a gente está brigando por uma população! É uma Po-lí-ti-ca de Assistência Social, nós a dividimos hierarquicamente, mas essa pessoa não está dividida hierarquicamente! Então acho que assim, a gente tem que começar a pensar nessas questões, isso me incomodou bastante aqui.

As situações problemáticas são vividas por um coletivo ativo em um campo institucional em movimento. Tomada nesse sentido, a problematização é uma construção coletiva, uma criação que pode produzir a sensação de potência e vontade de agir, pois ela não resulta da cisão objetividade-subjetividade. A matriz ética e política é de clara inspiração na racionalidade de Baruch Espinosa, que sustenta uma rede de conceitos e autores da qual fazem parte Foucault e Chauí. Esta última, como estudiosa dedicada a este filósofo é capaz de uma síntese clara e precisa:

Espinosa dizia que a razão só inicia o trabalho do pensamento quando sentimos que pensar é um bem ou uma alegria, e ignorar, um mal ou uma tristeza. Somente quando o desejo de pensar é vivido e sentido como um afeto que aumenta nosso ser e nosso agir é que podemos avaliar todo o mal que nos vem de não saber. Pensar, agir, ser livre e feliz constituem uma forma unitária de viver individual e politicamente. Ignorar, padecer, ser escravo e infeliz, também constituem um modo unitário de existir. Por isso, escrevia Espinosa, não há instrumento mais poderoso para manter a dominação sobre os homens do que mantê-los no medo e para conserva-los no medo, nada melhor do que conservá-los na ignorância. Inspirar terror, alimentar o medo, cultivar esperanças ilusórias de salvação e conservar a ignorância são as armas privilegiadas dos governos violentos. (CHAUÍ, 1982, p.57)

A pedagogia da problematização oferece, portanto, aportes para instigar atitudes críticas. No “SUAS em cena” que dá visibilidade ao ponto chave da institucionalização: a crítica da instituição é parte dela mesma, o que lhe imprime dinâmica e caráter histórico. Contribui, portanto, para colocar em movimento as diretrizes do SUAS no cotidiano da gestão do trabalho e da atenção à população. Afinal, como analisa Nogueira,

A gestão participativa depende intensamente de profissionais que dominem o campo técnico-científico e que sejam capazes de pensar de modo complexo, realizar análises concretas de situações concretas e imprimir outro padrão ético à administração pública. (NOGUEIRA, 2004, p.132)

Por isso, o projeto que advogo nesta tese é de que a pedagogia da problematização é capaz de produzir nexos mais consistentes entre educação e trabalho no SUAS. Com isso, eles não se limitam a transmitir conhecimentos, normas e procedimentos. Isso significa adotar um pensamento de “adição” e não de “negação”, ou seja, reconhecer a importância do que já está estabelecido, mas suspendendo, temporariamente, sua prévia autorização para prescrever condutas e procedimentos.

O cotidiano problematizado convoca simultaneamente a produção de sujeitos e objetos do conhecimento, teorias e práticas que se alimentam mutuamente. Os desdobramentos dessa afirmação são objeto do capítulo que segue.