• Nenhum resultado encontrado

3. A FRUSTRAÇÃO SILENCIADA GANHA VOZ

3.1. Direito como reprodutor de hierarquias

É indiscutível o caráter elitista das faculdades de Direito e do mercado de trabalho jurídico. A política de cotas se esforça para amenizar as desigualdades nas salas de aula. Contudo, a diversificação por ela provocada não é o bastante para atender plenamente as legítimas demandas dos que dela se beneficiam. O abismo entre classes, aos olhos de quem quiser ver.

Sobre a questão profissional, as disparidades se mostram inquietantes. Os concursos públicos, regalia acessível aos disciplinados de médio e longo prazo, englobam a preocupação social inerente aos avanços das ações afirmativas. Entretanto, na iniciativa privada, escolha dos que normalmente não as têm, a dinâmica é distinta.

Não há de que se enganar. É ingênuo acreditar que um país de desenvolvimento desigual e excludente, de cidades marcadas pela marginalidade social visível, estaria imune a um desenvolvimento judicial desigual, à marginalidade judicial. A maioria da população brasileira não tem acesso à Justiça, como não tem acesso a outros bens materiais de consumo. O autoritarismo político e a desigualdade social não moldam apenas nossas cidades. Moldam também nossa prática judicial. Mais especificamente: pretendem moldar o desempenho profissional dos advogados, e do Judiciário.33

Os obstáculos surgem desde a graduação. Nos processos seletivos para estágios, muitos recrutadores – a despeito do absurdo das indicações já descrito aqui – levam essencialmente em consideração aspectos sociais e estéticos dos candidatos. Dessa forma, o rendimento intelectual dos oriundos de categorias menos favorecidas é escanteado. O ter em detrimento do ser.

A falta de representatividade para tais grupos funciona como significativo instrumento de desestímulo. Nas salas de aula, poucos normalmente são os professores nos quais o alunado vulnerável se vê identificado no que se refere aos passos de superação traçados até ali chegar. A discrepância de vidas como choque de realidade.

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. A ponderação da filósofa e referência na luta pela igualdade racial e social Angela Davis retrata com precisão os desdobramentos que o

status quo espera evitar ao dificultar o avanço dos que não são homens brancos

em direção ao sucesso pessoa e profissional.

Á primeira vista, pode parecer que haveria uma tensão constante entre as demandas das duas hierarquias, uma vez que não há razão para acreditar que o mérito profissional seja distribuído além de aleatoriamente em relação à classe, sexo ou raça. Mas existem práticas dentro do sistema que trabalham para minimizar ou eliminar completamente essa tensão. A primeira é que o sistema de classe/sexo/raça alcança as pessoas muito antes do profissional, e as cria de tal maneira que elas, com algumas exceções legítimas, parecem merecer, por motivos profissionais, a posição que é de fato baseada em outras coisas. Suas chances de terminar em uma faculdade de direito “superior” são diretamente proporcionais ao seu status no nascimento.3435

A aparente intransponibilidade do machismo e do racismo estruturais na sociedade brasileira se apresenta escancarada nas esferas jurídicas pública e privada. No alto escalão do Judiciário, conta-se nos dedos das mãos o número de juízes, desembargadores e ministros negros. A constatação, na iniciativa privada, segue o mesmo absurdo.

Exemplifica-se o inescondível absurdo referente aos obstáculos enfrentados pelas mulheres no país o cenário de representação do gritante patriarcado existente no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que contempla a 2ª instância da Justiça Federal dos Estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Extremamente constrangedor observar que tal Tribunal, cuja jurisdição é exercida em seis Estados nordestinos, não possui em sua composição nenhuma desembargadora federal36. Basta raciocinar um pouco e se verá que

34 No original: “At first glance, it might appear that there would be a constant tension between the

demands of the two hierarchies, since there is no reason to believe that professional merit is distributed other than randomly with regard to class, sex or race. But there are practices within the system that work to minimize or altogether eliminate any such tension. The first is that the class/sex/race system gets hold of people long before the professional one, and creates them in such a way that they will, with some legitimating exceptions, appear to deserve on professional grounds the position that is in fact based on other things. Your chances of ending up at a “top” law school are directly proportional to your status at birth”.

35 KENNEDY, Duncan. Op. Cit., p. 37-38.

36 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. Composição. Disponível em:

<https://www.trf5.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=661&Itemid=241> Acesso em: 29 nov. 2019.

não faz sentido tamanha lacuna de representabilidade, que desprestigia as magistradas federais de piso.

Figura 1: Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Fonte: http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=58643&pagina=1

Uma imagem vale mais do que mil palavras. O recente retrato dos desembargadores e desembargadoras do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo simboliza de forma cruel a assombrosa deficiência de pluralismo em seu corpo. Poucas mulheres, raríssimos negros, incontáveis privilegiados homens brancos e a natural sensação dos jurisdicionados vulneráveis de que a empatia em seus julgamentos será escassa.

Há poucos dias o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou pesquisa na qual aponta que pela primeira vez os alunos negros se tornaram maioria nas universidades públicas. Contudo, nas faculdades de maior concorrência, como a jurídica, o destacado índice ainda não ultrapassou os 50% do alunado37.

37 FERREIRA, Paulo; TATSH, Constança. Negros são maioria na universidade pública, mas não

nos cursos concorridos. O Globo, 20 nov. 2019. Disponível em:

<https://oglobo.globo.com/sociedade/negros-sao-maioria-na-universidade-publica-mas-nao- nos-cursos-concorridos-24089329> Acesso em: 29 out. 2019.

Verifica-se o positivo resultado da política de ações afirmativas, criticada frontalmente pelos que nasceram em berço de ouro. Navega-se, no contexto em questão, rumo a um ambiente no qual as possibilidades de qualificação dos historicamente marginalizados se aproximem ao oceano de vantagens dos potencialmente opressores.

Mas, por que lembrar essa história das faculdades de direito? Por que lembrar esse papel dos cursos jurídicos na formação de nossos cientistas sociais? Na formação de nossos jornalistas? Na formação de nossos políticos? A resposta é simples. Por algum motivo, este papel histórico das faculdades de direito ainda está presente no imaginário dos juristas. De muitos juristas. Mesmo dos juristas mais críticos. Uma faculdade de direito que proporcione uma formação holística. Uma formação humanista. Uma faculdade de direito que seja um espaço de formação política. Esquece-se, no entanto, que os tempos mudaram. E, principalmente, que o aluno de nossos cursos de direito também mudou. Não é mais o filho das elites sociais. Muito pelo contrário. Temos de olhar de frente para o nosso aluno de direito. Um indivíduo com formação deficiente. Com baixo nível de leitura. Com pouca informação acumulada. Um indivíduo que não vai se transformar em Raymundo Faoro. E que nem quer. Que quer apenas melhorar de vida. Que sonha com um concurso público no qual nunca vai ser aprovado. Que terá dificuldades até mesmo em ser aprovado no Exame de Ordem e entrar na entidade de classe. Negar este estudante é desconhecer a realidade de nossos cursos, por mais que isso seja duro, principalmente para nós professores. Olhar de frente a realidade é, com certeza, compreender toda a dimensão medíocre de nossa profissão. E isso é difícil. Muito difícil, pois atinge nossos próprios ideais.38

Como bem observado pela professora Eliane Botelho Junqueira, em concordância ao subcapítulo 3.3 desta tese, as faculdades de direito concebem múltiplos profissionais, dentre os quais jornalistas e políticos. Portadores de camaleônica bagagem teórica, os bacharéis e advogados que optam pelas vias inconvencionais sobressaem-se pelo prisma peculiar.

Documentos relacionados