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Cinzele-se que, a partir do fenômeno da hipertextualização, tudo é texto e se torna textual. Como diz Barthes ( 2004; 114), os gregos, atribuíam sentidos múltiplos (polissemia) a todos os fenômenos naturais e humanos: os bosques, as florestas, os rios, as nuvens - tudo era dotado de sentido. Na mitologia grega, Hermes, filho de Zeus, é o mensageiro dos deuses, é quem transmite o conteúdo da mensagem (que só ele conhece e que só a ele foi revelada) dos deuses. Hermes era também o padroeiro das viagens das almas ao mundo inferior (incursões textuais?). Bierlein (2003: 98) registra, citando Yung, a fama de “embusteiro” atribuída ao deus Hermes: daí a incerteza quanto ao con- teúdo que ele diz ser o da “revelação” que os deuses lhe fizeram, suscitando-se, aqui, o limite (incerteza, imprecisão) de toda interpretação:

Hermes é o “embusteiro” em um papel diferente como mensageiro (dos deu- ses), (recordemo-nos de que os mensageiros às vezes enganam, criam “enre- do”, artifícios, artimanhas...), um deus da encruzilhada, e finalmente o condu- tor das almas que vêm e vão para o mundo inferior.

Aliás, vem do mitológico Hermes, e de sua transmissão dos mistérios revelados, a denominação de “corpus hermeticum” (corpo hermético) à coleção de textos, datados dos três primeiros séculos antes de Cristo, composto por fragmentos de magia, religião e tangencialmente filosofia (BLACKBURN, 1997: 181).

O confinamento do texto requer uma leitura que traga à tona, que esmiúce o la- tente, que torne compreensíveis os múltiplos significados em gestação e ao mesmo tem- po produza novas metáforas, como o exemplifica Derrida, referindo-se a frases metafó- ricas de filósofos, carregadas portanto de retórica, em “Gramatologia” (2004: 19/20):

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DESCARTES: “Lendo o grande livro do mundo...”

(...) CLEANTO, em nome da religião natural, nos Diálogos , de HUME: “Es- te livro, que a natureza é, não contém algum discurso ou raciocínio inteligí- vel, mas sim um grande e inexplicável enigma.”

(...) JARPERS: “O mundo é o manuscrito de um outro, inacessível a uma lei- tura universal e que somente a existência decifra.

Aqui, a observação nietzschiana é pertinente: “É sobre tropos e não sobre racio- cínios inconscientes que repousam nossas percepções sensíveis” (2007:59). Da mesma forma, o direito, ao atuar na compreensão dos múltiplos significados das relações pri- vadas e públicas, que se jurisdicionam, mas que antes disso seriam de outra ordem (fa- miliar, patrimonial, societária, etc.), pode ser visto como um método de crítica, de transformação e aperfeiçoamento dessas mesmas relações, assim como de preservação da cultura, que daí se forma; por isso White detectara o caráter multívoco da estrutura do direito, sempre convidando a novas metáforas, contrastantes narrativas e linguagens (MORRISON; 2006, 615). Na mesma linha, Blackburn (1997; 389) mostra que a cliva- gem do texto (literário e jurídico) começa em sua composição mesma (do texto jurídico e literário), no que Waismann chama de “textura aberta”: havendo em todo texto, um conjunto de possibilidades de significados. Retenha-se o direito e a literatura como tex- tos abertos a múltiplas leituras.

Também no direito, a noção de textualidade aberta ganhou sistematização (no sentido de certa ordenação conceitual) na voz do professor Gregório Robles, da Uni- versidade de Palma de Majorca, o qual concebeu uma teoria comunicacional do direito, escorada nas conceituações da semiótica (ciência dos signos) e da hermenêutica (ciência da compreensão). Para embasar sua ‘teoria comunicacional’, Robles erige o direito co- mo sistema de comunicação, e, portanto, como texto:

O direito é texto (...) Quando digo que o direito é texto, quero dizer que o di- reito aparece ou se manifesta como texto, sua essência é ser texto, e sua exis- tência real é idêntica à existência real de um texto (ROBLES: 2005; 19-21).

Prossegue que “todo ordenamento jurídico é um texto verbalizado ou verbalizá- vel, passível de tradução” (ROBLES: 2005; 28. Itálicos do autor). Com isso de verba- lizável e traduzível, haveria no texto jurídico a qualidade de ser aberto à complementari- edade – o que indica que o texto do direito “não surge de uma só vez, mas vai sendo gerado e regenerado progressivamente, como mecanismo autopoiético que é” (RO- BLES: 2005; 29).

Tal textura do direito (o modo de expressar-se e de ser) não é a mesma de outros textos, como o literário, ou o histórico, os quais não criam instituições, conquanto sejam descritivos (a história) e narrativos (ambos, o literário e o histórico), sem contudo cons-

truírem realidades (ROBLES: 2005; 56), e esta construção de realidades (jurídicas) é uma das particularidades essenciais do texto jurídico:

O que distingue o texto jurídico de todos os demais (literário, histórico etc.) é o fato de que através dele se produzem as instituições, como o parlamento, a família, a sociedade anônima, o estado, o processo civil (ROBLES: 2005;. 54. Negritos nossos).

O autor da teoria comunicacional ainda realça a imanência prescritiva do texto, sua função voltada para uma prática organizacional – o que implicaria, é claro, em re- gulação, prescrição, orientação e catalogação de ações presumidas na ampla tipologia jurídica, assim:

O texto jurídico é um texto prescritivo. O que isto significa? Significa sobre- tudo que o texto jurídico está dotado, como uma totalidade, de uma função pragmática determinada que o converte num conjunto de mensagens cujo sentido intrínseco é dirigir, orientar ou regular as ações humanas. Além disso o próprio texto cria as ações que podem ser qualificadas como jurídicas. (ROBLES: 2005; 29. Itálicos do autor).

Em reforço à doutrina que desdenha das definições jurídicas pelo legislador, Ro- bles é severamente irônico:

Uma definição num texto legal não é uma definição, mas uma prescrição que determina, por exemplo, a maneira de compreender uma palavra no âmbito dos significados do ordenamento. (2005; 31)

Tal peculiaridade, prescricional, do texto jurídico já reclama uma certa leitura, sem que se descure, no entanto, que o direito na construção de sua linguagem embebera- se de todas as linguagens do nosso mundo: a científica, a técnica, a sociológica, a psico- lógica (SILVA: 2001, p.18), no que o fenômeno da hipertextualidade é atuante, tal qual, na literatura.

Mais cético quanto à abertura do texto, pois direcionado à possível manipulação da linguagem, Lévi-Strauss (1996: 283) via na escritura poder e exploração: “ela pare- ce favorecer a exploração dos homens, antes de iluminá-los”. Aí já se adentra no mundo da interpretação dos textos, numa perspectiva de criação de sentidos (com finalidades às vezes inconfessáveis ou mesmo ininteligíveis, para além da elucidação textual – o que pode ocorrer indistintamente com o texto jurídico, literário, filosófico.