• Nenhum resultado encontrado

Em Cárcere e fábrica, o direito é abordado a partir da obra de Pachukanis e com uma remissão constante aos textos de Marx, o que permite uma articulação minuciosa entre as formas jurídicas e a formação e desenvolvimento do capitalismo.

A passagem da sociedade camponesa medieval para a capitalista industrial e o completo desenvolvimento desta última são retratados com muita propriedade por Melossi no trecho em que ele afirma que o trabalhador, não mais sujeito ao vínculo direto com o senhor,

(...) deve ser conduzido, doravante, por uma força muito mais indireta, a da coação econômica. Porém, só quando o capitalismo alcançar seu completo desenvolvimento, com a garantia da sua hegemonia material e ideológica sobre toda a sociedade, é que a força da necessidade se tornará uma forma realmente eficiente de regulação social. (2006, p. 50).

De fato, com o desenvolvimento capitalista na era do liberalismo, quando irrompe o crescimento do urbanismo, do pauperismo e da criminalidade, a violência do regulamento logo é substituída pela coação silenciosa das relações sociais. Entretanto, após um breve lapso de tempo, a violência imediata (extra-econômica) rapidamente é “reinvocada contra as primeiras tentativas de organização do proletariado” (MELOSSI, 2006, p. 64). A partir da leitura de O Capital, Melossi mostra, no estudo das casas de trabalho, que o nascente modo de produção capitalista necessita “do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da

sociedade”92, tanto para regular o salário, a jornada e a dependência do operário em favor do capitalista, quanto para entabular as relações interestatais e coloniais (2006, p. 60).

Também a partir da leitura de O Capital, Melossi lembra que a venda da força de trabalho respeita o princípio geral da troca de equivalentes, só podendo ocultar a exploração (a não-equivalência real entre as duas prestações, consubstanciada na mais-valia) por meio das ficções jurídicas do contrato e da liberdade (de contratar) que portam todos os sujeitos de direito.

Já o aporte da obra pachukaniana em Cárcere e fábrica tem seu maior fôlego no aspecto do “direito e violação do direito”, que se aproxima especificamente do fenômeno penal. Logo na apresentação do livro, os autores já se referem ao pensamento de Pachukanis, pontuando que a transição, na história da penalidade, entre a vingança e a pena como retribuição (isto é, como categoria jurídica), “impõe, como pressuposto necessário, o domínio cultural do conceito de equivalente, medido como troca de valores (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 22).

Assim, embora a penalidade medieval já apresentasse, em certa medida, a natureza de equivalente (retributio), seu sentido predominante era o de castigo divino (expiatio). Através da imposição de castigos espetaculares, operava-se “a perda do medo coletivo do contágio, provocado originariamente pela violação do preceito” (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 22). A conexão entre o modo de produção capitalista e o surgimento da instituição prisional moderna é, então, explicitada:

92

(...) na presença de um sistema socioeconômico como o feudal, no qual ainda não se historicizara completamente a ideia do ‘trabalho humano medido pelo tempo’ (leia-se, trabalho assalariado), a pena-retribuição, como troca medida pelo valor, não estava em condições de encontrar na privação do tempo o equivalente do delito. O equivalente do dano produzido pelo delito se realizava, ao contrário, na privação daqueles bens socialmente considerados como valores: a vida, a integridade física, o dinheiro, a perda de status. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 22).

Paralelamente ao sistema punitivo feudal laico, o direito penal canônico punia as infrações religiosas dos clérigos através de um regime penitenciário, que variava entre reclusão em mosteiro, cela ou prisão episcopal (acompanhadas ou não de sofrimentos físicos, isolamento celular e obrigação de silêncio). A penalidade canônica não se utilizava do trabalho carcerário, o que, para os autores italianos, indica que a privação da liberdade por um período determinado de tempo no direito canônico tinha um significado de “tempo necessário à purificação segundo os critérios próprios do sacramento da penitência” (2006, p. 25), que muito diferia daquele incorporado pela prisão capitalista moderna, quando a privação da liberdade em si passa a constituir a pena. Tampouco se fundava o regime penitenciário canônico sobre a periculosidade do condenado-pecador, mas sim na gravidade das faltas.

O direito penal moderno que surge a partir do final do século XVIII tem características distintas dos sistemas anteriores. Na França revolucionária, o Código Penal de 1791 consagra a supremacia da pena detentiva sobre as demais modalidades de punição. Introduz-se o princípio da proporcionalidade e da legalidade, reduzindo o arbítrio dos juízes através da codificação. Esses princípios, segundo Melossi, derivavam da luta da burguesia contra o Estado absolutista, mas se convertem aos poucos numa arma na luta entre proletariado e a mesma burguesia.

