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Capítulo 4 O Guide des Écoles – O modo marista de educar

4.4 Disciplina, Ensino, Organização

4.4.1 Disciplina: manter, prevenir, sancionar

Dentro da organização apresentada no Guia, a segunda parte é subdividida em Disciplina, Ensino, Organização. Interessante mostrar que de certo modo, os três aspectos se contemplam de forma que a disciplina perpassa os demais. Ou seja, o ensino e a organização estão atrelados à disciplina.

O Guia visa salientar a importância da disciplina frente a uma boa formação, tanto do Mestre, quanto dos alunos. Logo de início, a primeira afirmação coloca de maneira explícita as três funções principais da disciplina, que são: manter, prevenir e sancionar.

Ela mantem, conduzindo continuamente os alunos de acordo com o regimento da escola; ela previne, exercendo sobre os alunos contínua vigilância; ela sanciona, seja corrigindo as desordens e as faltas a partir do momento em que ocorrem, seja encorajando e recompensando os bons alunos, pelo seu bom procedimento, trabalho e esforço (Furet, 2010, p. 102).

A disciplina é ferramenta indispensável para a formação de novas condutas e posturas. São os instrumentos disciplinares que vão subsidiar elementos para que os novos modelos sugeridos pela educação se efetivem. O uso da disciplina não pode ser considerado uma novidade no campo educacional, os castigos corporais sempre estiveram presentes no ato de ensinar/educar, assim, aprender pela dor, pela humilhação ou pelo medo era uma constante na escola.

Ao tratar da disciplina, os autores do Guia inicialmente tentam traçar duas linhas paralelas entre os benefícios da disciplina e os malefícios da indisciplina. A princípio, o Guia estabelece que a disciplina está associada a

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obediências ao regimento da escola e à vigilância do Mestre. Assim, a disciplina é:

(...) a alma da casa de educação: anima tudo: põe tudo no seu devido lugar, mantém cada um no seu dever, apontando-lhe o caminho que deve seguir; produz esta bela ordem, esta regularidade perfeita, este conjunto e uniformidade que fazem a honra de uma casa de educação, conquistando-lhe a confiança do público. Em suma, a disciplina protege a fé, a piedade dos alunos, preserva a inocência e os bons costumes, assegura o progresso, previne as faltas e, consequentemente, tende a suprimir as punições (Furet, 2010, p.103).

Nessa medida, a disciplina como ferramenta da educação vai ser pautada em regras estabelecidas pela congregação e na constante vigilância do mestre forçando que antigos gestos ou condutas sociais sejam abandonados e estabelecendo novas formas de se portar, a princípio dentro da escola e, que estas condutas, após incorporadas como hábitos, se estendam para a vida cotidiana dos jovens.

De modo geral, como já observado até aqui, o Guia não contempla em seu texto referências teóricas que subsidiam as práticas, entretanto, constantemente são levantados indícios destes referenciais, que após serem analisados mais cuidadosamente, pode-se indicar a sua fundamentação, como por exemplo, ao definir a função da disciplina:

Com efeito, a partir do momento em que ele ingressa no regime de vida e exercícios regrados, começa a forjar o querer e a blindar a vontade. A disciplina da escola o força a colocar um freio à sua dissipação, para triunfar de seu estouvamento. O aluno deve chegar exatamente na hora prescrita, permanecer no lugar indicado, submeter-se ao silêncio durante os exercícios da escola. Tudo isso constitui uma sequencia de pequenos triunfos que o aluno consegue sobre as suas inclinações: é o começo do domínio sobre si (Furet, 2010, p. 103).

Esse exemplo demonstra que existe a colocação de uma nova conduta. E esse disciplinamento se fundamenta no antigo Guia seguido pelos Maristas, no início de suas atividades: La Conduite des Écoles Chrétiennes, ou o Guia das Escolas Católicas, elaborado pelos Irmãos Lassalistas,que por sua vez encontra na obra de Erasmo de Roterdã, De civilitate morum pueriliun (1530),

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um código de comportamento social e regras de civilidade que marcaram a Idade Moderna.

