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4. TRIBUTAÇÃO DOS PRÊMIOS DO SEGURO OBRIGATÓRIO DPVAT

4.1. Direito tributário e limitação ao poder estatal

A organização social promovida pelo Estado demanda recursos financeiros e a tributação – concebida como receita pública derivada (originária do patrimônio particular) e compulsória (independente da vontade dos cidadãos) – é uma das principais formas de obtenção de receita pelos Estados (PAULSEN, 2017, p. 17 e 32). O desenvolvimento histórico desta atividade, como não poderia deixar de ser, acompanhou a evolução da própria noção de Estado e da relação deste com os seus cidadãos. Neste sentido, a tributação, ou melhor, os limites ao poder estatal de tributar, esteve presente como objeto nuclear de diversos textos normativos originários da sociedade moderna, a exemplo da Magna Carta inglesa, de 1215, da Constituição Americana, de 1787, e da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, tendo em conta que “por envolver imposição, poder, autoridade, a tributação deu ensejo a

muitos excessos e arbitrariedades ao longo da história” (PAULSEN, 2017, p. 18-19).

Também na realidade brasileira o anseio pelo controle do poder tributário estatal figurou como objeto de discussão de importantes fatos históricos nacionais, podendo-se citar a Inconfidência Mineira, de 1789, e a própria independência brasileira, ocorrida anos mais tarde, em 1822, e diretamente relacionada ao movimento anterior. Acerca da motivação da Inconfidência Mineira, Ubaldo César Balthazar explica que este movimento, além da luta local

contra o poder fiscal português, foi decorrência da importação dos ideais de liberdade que davam nascimento ao Estado de Direito. Veja-se:

O fomento para o movimento foi o anseio de fazer cessar a exploração da riqueza existente na capitania, exercida pela Coroa Portuguesa e acabar com as injustiças existentes, como a cobrança exacerbada de tributos, que por certo impedia o desenvolvimento da capitania e do país.

[...]

Naquele tempo, era comum que as famílias ricas de Minas e do restante do país enviassem os filhos para estudar na Europa. De lá, voltavam com ideias liberais e propagavam o lema da Revolução Francesa - “liberdade, igualdade e fraternidade”, – resultado do momento revolucionário no mundo. Por esse motivo, e não coincidentemente, a Conjuração aconteceu na mesma época da Revolução Francesa, e da Independência Norte-Americana, ambas marcadas pelo mesmo ideal de liberdade (BALTHAZAR, 2014, p. 682).

Os tempos de tirania tributária no Brasil, em que a tributação da metrópole portuguesa tinha caráter eminentemente exploratório, teve como início do seu fim a Proclamação da República brasileira, em 15 de novembro de 1889, com a adoção do modelo republicano e constitucional de Estado. Nada obstante isto, um sistema tributário nacional veio a surgir apenas após a edição da Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1965, e a posterior elaboração da Lei ordinária n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional brasileiro, ainda parcialmente vigente e recepcionado pelo § 5º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 como Lei Complementar (BALTHAZAR, 2014, p. 686-688). O que se faz necessário pontuar, contudo, é que, nada obstante a anterioridade do CTN, o sistema tributário brasileiro deve ser analisado tendo por sustentáculo o texto constitucional, e não o contrário.

Os Estados Constitucionais, derivados dos Estados de Direito, surgiram com o intuito basilar de limitar os poderes estatais até então ilimitados, mediante a sua submissão – inclusive e especialmente do poder legislativo – à normatividade constitucional. “O Estado Constitucional, portanto, é mais do que o Estado de Direito, é também o Estado Democrático,

introduzido no constitucionalismo como garantia de legitimação e limitação do poder”

(MORAES, 2017, p. 6). Nestes termos, pode-se dizer que a principal inovação do Estado Constitucional alicerça-se no reconhecimento dos direitos fundamentais subjetivos dos cidadãos, oponíveis em face deles mesmos e do próprio Estado, visto que este, até então ocupante de posição superior defronte seus cidadãos – materializada no parâmetro “totêmico” da supremacia do interesse público sobre o privado, utilizado como panaceia justificadora de qualquer atividade do Estado-Administração (CRISTÓVAM, 2013, p. 236) – passou a ocupar posição jurídica a eles equivalente, visto que “o Estado, como qualquer particular, subordina-

