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2. A FORMA JURÍDICA E O CAPITALISMO

2.3. Direito e Estado capitalista

Há muito que se dizer sobre o Estado, e em particular sobre o Estado capitalista. Tendo em vista os limites em que se circunscrevem esta obra, buscaremos expor apenas o indispensável para dar fechamento ao raciocínio e para preparar as abordagens dos próximos capítulos.

No que tange ao Estado, o marxismo é um verdadeiro divisor de águas. Assim como compreendeu a luta de classes como o motor da história e o conflito capital-trabalho como a relação social específica que molda a modernidade em última instância, viu no Estado a cristalização do domínio de classe. Onde o pensamento acrítico enxerga paz e harmonia, a dialética de Marx denuncia contradições fundamentais. Longe de ser o produto do acordo de indivíduos que se entregam a um contrato social ou o paroxismo da razão, o Estado é fator de subjugação das classes laboriosas e de reiteração dos pilares sociais. A igualdade jurídica chancelada pelo Estado não é mais do que a maneira como a desigualdade espoliativa do capitalismo se apresenta, num vivo contraste entre aparência e essência.

No interior do espectro marxista, abarcando autores tão diferentes como Bukharin, Gramsci e Althusser, vinga a concepção elementar de que o Estado constitui um conjunto de aparelhos que, orientados para a reposição sistêmica, exercem funções repressivas (exército, polícia, tribunais etc.) e ideológicas (escola, mídia, igreja etc.)39. A dominação burguesa se exerceria pela força ou pelo consenso, sendo que o consenso é sempre escudado na força. Ao fim da mansuetude das massas, vem o momento da violência organizada contra as ações dos irresignados. Assim, o Estado compreende as linhas de defesa de uma dada sociedade de classes, quer dizer, do seu modelo de exploração, seja tutelando contratos ou esmagando ameaças à propriedade, seja arregimentando corações e cérebros para a paz social. Sem esta intervenção estatal, o edifício que abriga a extração de sobretrabalho não se sustenta. Não haveria acumulação e reprodução possíveis.

Cumpre postular desde já que a concepção dicotômica (repressão-ideologia) do fenômeno estatal não é capaz de esgotá-lo, como nos previne Nicos Poulantzas. Este teórico enfatiza que leituras baseadas apenas da citada dicotomia reduzem o Estado a uma força que agiria apenas negativamente, proibindo e ocultando40. Não se trata de negar, de modo algum, o papel da força e do consenso, mas sim de lançar luz sobre a função econômica direta do Estado enquanto agente indispensável ao processo de reprodução do capital. Seria necessário, assim, falar também em aparelhos econômicos de Estado, se quisermos preservar a nomenclatura althusseriana. As intervenções estatais na economia, cada vez mais indispensáveis, configuram uma conduta positiva na preservação do capitalismo. A ideia de um Estado garante das relações de produção está indubitavelmente correta,

39 Althusser, por exemplo, estabelece uma divisão entre aparelhos repressivos de Estado e aparelhos

ideológicos de Estado, sendo que, nos primeiros, predomina o uso da coerção, ao passo que nos segundos predomina a cooptação. O aparelho jurídico, em particular, seria a um só tempo repressivo e ideológico. Conferir mais em ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre

os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros

de Castro. São Paulo: Graal, 2007. A teoria de Edelman é do mesmo tom, inferindo que “le Droit

assume cette double fonction de fixer concrètement et ‘imaginairement’ – et il vaudrait mieux dire que la fixation concrète juridique est en même temps idéologique – l’ensemble des rapports sociaux”

(EDELMAN, Op. Cit., 2001, p. 104). Traduzindo: “o direito assume esta dupla função de fixar concreta e imaginariamente – e seria melhor dizer que a fixação concreta jurídica é ao mesmo tempo ideológica – o conjunto das relações sociais”.

40 “Em suma, o Estado também age de maneira positiva, cria, transforma, realiza. Não se pode tomar

as atuais ações econômicas do Estado, a menos que se faça um jogo de palavras, sob o exaustivo ângulo da repressão e da doutrinação ideológica, ficando claro, contudo, que estes aspectos existem claramente na materialidade das atuais funções do Estado” (POULANTZAS, Nicos. O Estado, o

desde que assumida com uma amplitude que abrigue medidas econômicas cotidianas em favor do capital, algo distante da imagem transmitida por um mero “vigilante” de prontidão.

Das dimensões do Estado que comentamos, aquela que se comunica mais diretamente com a forma jurídica é a repressiva41. Se os sujeitos de direito, por serem iguais entre si, não podem coagir seus pares a observarem as regras do jogo (assim como os portadores de mercadorias não podem subjugar uns aos outros no mercado), esta tarefa recai sobre uma autoridade que não se confunde com nenhum indivíduo, e que é capaz de, legitimamente, exercer a coação. Ela deve, monopolizando a violência, mensurar (e não atribuir) os direitos de cada um conforme cada relação jurídica, assegurando a igualdade dos sujeitos inspirada no critério de equivalência da lei do valor.

