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1.2 O direito de acesso à informação e seus elementos restritivos

1.2.1 O direito à intimidade

O direito à intimidade se refere ao direito a estar só e ao direito de excluir do conhecimento de terceiros aquilo que só se refere ao indivíduo no âmbito da vida privada. Arendt (1997) aponta que o nascimento desse direito está relacionado com a emergência da esfera social no mundo moderno, bem como sua sobreposição sobre as esferas pública e privada. A autora fundamenta seu argumento analisando as fronteiras entre o público e o privado na Grécia Antiga. Conforme a concepção grega, havia uma oposição entre a esfera privada (referente ao que é próprio: ídion) e a esfera pública (referente ao que é comum: koinon). A esfera privada (âmbito familiar) era entendida como aquela em que os homens estão juntos por necessidade, por questão de sobrevivência e perpetuação da espécie. A esfera da polis, ao contrário, era o espaço do exercício da liberdade. De acordo com Arendt,

A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer ‘iguais’, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava submissão (ARENDT, 1997, p. 41).

Havia, portanto, uma distinção clara entre as duas esferas, sendo que o mundo privado (da família) não poderia ser invadido pelo mundo público (da polis) e vice-versa. Em outras palavras, nenhuma atividade cuja finalidade era garantir o sustento do indivíduo era digna de adentrar a esfera política. Da mesma forma, o público não poderia penetrar nos limites do lar. Não obstante a clara distinção, esses mundos se relacionavam, pois, só era cidadão o homem

que possuísse um lar, que chefiasse uma família e que pudesse vencer as necessidades de sobrevivência para participar na vida da polis6. Na modernidade, houve um alargamento da esfera do privado que, confundida com a esfera social emergente, passou, gradativamente, a ocupar os espaços da esfera pública. A política se tornou uma função da sociedade e, com isso, ficou muito difícil perceber as diferenças que separam tais esferas. Arendt explica que

com a ascendência da sociedade, isto é, a elevação do lar doméstico (oika) ou das atividades econômicas ao nível público, a administração doméstica e todas as questões antes pertinentes à esfera privada da família transformaram-se em interesse ‘coletivo’. No mundo moderno as duas esferas constantemente recaem uma sobre a outra, como ondas no perene fluir do próprio processo da vida (ARENDT, 1997, p. 42).

A autora acrescenta que não houve apenas uma sobreposição entre público e privado, mas o próprio significado dos termos foi alterado. Para os gregos, a esfera privada significava o estado no qual o indivíduo se privava de alguma coisa, o homem que vivia exclusivamente uma vida privada se igualava ao escravo ou ao bárbaro uma vez que não participava da esfera política. Na modernidade, a privatividade tomou outra acepção, não é o oposto da esfera política (como era para os gregos), mas é o oposto da esfera social. Na privatividade moderna a função essencial não é mais o provimento das necessidades vitais, esse, passa para a esfera do social por meio da economia7. A função essencial da privatividade é justamente proteger aquilo que é íntimo.

Lafer (1991) esclarece que a esfera social é uma esfera híbrida, na qual as pessoas passam a maior parte de suas vidas e sobre a qual não podem ser aplicadas as distinções clássicas entre público e privado existentes no mundo grego. O princípio característico da esfera social é a variedade e a diferenciação. Cada um de nós ingressa na esfera social por motivos variados: desde seguir uma vocação até se associar a pessoas cujos interesses

6 O espaço do lar era o lugar de realização das atividades econômicas essenciais para a sobrevivência e que não

eram tratadas na esfera política, assim, a posse de escravos, por exemplo, libertava o homem do exercício das atividades de sobrevivência para participação na polis.

coincidam com os nossos. Não obstante, é na esfera social que emerge o risco do conformismo, do nivelamento e da proeminência do comportamento homogêneo. Foi justamente para que o indivíduo preservasse sua identidade que se tornou necessário abrir um espaço para a esfera da intimidade. Essa por sua vez, tem como princípio básico a exclusividade que, em muitos casos, pode ser oposta ao conformismo social. O que se passa na vida íntima não interfere no direito de terceiros e, nesse sentido, não é de interesse público e não pode ser tratado como tal. Assim, o privado é o que diz respeito ao indivíduo em sua singularidade, e que deve, por isso mesmo ser preservado, ficar protegido da luz da publicidade.

Ainda que esboçado principalmente durante os séculos XVIII e XIX, o direito à intimidade, assim como o direito à informação, ganhou maior relevância após a Segunda Guerra Mundial. Os regimes totalitários foram a expressão máxima de destruição do espaço privado, mas não podemos deixar de citar também todas as violações realizadas em diversos países tendo em vista o contexto bélico. Como resposta, o direito à intimidade da vida privada passou a ocupar lugar de destaque no ordenamento jurídico internacional. Esse direito está previsto na Declaração dos Direitos do Homem de 1948, cujo artigo 12 determina: "Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem direito à proteção da lei” 8. Ou seja, a valorização do direito à intimidade relacionava-se à necessidade de expansão dos valores democráticos e de proteção do indivíduo no contexto do pós-guerra. Todavia, foi também a partir da segunda metade do século XX que assistimos a uma crescente interferência do Estado na esfera do privado. Como exemplos, podem ser citados o alargamento do poder de polícia, a execução da atividade

8

O direito à intimidade consta também no Pacto da ONU sobre Direitos Humanos e Civis (art. 17), na Convenção Européia de 1950 sobre os Direitos do Homem (art. 8) e na Convenção Americana de 1969 sobre os Direitos do Homem (art. 11) (LAFER, 1991).

judiciária e os avanços na área da tecnologia da informação. Bobbio em uma colocação bastante esclarecedora, afirma:

[...] se é verdade que num Estado democrático o público vê o poder mais do que num Estado autocrático, é igualmente verdadeiro que o uso dos elaboradores eletrônicos (que se amplia e se ampliará cada vez mais) na memorização dos dados pessoais de todos os cidadãos permite e cada vez permitirá mais aos detentores do poder ver o público bem melhor do que nos Estados do passado. Aquilo que o novel príncipe pode vir a saber dos próprios sujeitos é incomparavelmente superior ao que podia saber de seus súditos mesmo o monarca mais absoluto do passado (BOBBIO, 1995, p. 31)

O direito à informação e o direito à intimidade surgiram, portanto, quase que concomitantemente e encontram suas bases no próprio desenvolvimento do Estado moderno e na constituição do regime de informação correspondente. Na configuração atual, tais direitos relacionam-se, por um lado, à necessidade de proteção da integridade moral do indivíduo, e, por outro lado, à liberdade democrática de participar da esfera pública. O direito à informação e o direito à intimidade são, portanto, delimitadores mútuos, sendo que a sobreposição de um sobre o outro pode acarretar prejuízos para os indivíduos ou para a coletividade.