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Direitos culturais e territoriais quilombolas: justiça social, dignidade e igualdade

pelo sentimento comemorativo do centenário da abolição. A necessidade de se criar uma política de reparação histórica e de preservação da cultura negra estava em pauta. Inevitavelmente isso gerou uma reação por setores conservadores, que tentaram restringir ou

mesmo suprimir do artigo 68 que estava sendo redigido a parte que determinava a concessão da propriedade da terra a esses agrupamentos especiais negros. Como nos conta Arruti (2005), originalmente o texto previa tanto a obrigação do Estado de emitir títulos de propriedade às comunidades quilombolas quanto o tombamento das “terras e documentos referentes à história dos quilombos”. O embate acabou levando ao desmembramento da proposta inicial:

fazendo com que a parte relativa ao tombamento dos documentos relativos à história dos

quilombos coubesse no corpo permanente da Constituição (capítulo relativo à cultura), mas a

parte relativa à questão fundiária fosse exilada no corpo dito “transitório”. Uma evidência de que a temática da população negra e a cultura não gozam apenas de uma “afinidade eletiva”, mas de que o campo da cultura era, até então, o próprio limite permitido ao reconhecimento público e político dessa temática. (grifo do autor.)(p. 70)

Dessa forma, além do artigo 68 do ADCT, os direitos quilombolas estão previstos também em outras passagens da Constituição Federal de 1988: nos artigos 215 e 216, representando o reconhecimento da cultura nacional em toda a sua diversidade e formas. Segundo Deborah Macedo Duprat, Vice-Procuradora-Geral da República, a Constituição de 1988 “representa uma clivagem em relação ao sistema constitucional pretérito, uma vez que reconhece o Estado brasileiro como pluriétnico, e não mais pautado em pretendidas homogeneidades, garantidas ora por uma perspectiva de assimilação, (...) ora submetendo-os forçadamente à invisibilidade” (DUPRAT, 2002, p. 1).

Seguem os textos dos referidos artigos:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os

diferentes grupos étnicos nacionais.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se

incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinado as às manifestações artístico-culturais;

V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências histórias dos antigos quilombos. (grifo nosso)

Entretanto, apesar dessaseparação dos direitos quilombolas entre os relativos à cultura e os fundiários, a natureza desses grupos impede que na prática ela se sustente. Uma interpretação sistêmica e integrada dos dispositivos inscritos na Constituição de 1988 (SANTILLI, 2006), que por meio dos artigos 215 e 216 afirma o caráter pluriétnico e multicultural do Estado brasileiro, torna impossível dissociar os direitos étnicos dos territoriais das comunidades quilombolas. O artigo 216 é enfático ao determinar que “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial”, incluindo “as formas de expressão” e os “os modos de criar, fazer e viver”. Ora, no caso das comunidades quilombolas, enquanto grupos étnicos, suas “formas de expressão” e “seus modos de criar, fazer e viver” estão inexoravelmente ligados à garantia de permanência nos ambientes físicos que ocupam. E é nesse sentido que a(s) territorialidade(s) quilombola(s) deve(m) ser considerada(s) um bem cultural a ser protegido pelo Estado brasileiro.

Assim, ao afirmar esse caráter pluriétnico, reconhecendo as diferentes cosmovisões e territorialidades dentro do seio da sociedade brasileira, a Constituição pressupõe que não há como definir e proteger essas identidades coletivas sem garantir-lhes a permanência em seus territórios. A própria Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Co- munidades Tradicionais (PNPCT), instituída pelo Decreto 6.040/2007, reconhece que os Povos e Comunidades Tradicionais, entre eles, as comunidades quilombolas, são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (PNPCT, 2007, grifo nosso). Reforça-se com isso que, para garantir a efetividade dos artigos 215 e 216 da CF 1988, é indispensável assegurar o direito às terras que ocupam.

Tendo em vista que os territórios físicos nos quais esses grupos estão reunidos se constituem em espaços simbólicos de identidade, produção e reprodução cultural, não sendo portanto algo exterior à identidade, mas imanente a ela, as políticas públicas, com as cautelas prévias de inteligibilidade à respeito da diferença, devem ser efetivadas. (DUPRAT, 2002, p. 3)

Nesse sentido, pode-se afirmar ainda que o direito de propriedade dos remanescentes de quilombos sobre suas terras é um direito constitucional fundamental, “pois indispensável à pessoa humana, necessário para assegurar existência digna, livre e igual” (Mitidieri, 2011, p. 2). Além disso, ao incorporar a noção de função social da propriedade, a Constituição Federal consagra o direito à propriedade das comunidades quilombolas como instrumento de efetivação de justiça social.

Assim, os direitos étnicos no Brasil podem ser vinculados a outros princípios e objetivos da Carta Magna, tais como: a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, II e III); a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º I, III e IV); e a igualdade (art. 5º). Com relação ao princípio da igualdade, para Flávia Piovesan (2006), doutora em Direito Constitucional pela USP, aponta que:

Considerando os processos de ‘feminização’ e ‘etnização’ da pobreza, há necessidade de adotar, ao lado das políticas universalistas, de políticas específicas, capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às populações afrodescendentes, por exemplo, adotar políticas ‘neutras’ no tocante ao gênero, à raça/etnia, significa perpetuar esse padrão de desigualdade e exclusão.(p. 23-24)

Com isso, podemos dizer que a Constituição Federal inovou ao garantir esses novos direitos a comunidades historicamente desprovidas de condições para formalizar aposse de suas terras.

Com a concretização do direito de propriedade às comunidades quilombolas efetivam-se esses preceitos. Por outro lado, a Carta Magna não se contenta mais com uma igualdade formal. Busca-se a igualdade material. É nesses termos que devemos entender o princípio da isonomia: tratar de forma igual os iguais, e desigual os desiguais. De outra forma, acabaríamos por estabelecer uma desigualdade substancial. (GAMA; OLIVEIRA, 2007, p. 4)