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Diretrizes para a organização da informação musical brasileira

2 Música popular brasileira

2.3.5 Diretrizes para a organização da informação musical brasileira

Nesta seção são apresentados os principais conceitos destacados por Silva (2017) em suas diretrizes para a organização da informação musical brasileira. Esses conceitos refletem primordialmente a percepção da música popular brasileira por parte dos músicos entrevistados pela autora.

Composição e arranjo musical

Para Silva(2017), uma obra musical pode ser tanto uma composição original como um arranjo musical. Alguns participantes de sua pesquisa utilizaram também o termo música autoral ao se referirem à composição.

No universo da música estudada pela autora, o processo de composição se parece muito com aquele que é feito na tradição da música ocidental europeia, porém seu registro é quase sempre uma gravação de áudio. Neste registro de áudio, o compositor geralmente é o próprio intérprete, individualmente ou como membro de um grupo musical. Quando existe um registro escrito, este, em geral, é feito na forma de partitura com melodia e harmonia, podendo apresentar também uma letra, para fins de direitos autorais.

O conceito de arranjo é central para o entendimento do processo produtivo do recorte da música popular brasileira estudado. O arranjo é considerado uma “roupagem” a uma composição. Pode também ser visto como uma obra derivada de uma composição ou de outro arranjo. Entretanto, o esforço artístico e intelectual do arranjador é reconhecido pela autora e pelos músicos entrevistados.

Alguns músicos entrevistados comentaram sobre a busca de um “original” para realização do arranjo. Esse “original” seria uma versão da obra musical considerada representante mais fiel à ideia do compositor, quando comparada a outras versões da

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mesma obra. São consideradas “referências” as gravações ou partituras que influenciam o arranjador. Estas podem ser de gravações da mesma música ou ideias musicais que emergem a partir de suas experiências auditivas de outras músicas.

A elaboração de um arranjo pode ser feita por um arranjador, a partir de uma encomenda de um cliente, ou por vários arranjadores, que em muitos casos são os instru- mentistas que realizam a gravação. Este arranjo coletivo acontece pouco antes da gravação, quando são feitas as combinações de como vai acontecer. É comum a existência de um líder deste processo.

A principal forma de registro do arranjo é a gravação, sendo considerado seu registro na forma escrita como exceção. Quando existe uma partitura no contexto de uma gravação, esta atua apenas como um “guia”, geralmente composta de uma estrutura com introdução, partes, pontes, indicação dos momentos em que ocorrem as improvisações, coda, melodia, cifras e convenções rítmicas em que todos devem executar ao mesmo tempo. Em geral, a partitura não possui partes separadas para cada um dos instrumentistas. Existem casos em que o arranjador escreve melodias alternativas à melodia principal, como sugestões para a gravação.

Podem também existir partituras nos casos em que o arranjo: (i) foi feito por encomenda para conjuntos musicais grandes ou que envolvem músicos “de fora” do contexto da música popular (inclui-se aqueles que não possuem a habilidade do improviso ou que não tocam por meio de cifras, por exemplo); ou (ii) foi feito com fins pedagógicos, ou seja, quando são registradas para o ensino de instrumentos musicais no campo da música popular.

Um mesmo arranjo pode ser gravado várias vezes, constituindo várias versões. Cada performance de música popular brasileira é única, diferindo-se das outras principalmente no momento da improvisação. Outras configurações de grupos musicais ou outro intérprete podem gerar um novo arranjo baseado em um arranjo anterior.

Entende-se que música popular brasileira descrita pelos entrevistados tenha proximi- dade com as definições de música popular encontradas na literatura. De acordo comKanai

(2015), o arranjo na música popular difere do arranjo na música clássica pelas seguintes características da música popular: (i) é frequente a participação do arranjador na criação da música original; (ii) a flexibilidade de interpretação é maior; (iii) é comum que outro artista faça covers de uma música utilizando uma arranjo diferente do original; e (iv) não é feita a distinção dos arranjos por não serem significativos para os usuários. Observa-se, entretanto, que os usuários especialistas entrevistados atribuem grande valor ao arranjo, o que representa uma visão oposta à do item (iv). Por outro lado, compreende-se a visão de

Kanai (2015) devido à comum ausência de metadados relacionados ao arranjo nos itens bibliográficos de música popular.

Silva(2017) identificou as seguintes características dos arranjos na música estudada a partir dos relatos de seus entrevistados: (i) um arranjo envolve a maneira como o arranjador decide organizar os elementos musicais; (ii) é realizado por meio da junção de melodia e harmonia; (iii) envolve organizar os elementos originais providos pelo compositor para serem divulgados a uma plateia; (iv) considera as características da música original composta por outra pessoa; (v) envolve a pesquisa por originais; (vi) pode excluir um trabalho que é realizado a partir de outro arranjo; e (vii) pode ser concebido de maneira coletiva.

Performances e versões

As performances de música popular são executadas a partir dos arranjos, não das composições diretamente. Cada performance é única, diferenciando-se em seu aspecto interpretativo e de improvisação que refletem o estilo pessoal de cada artista. Essa característica da música popular se opõe à da música clássica, cujas diferentes performances de uma mesma obra buscam repetir exatamente as mesmas notas, ritmos, harmonias, estrutura e até mesmo o estilo do “original”.

A música popular brasileira, na visão dos músicos entrevistados, tem uma comple- xidade ainda maior que a internacional quando o assunto são as versões. No Brasil, há uma cultura de gravar a mesma música várias vezes, até pelo próprio compositor, dificultando a identificação da obra original. Muitas expressões modificam o original de modo a torná-lo quase que irreconhecível se comparado às versões. Isso tem uma implicação direta no trabalho dos músicos porque as várias versões servem como apoio para a interpretação. O intérprete as ouve para decidir como tocar a partir do seu próprio arranjo.