Para Boschilia (2012), civilidade entendida sob a concepção de Norbet Elias como “condição para o controle da violência, (a civilidade) passou a ser considerada um aspecto essencial para superar a agressividade e a impulsividade ou falta de controle interno, típicas da sociedade medieval” (p. 245). Ainda para a autora:

Esse lento e contínuo processo de aprendizagem exigiu que o homem moderno se afastasse dos excessos, dos arroubos e do descontrole e procurasse forjar uma nova estrutura psíquica mais condizente com a moderação, a reserva, a prudência, enfim, com a polidez e o domínio de si. (...) ou seja, a busca do domínio de si implicava o fato de o homem procurar modelar não só os seus gestos, mas também sua aparência, sua linguagem, seu modo de se vestir e sua inteligência (Boschilla, 2012, p. 246).

Então, a escola vai desempenhar o papel de trazer as crianças e jovens para a civilidade através da educação, e a disciplina será a regulamentadora desta empreitada. E o que se observa no Guia, de forma taxativa, é que a disciplina é “absolutamente necessária na escola” (Furet, 2010, p. 104).

Todos os conselhos com relação às regras disciplinares tinham por objetivo internalizá-la, tais como: andar ereto, olhar atento, mãos sobre a carteira, pés juntos durante as atividades, filas e silêncio ao andar pelos corredores, exemplificam os dispositivos de controle e autocontrole. Esses preceitos exercidos pelos colégios, que visavam exercitar o domínio do corpo e o olhar atento do professor para que as regras disciplinares fossem diariamente e constantemente observadas ecumpridas.

Na concepção de uma educação católica, para os Mestres, a disciplina precisa ser paternal, deve obedecer aos ditames da religião, da afeição e da indulgência. O Guia incorpora a religião ao tratar da disciplina, e propõe que:

Por meio da religião, a disciplina se torna autoridade moral; então, a disciplina não é somente o olho do mestre e a segurança da ordem material: é o olho de Deus e o princípio de nobre docilidade. Ainda assim, para que a religião conduza e fortifique a disciplina, é preciso que ela tenha sua efetiva participação na educação, que flua de todas as lições do

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mestre e que o primeiro e principal cuidado deste último seja formar crianças na piedade e na virtude (Furet, 2010, p. 105).

Outro aspecto tratado da disciplina aplicada pelos Irmãos é a substituição de castigos físicos e a exposição de alunos a situações vexatórias, pela emulação. De acordo com o Guia:

A emulação, como inclinação de igualar e superar os seus colegas, é um dos recursos mais úteis de que o mestre dispõe, especialmente naquilo que diz respeito à educação. Ela apega as crianças à escola, triunfa da sua preguiça, condu-las a superar as dificuldades que encontram nos seus estudos, tornam-nas atentas e, por vezes, suscita esforços surpreendentes. (Furet, 2010, p. 131)

De certa forma, a substituição do castigo pela emulação, faz com que os meios para a efetivação das disciplinas sejam inovados, mas o propósito se mantém. A dor física é substituída pela dor moral daqueles que não são recompensados, ou tidos por preguiçosos, em não alcançarem, ou não cumprirem as regras.

De toda a maneira, mesmo que a emulação não funcione em seu propósito, o Guia estabelece uma série de punições que podem ser aplicadas quando convier, de acordo com o bom senso do Mestre ou do Diretor do Instituto. Entre as punições estão: a advertência oral ou escrita; as ameaças; as notas, as detenções e as tarefas extras (Furet, 2010, p. 142).

Mesmo constando no Guia, o conselho é que se evitem as punições, e novamente as palavras do fundador são evocadas:

O nosso Santo Fundador, como lemos nas suas biografias, considerava tão grave o abuso de castigos corporais, que dizia que um irmão severo, violento e que permite facilmente bater nos alunos ou maltratá-los com palavras, não convinha ao ensino (Furet, 2010, p. 143).

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