Esta concepção de Estado (Democrático de Direito) – prevista no caput do art. 1º da Carta Política brasileira de 1988 –, aplicada à seara do exercício da atividade tributária, leva à dedução de que a tributação (no sentido de atividade legislativa que cria abstratamente tributos, pontua-se) só pode ser realizada quando a Constituição permitir, ou seja, se o ente federativo possuir competência tributária para tanto (CARRAZZA, 2015, p. 591-593) e na forma que ela determinar, com respeito aos limites normativos previstos no texto constitucional (CARRAZZA, 2015, p. 597-599), visto ser ela, a Carta Política, em última instância, a legitimadora da atividade estatal. Isto ocorre porque, em suma, quando determinado ente federativo cria um tributo ele não está a exercer efetivo poder tributário, mas sim competência tributária. Se por um lado a Constituição não cria tributos, por outro é ela que permite que o Estado o faça (AMARO, 2016, p. 122).

A Constituição representa o poder cidadão e ela, com base neste poder, delega competências que devem ser exercidas dentro dos limites por ela previstos, sob pena de ser extinta do ordenamento jurídico a norma tributária que viola o ditado constitucional (CARRAZZA, 2015, p. 597). Afinal, o desrespeito aos limites da competência tributária, por si só, representa violação à direitos individuais dos cidadãos previstos na norma superior:

Também não devemos perder de vista que, entre nós, a ação de tributar excepciona o princípio constitucional que protege a propriedade privada (CF, arts. 5º, XXII, e 170, II). Isto explica – pelo menos em grande parte – a razão pela qual nossa Carta Magna disciplinou, de modo tão rígido, o mecanismo de funcionamento da tributação, ao mesmo tempo em que amparou o contribuinte com grande plexo de direitos e garantias contra eventuais excessos do Poder Público.

[...]

Noutras palavras: o tributo, de algum modo, esgarça o direito de propriedade. Ora, na medida em que o direito de propriedade é constitucionalmente protegido, o tributo só será válido se, também ele, deitar raízes na Constituição (CARRAZZA, 2015, p. 444-445).

Há de se sublinhar que este trabalho não se coaduna com posicionamentos extremados que veem na tributação, mesmo que juridicamente aceita, violação à direitos individuais – como em uma relação de causa e efeito – visto que, consoante ensinamento de Oliver Wendell Holmes Jr., o tributo é o preço da civilização (apud PAULSEN, 2017, p. 21). Leandro Paulsen ensina que enquanto a Constituição de 1967 estruturava o aparato do Estado brasileiro, a Carta de 1988 fundamenta a sociedade brasileira. Se até então a tributação era mero instrumento de financiamento estatal, na nova ordem constitucional o tributo é mecanismo de efetivação de direitos individuais e coletivos (PAULSEN, 2017, p. 21-23). Para que esta finalidade seja cumprida, contudo, faz-se necessário o respeito às regras do jogo. A tributação que excede os limites firmados pela constituição, ao invés de servir como instrumento de realização humana

(BALTHAZAR, 2014, p. 697), atua como mera ferramenta de sustentação do Poder Público desvinculado daquela finalidade elementar. É por isto que os fins alegadamente benéficos da tributação não justificam o excesso do exercício da competência tributária, afinal “a liberdade

do indivíduo [depende] das limitações impostas ao Estado” (CARRAZZA, 2015, p. 451).

É com estes olhos que a normatividade tributária deve ser concebida: o sistema tributário é mecanismo de limitação do poder do Estado, de modo que a atividade legislativa em matéria tributária só pode ser exercida nos estritos limites da competência constitucional. Para tanto, diz-se que a atividade tributária do Estado é limitada pelas normas constitucionais que preveem as competências tributárias e aqueloutras que prescrevem os princípios e as imunidades tributárias, tendo em conta que as limitações ao poder de tributar do Estado são decorrência da sistemática constitucional, e não apenas dos dispositivos jurídicos expressos na Seção II do título VI da Constituição (Das limitações do poder de tributar) (SABBAG, 2017, p. 60-61). Em razão disto, mostra-se necessário explicitar de forma breve a classificação dos tributos abstratamente previstos pela Constituição Federal de 1988 e as mais relevantes normas constitucionais limitadoras do exercício desta competência, tendo em mira os objetivos deste trabalho.