Influência

O conceito de “influência”, identificado a partir dos relatos dos entrevistados pela autora, aparentemente pode ser empregado como sinônimo de “cultura” tal como utilizado pela Music Library Association (MLA)16 em sua proposta de metadados17. O atributo “cultura” proposto pela MLA consiste em uma declaração se referindo a um grupo de pessoas às quais uma obra musical está associada, por quem ela é influenciada e para quem ela foi criada.

A influência também está relacionada às pessoas que influenciam na interpretação do artista. O artista cria o seu estilo próprio a partir da observação de outros artistas.

16 A Music Library Association (MLA) é a associação profissional de bibliotecários e bibliotecas de

música nos Estados Unidos. Fundada em 1931, tem uma participação internacional de bibliotecários, músicos, estudiosos, educadores, livreiros e comerciantes de materiais de música. Mais informações em:

https://www.musiclibraryassoc.org.

17 O grupo de trabalho de metadados do Comitê de Controle Bibliográfico da MLA elaborou um documento

em fevereiro de 2008 propondo quatorze atributos para materiais musicais. Mais informações podem ser obtidas emSilva (2017, p. 278-287).

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Uma prática comum entre os músicos iniciantes ou semiprofissionais é o cover, i. e., a cópia da performance de outros artistas exatamente como foram originalmente gravadas.

Foi também identificado o conceito de “influência” nos sentidos de: (i) algo que extrapola o estilo de um determinado artista ou grupo; (ii) música regional estrangeira, sem especificá-la; ou (iii) tradição, modernidade ou aspectos relacionados à indústria cultural.

Gênero musical

O gênero musical talvez seja o elemento que melhor expõe os aspectos culturais da música popular brasileira em discussão. O conceito de gênero musical pode ser ex- tremamente ambíguo. Análises puramente cognitivas dos elementos musicais podem ser insuficientes para a delimitação clara de um gênero musical. Isso porque o próprio con- ceito de gênero na música popular muda com o tempo, sofrendo transformações externas relacionadas à época, local, experiência musical e mercado fonográfico.

Silva(2017) sugere que o gênero musical pode ser compreendido a partir de outros conceitos a ele relacionados, tais como época, local, movimentos culturais, grupos ou indivíduos, influências estrangeiras, ritmos (e variações), outros gêneros e subgêneros, origem, função, instrumentação, “inventores”, primeira gravação e tradição.

A origem de um gênero musical pode ser identificada a partir de um marco principal, como uma primeira gravação ou um evento musical. Alguns gêneros da música popular brasileira têm sua origem marcada pela mistura de uma música regional a influências estrangeiras.

Para alguns gêneros, são identificados um ou mais artistas que são considerados seus criadores ou “inventores”. Esses são os primeiros a gravar músicas daquele gênero ou são os responsáveis pela divulgação do gênero fora da sua região de origem. Os instrumentos musicais utilizados pelos criadores, o local e a época em que foi divulgado também são elementos importantes na caracterização de um gênero musical. A expressão da vida cotidiana de seus criadores e demandas da indústria da música podem identificar uma função para gênero.

Um gênero musical evolui a partir da adaptação de estilos a influências estranhas à sua origem, feita por indivíduos em diferentes épocas e locais. À medida que seus limites se suavizam, os gêneros se tornam híbridos, surgindo denominações como Samba Reggae, Samba Choro e Samba Jazz.

Nomes de gêneros musicais brasileiros podem ter um sentido amplo e significar um movimento com pretensões de resgaste da cultura popular, como ocorreu no Tropicalismo, ou, ainda, uma maneira de interpretação de vários ritmos brasileiros, como é o caso da Bossa Nova.

Referência

Outro termo recorrente nos relatos dos músicos entrevistados por Silva (2017) é a “referência”, relacionado a algo utilizado pelos artistas como base ou inspiração para seu trabalho, porém com diferentes significados: (i) uma gravação de áudio ou vídeo, considerada “original” ou representativa de um ritmo tradicional ou de ritmos tradicionais combinado a outros ritmos, por vezes divulgada por um artista conhecido; (ii) uma gravação específica de um artista ou de um grupo musical; (iii) o estilo de interpretação de outros músicos; (iii) algo que pode ser encontrado em qualquer música e obtido de diversas fontes; (iv) música “erudita”, manifestações culturais, estilos musicais e cantores ou grupos musicais específicos; (v) repertórios ou artistas que são característicos de um estilo musical; (vi) muitos estilos musicais; ou (vii) artistas do mesmo instrumento musical que se quer aprender.

Estilo

O termo “estilo” é empregado como: (i) sinônimo de gênero musical; (ii) forma de caracterizar a maneira particular de atuação incorporada por artistas a partir de suas influências musicais; ou (iii) quase que como um sinônimo de “referência”.

Linguagem

Os músicos entrevistados utilizaram o termo “linguagem” para se referira à forma de interpretar (tocar) um estilo musical, respeitando os elementos estilísticos intrínsecos necessários ao seu reconhecimento dentro da época que foi produzido.

Autenticidade

O conceito de “autenticidade” é outro que aparece diversas vezes na discussão sobre o que pode ser considerado como música popular brasileira. Elementos musicais inseridos em uma cultura específica podem ser indicadores de autenticidade, sendo o ritmo o elemento considerado como o que mais distingue a música popular brasileira. Nos relatos, esses ritmos são aproximados com a cultura, com um local de origem ou com um compositor brasileiro.

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