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Capítulo III – Aplicações no âmbito jurídico

1. Os aspetos jurídico-criminais

1.1. Direito à reserva da vida privada

O direito à intimidade da vida privada pode ser posto em causa quando existe a inserção de um perfil genético na base de dados. A todos são reconhecidos os direitos à reserva da intimidade da vida privada21 e garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias22. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem23.

Este direito surge como sendo inato à vida do indivíduo do mesmo modo que pode ser lesado caso exista uma intervenção corporal necessária para a prova de ADN (Rodrigues, 2010).

Segundo Botelho (2013), ”a par do bem jurídico reserva da vida privada aparece o bem jurídico privacidade, pelo que importa mobilizar ambos” (p.198).

21Artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa 22Artigo 26.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa 23Artigo 80.º do Código Civil

38 No direito à privacidade, art.º 26 n.º 1 e n.º 2 e art.º 35 n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, cada indivíduo deve ser livre de determinar, o tipo de informação disposta a facultar e ter o direito de ser imune a intrusão por parte do estado (Pereira, 2008). Estes dois direitos são violados na inserção de perfis genéticos na base de dados de perfis de ADN.

Segundo Raposo (2010), a nossa jurisprudência constitucional diz que o direito é a “uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular”24 (p.946). Autora ainda afirma que a esfera é “uma zona tripartida que dá lugar a três esferas concêntricas – a vida íntima, a vida privada e a vida pública- numa progressão da mais restritiva à mais ampla” e “a intimidade da vida privada, de que fala o nosso texto constitucional, representa uma esfera mais restrita do que a privacidade (ou vida privada), que seria um círculo mais dilatado” (p.946).

Não é um direito absoluto, podendo ser restringido, através do consentimento ou mediante autorização (Moniz, 2002).

A lesão ao direito à reserva da vida privada surge-nos a três níveis, o primeiro é quando existe a recolha da amostra biológica, a segunda é quando esta é analisada e fixa os perfis de ADN e a última é quando os perfis são inseridos em ficheiros manuais ou automatizados de dados, com finalidade de identificação civil e criminal (Rodrigues, 2010).

Posto isto, não se pode esquecer, o artigo 8.º n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, prevê que determinadas situações este direito pode vir a ceder face a outros interesses de natureza coletivo, como caso de perseguição de crimes de especial gravidade. Por isso, uma intromissão na vida privada do indivíduo, mediante intervenção corporal, não significa que exista uma violação deste direito (Rodrigues, 2010).

O direito à reserva da vida privada desdobra-se em dois direitos, o que impede o acesso a estranhos de informações sobre a vida privada e familiar do indivíduo como o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre o indivíduo (Botelho, 2013). É o direito da autodeterminação informacional e o direito à intimidade genética.

24Acórdão n.º 128/92 de 1 de Abril de 1992; Acórdão n.º 319/95 de 20 de Junho de 1995;

39 O direito à autodeterminação informacional, consagrado no artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa, esta em causa com a construção de uma base de dados com perfis genéticos. Este é um direito amplo e que concede a todos os cidadãos o direito de acesso a todos os dados que lhe digam respeito, podendo exigir a retificação e atualização, bem como o direito de conhecer a finalidade com que é construída a base (Moniz, 2002). Devemos ter em atenção e salvaguardar toda a informação obtida de cada indivíduo, para mais tarde se consiga decidir se deve ser submetido a testes genéticos.

Moniz (2002) refere que o direito à autodeterminação informacional é “simultaneamente um direito garantia do direito à reserva da vida privada e um direito fundamental que se traduz na faculdade de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pessoais”, autora ainda afirma que não é ”um direito de carácter ilimitado: por vezes a pessoa tem que suportar limitações a este direito em nome de interesses da própria comunidade” (p.247).