Tais conquistas burguesas são, por conseguinte, muito mais destinadas a consolidar a hegemonia da própria classe sobre o conjunto da estrutura social – e, portanto, objetivamente, contra o proletariado enquanto tal – do que a lutar contra o Estado absoluto, o qual, por sua vez, na medida em que torna seus esses princípios, encontra-se cada vez mais em mãos burguesas. Trata-se, portanto, de conquistas genuinamente burguesa-revolucionárias, no sentido de que revolucionam a velha gestão da questão punitiva, adotando os novos critérios das relações capitalistas de produção (MELOSSI, 2006, p. 91-92).

Portanto, Melossi e Pavarini endossam a proposição pachukaniana de que só foi possível a construção de um sistema penal de retribuição equivalente, em que se pune o delito com a supressão de um quantum de liberdade correspondente, numa sociedade baseada na noção de trabalho humano abstrato medido pelo tempo.

(...) o conceito de trabalho representa a ligação necessária entre o conteúdo da instituição [punitiva] e a sua forma legal. O cálculo, a medida de pena em termos de valor-trabalho por unidade de tempo, só se torna possível quando a pena é preenchida com esse significado, quando se trabalha ou quando se adestra para o trabalho (trabalho assalariado, trabalho capitalista). Isso é verdade mesmo se não se trabalha no cárcere: o tempo (o tempo medido, escandido, regulado) é uma das grandes descobertas deste período também em outras instituições subalternas, como a escola (MELOSSI, 2006, p. 91).

Neste sentido, os autores de Cárcere e fábrica mostram que a natureza contratual da pena, a possibilidade lógica de comparar “valor-delito” e “valor-pena” e o princípio da proporcionalidade (entre delito e pena) são as traduções, ao nível jurídico-penal, das relações

sociais capitalistas, baseadas na troca de equivalentes e no “valor de troca” (PAVARINI, 2006, p. 261).

Também a questão da certeza da repressão e da racionalização do direito penal moderno, em oposição à aplicação indiscriminada e arbitrária das penas anteriores, é entendida como uma exigência para “transformar o direito penal em instrumento – agora consciente – da política de conrole social burguês” (PAVARINI, 2006, p. 261). A racionalidade proclamada deve coincidir com as necessidades instrumentais da lógica capitalista.

Em Cárcere e fábrica, há uma conexão intrínseca entre a juridicidade da circulação dos bens e a exploração, a autoridade, a violência de sua produção. “O conteúdo da pena (a ‘execução’) está, desse modo, ligado à sua forma jurídica, do mesmo modo que na fábrica a autoridade assegura que a exploração possa assumir o aspecto de contrato” (MELOSSI, 2006, p. 91). E é justamente o fetichismo jurídico que faz com que a “liberdade” do trabalhador e do preso, expressa pelo direito iluminista na forma geral do contrato, não passe de uma sanção da força econômica, que substitui a força jurídico-político-militar do feudalismo (MELOSSI, 2006, p. 51).

De fato, liberdade e igualdade não são possíveis no modo de produção econômico capitalista em função da imprescindibilidade de extração da mais valia, mas tampouco o processo do valor de troca é possível sem essas garantias. Enquanto garantias, elas asseguram somente a formalidade de sua existência irrealizável na práxis (SILVA, 2008, p. 76-77).

Com base nas construções teóricas de Pachukanis, Althusser e Edelman, podemos revisitar a oposição entre direito e disciplina, exposta em Vigiar e punir, para enxergá-la como contradição objetiva entre uma razão contratual e uma necessidade disciplinar, que reflete “a

aporia presente no próprio modo de produção capitalista, entre a esfera da distribuição ou circulação e a esfera da produção ou de extração de mais-valia” (PAVARINI, 2006, p. 264).

O contrato pode, portanto, ser assumido felizmente como fundamento ideal do poder político burguês, contanto que se reconheça, como co-essencial a este, o princípio disciplinar que sustenta o aparato técnico da coerção. Se a pena da privação da liberdade se estrutura, pois, sobre o modelo da ‘relação de troca’ (enquanto retribuição por equivalente), a sua execução (leia-se, penitenciária) é moldada sobre a hipótese da ‘manufatura’, da ‘fábrica’ (enquanto disciplina e subordinação). (PAVARINI, 2006, p. 264).

A pena como retribuição é o momento do direito, da igualdade formal e da certeza jurídica; por outro lado, a pena como execução é o momento da disciplina, da subordinação política e da arbitrariedade factual. Todavia, a inovação de Cárcere e fábrica em face de Vigiar e punir reside na compreensão da ligação entre esses dois momentos contraditórios a partir da teoria marxista da forma jurídica. O momento do direito não é suspenso pelo momento da disciplina, como afirmou Foucault. O direito vive da contradição mesma de fixar e garantir a realização da circulação pela troca de equivalentes, por um lado, e possibilitar a produção baseada na exploração do homem pelo homem, por outro.

CAPÍTULO IV

SUBJETIVAÇÃO CAPITALISTA E SUJEITO DE DIREITO