Ao considerarmos que a exploração das classes dominadas e a reprodução social, no capitalismo, mediatizam-se por uma relação mercantil (compra e venda de força de trabalho no processo de produção), podemos concluir com Joachim Hirsch que numa formação social capitalista é preciso que a exploração e a reprodução das classes “não se efetuem (...) diretamente pela utilização física da violência, mas através da própria reprodução das relações de produção, regida pela lei do valor42”. Em outras palavras, o açambarcamento do produto excedente opera-se exclusivamente no universo econômico, cabendo ao poder político uma atuação subsidiária. A equivalência entre os guardiões da mercadoria salário e os guardiões da mercadoria força de trabalho exige um tipo de Estado que observe a igualdade entre as partes, o que o impede de se associar expressamente a uma delas. Consequentemente, há uma separação do aparelho de coerção física em face da classe dominante, a qual se coloca na relação com a classe dominada como um conjunto de contratantes dispostos a trocar valores equivalentes com os trabalhadores que contratam. Os conflitos entre as partes devem ser submetidos à

41 Dimensão esta que é ideologicamente envolvida pela “concepção jurídica de mundo”, cumprindo

um papel de secularização da visão teológica: “O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja, pelo estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo estado” (ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O

socialismo jurídico, 2.ª ed.. Tradução de Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho Naves. São Paulo: Ensaio,

1995, pp. 24-25).

42 HIRSCH, Joachim. Observações teóricas sobre o Estado burguês e sua crise. In: POULANTZAS,

Nicos (org.). Estado em crise. Tradução de Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 88.

apreciação de uma autoridade desinteressada, um aparato que, nestas circunstâncias, assume a feição de um ente público, que contempla a comunidade como um oceano de indivíduos que se nivelam apenas sob as lentes jurídicas. Está posta, enfim, a compleição do Estado propriamente capitalista, o fecho do esquema jurídico na maturidade das trocas mercantis.

Uma notável particularidade desse Estado capitalista, há de se observar, é a sua separação formal das classes sociais, em chamativa oposição aos Estados feudal e escravista. Joachim Hirsch intervém no seguinte sentido:

A separação formal entre o Estado e as classes sociais engloba um modo específico de institucionalização das relações de classe. O que faz com que as classes economicamente dominantes e as governantes – isto é, as classes proprietárias e aquelas que dirigem os aparelhos de Estado – não sejam idênticas43.

A dominação política é efetivada por agentes diferentes daqueles que efetivam a dominação econômica, o que joga mais água no moinho da ideologia burguesa e se materializa no perfil institucional do Estado burguês, baseado numa pretensa neutralidade que, em definitivo, reflete a configuração social de relações de classe mediatizadas pela igualdade jurídica.

Salta aos olhos, pelo que expusemos até aqui, a contradição entre aquilo que o Estado é (garante das relações de produção) e aquilo que o Estado sugere sobre si mesmo, e sem falsa modéstia (ente público, promotor do bem comum). Encarando a questão, Ruy Fausto indica que o Estado, em Marx, e no que diz respeito a sua dimensão mais relevante para a forma jurídica, é concebível em dois momentos: o da aparência (guardião da identidade dos contratantes) e o da essência (violência concentrada, uso da força de conservação). A utilidade deste enfoque, para o direito, está em demonstrar que a violência está no cerne do Estado, corresponde ao que ele é de fato. A força bruta que emprega é a força que a burguesia está impedida de empregar diretamente, e que é imprescindível para a manutenção do modo de produção capitalista. Trata-se da violência que cimenta os tijolos de um mundo de exploração, de um universo em que uma camada inteira da população é agredida economicamente, usurpada na riqueza que fabrica e no seu tempo de vida. Logo, “a violência do Estado (...) ‘reflete’ (...) a violência no interior da sociedade civil, isto é, a

43 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processos de transformação do sistema

violência do capital44”. No Estado, a violência da sociedade civil se manifesta, ainda que de modo distorcido, como se decorresse de uma entidade descomprometida com o conflito de classe. Direito e Estado caminham de mãos dadas para, como dizia Trotsky na epígrafe com que abrimos o capítulo, recobrir com “um verniz de boas maneiras” a exploração do homem pelo homem.

A seguir, voltaremos nossos olhares para os chamados direitos humanos de primeira dimensão. Sustentaremos que, em que pesem seu caráter progressista e os condimentos históricos oriundos das lutas dos trabalhadores, os direitos políticos e civis devem-se primordialmente à singularidade do uso da força pelo Estado capitalista no interior das relações sociais que tutela, reportando-se ao regime burguês de dominação.

44 FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política: Investigações para uma reconstituição do sentido da

dialética: tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 302. Conceber a violência do Estado como

violência da comunidade, ou melhor, da exploração de uma parte da comunidade sobre a outra, é condizente com a interpretação poulantziana acerca do poder: “O conceito de poder não pode assim ser aplicado a um nível de estrutura: quando se fala, por exemplo, de poder de Estado, não se pode indicar com isso o modo de articulação e de intervenção do Estado nos outros níveis da estrutura,

mas sim o poder de uma classe determinada, a cujos interesses o Estado corresponde, sobre outras

classes sociais” (POULANTZAS, Op. Cit., 1977, pp. 95-96). Para Poulantzas, as relações de classe são relações de poder e as relações de poder são relações de classe.

3. O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E OS DIREITOS HUMANOS DE