É importante que exista na base de dados uma separação entre os dados relativos à informação genética e a identificação dos indivíduos (Botelho, 2013). A informação genética entende-se como a informação sobre as características hereditárias dos indivíduos através da análise de ácidos nucleicos (Associação Portuguesa De Bioética, 2006).

Nas palavras de Moniz (2002) a,

protecção jurídico-constitucional em matéria de dados pessoais em particular o direito à autodeterminação informacional impede a construção de uma base sem consentimento do titular do dado. E este consentimento deverá abarcar não só a colheita da amostra (obtenção do material), mas também a utilização do material para um banco de dados, com conhecimento das finalidades do banco, os tipos de investigação a desenvolver, os riscos e benefícios potenciais, as condições e duração do armazenamento, as medidas tomadas para garantir a confidencialidade dos dados e a previsão quanto à possibilidade de comunicação ou não dos resultados obtidos com aquele material. (p.243)

Podemos confirmar esta afirmação dada por Moniz, na Lei n.º 5/2008 de 12 de Fevereiro artigo 15.º n.º 2.º, “o sistema deve garantir que os perfis de ADN e os dados pessoais correspondentes sejam armazenados em ficheiros separados

40 lógica e fisicamente, manipulados por utilizadores distintos, mediante acessos restritos, codificados e identificativos dos utilizadores”.

Quando se trata de dados genéticos o titular é toda a família e não é só o indivíduo, daí existirem dúvidas em relação ao consentimento, mesmo que se trate de um consentimento livre e esclarecido (Moniz, 2002).

Após a inserção dos dados, deve-se garantir a possibilidade de controlar, garantir o acesso, a possibilidade de requerer a complementação e retificação dos dados, finalidades da base e eliminação dos dados, e deve-se garantir a confidencialidade. Os dados inseridos devem estar codificados sem qualquer possibilidade de identificação. Para a proteção dos dados é necessário que exista um cruzamento de dados das duas bases, criminal e civil, para que possa ser feito por determinação judicial devidamente fundamentada. Estes resultados devem ser comunicados pelo laboratório ao juiz (de instrução ou de julgamento) que, mediante requerimento fundamentado, os comunicará ao Ministério Público (Botelho, 2013).

No direito à intimidade genética, há quem faça a distinção entre “análise do genoma” e “impressão genética”, onde a colheita e o processamento do material genético representam atentados ao direito à vida privada (Raposo, 2010).

Raposo (2010) ainda afirma que, “no que respeita à divulgação das informações recolhidas mediantes testes genéticos, entende a doutrina que somente existirá crime de devassa da vida privada quando tais informações digam respeito a dados relativos a doença grave” e ainda afirma que para a obtenção do material biológico não é complicado de obter e é facilmente conseguido “basta que guarde consigo a chávena que alguém utilizou para beber café ou que lhe tire um cabelo pendurado no casaco, e de seguida proceda à análise desse material.” (p.949)

A intimidade do titular dos dados genéticos é suscetível de ser particularmente afetada quer com a realização de exames de ADN, quer com a inserção do perfil na base de dados (Botelho, 2013).

Este direito pode ser definido como um direito que determina as condições de acesso à informação do gene. É um direito fundamental que respeita a inviolabilidade da herança genética. O grande problema que se coloca é o tipo de

41 ADN que se utiliza para análise, o ADN não codificante, pois é este que localiza as características que diferenciam indivíduo para indivíduo na sua identificação.

Existindo um risco do ADN não codificante revelar dados do indivíduo, Botelho (2013) transmite várias medidas de tutela deste direito, como

o estabelecimento de limites no que respeita à utilização dos dados exclusivamente para a finalidade para que são recolhidos, a previsão de um regime de confidencialidade da informação obtida, bem como de sigilo dos intervenientes no processo de análise e tratamento dessa informação e de fiscalização da conservação dos dados genéticos, nomeadamente, definindo um período limitado para a manutenção desses dados no biobanco, solução preferível à da manutenção por tempo indeterminado. (p.207)