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Disciplinas escolares e interdisciplinaridade

No documento A revolução burguesa no Brasil (páginas 40-44)

2 UM PANO DE FUNDO PARA O CONTEXTO DA PESQUISA

2.3 CIÊNCIAS DISCIPLINARES E/OU DISCIPLINAS CIENTÍFICAS

2.3.2 Disciplinas escolares e interdisciplinaridade

Uma disciplina escolar não surge por acaso ou apenas por imposição. Há muitas pressões externas à escola que a tornam objeto de ensino. Estudos sobre a história das disciplinas científicas (CHERVEL, 1990) apontam que o termo disciplina escolar como é conhecido hoje - como o ensino de conteúdos específicos - só aparece por volta do início do século XX. Anteriormente, os conteúdos a serem ensinados eram chamados de matérias ou ramos do currículo.

São vários os motivos para se buscar a manutenção de uma disciplina no currículo de cursos básicos e universitários. Um deles é o reconhecimento externo (da sociedade em geral) que a disciplina ganha ao pertencer a um currículo. Esse reconhecimento atribuído à disciplina é, muitas vezes, devido à importância desta para o desenvolvimento econômico ou social.

Conforme Santomé,

Uma disciplina é uma maneira de organizar e delimitar um território de trabalho, de concentrar a pesquisa e as experiências dentro de um determinado ângulo de visão. Daí que cada disciplina nos oferece uma imagem particular da realidade, isto é, daquela parte que entra no ângulo de seu objetivo. (SANTOMÉ, 1998, p. 55)

A divisão do conhecimento (escolar) em disciplinas também acompanha a transformação social do século XIX, por causa da necessidade de uma maior especialização em várias áreas, inclusive na área tecnológica e industrial (SANTOMÉ, 1998). Isso resultou em um maior distanciamento da linguagem utilizada pelos cientistas de diferentes áreas. Cada área desenvolveu sua própria linguagem, seus métodos e suas técnicas, nem sempre dialogando com as outras

áreas, gerando seus próprios coletivos de pensamento (FLECK, 2010) e distanciando dos demais.

Nesse sentido, a edição de livros-texto ou livros didáticos teve grande importância na consolidação das disciplinas. Se se entende que determinada disciplina é importante para o desenvolvimento da sociedade (econômico ou social), esta precisa formar especialistas em sua área, e, nada melhor que manuais específicos para formar esses especialistas. Os livros-texto têm um impacto muito grande no desenvolvimento das disciplinas. Conforme Vinao (2008, p. 192), "todos os aspectos da história das disciplinas escolares competem, em maior ou menor medida, a dos livros de texto” . Eles não servem apenas para formar especialistas em uma determinada área, mas também para formar a sociedade em geral (a comunidade externa à comunidade científica) para que esta compreenda e possa dialogar com os cientistas. Para Fourez (1997), é fundamental que a comunidade externa consiga se comunicar com a comunidade científica, pois só assim, os cidadãos poderão participar de processos de tomada de decisões.

Contudo, a excessiva fragmentação (e especialização) do conhecimento, agora dividido em disciplinas escolares, foi vista a partir da década de 1970 como uma patologia. Durante essa década, preocupados com a alta especialização das diferentes áreas do conhecimento, foram organizados pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), alguns congressos sobre interdisciplinaridade. Estes congressos propunham compreender a interdisciplinaridade e, mais do que isso, apontar caminhos metodológicos para um trabalho interdisciplinar. Essa visão de que a fragmentação era uma patologia foi muito difundida no Brasil através do livro "Interdisciplinaridade e patologia do saber”

(1976) do filósofo Hilton Japiassú, obra que retrata parte de sua tese de doutorado realizado na França sob orientação de Georges Gusdorf. Este trabalho propõe que a interdisciplinaridade seja a "cura” para a doença da fragmentação e excessiva especialização. Somente através da interdisciplinaridade, ora entendida como metodologia, ora entendida como uma postura adotada pelos indivíduos é que as ciências - e o mundo - se salvariam.

Os trabalhos de Japiassú influenciaram outros pesquisadores, sendo Ivani C.

A. Fazenda a mais expoente. Após a defesa de seu mestrado, orientado por

Japiassú, Fazenda dedicou-se a desvendar a interdisciplinaridade mas nunca abandonou a linha dada por Japiassú ao tema. No conjunto geral, conforme Ari Paulo Jantsch e Lucídio Bianchetti as principais características dos trabalhos sobre interdisciplinaridade de Fazenda e de outros pesquisadores da mesma linha são:

1. A fragmentação do conhecimento leva o homem a não ter domínio sobre o próprio conhecimento produzido, o que se supõe perigoso pelo fato que o sujeito (pensante) - também se supõe - não consegue ser mais o ordenador do caos que é o mundo (também suposição), especialmente o mundo do saber. 2. A fragmentação do conhecimento ou a especialização, em decorrência do item anterior, passa a ser assumido como uma

"patologia” [...]. A fragmentação do conhecimento - processo e produto - é, pressupõe-se, um mal em si, só podendo ser superado pelo ato de vontade de um sujeito (pensante) que, por força interna e opção/decisão, faz a cirurgia extirpadora dos tumores (leia-se, entre outros, disciplinas) cancerígenos. 3. A soma de sujeitos pensantes que, com base em sua vontade, decidem superar o conhecimento fragmentado é, pressupõe-se, a fórmula acertada. Expressando-se de outro modo, podemos dizer que a interdisciplinaridade só é fecunda no trabalho em equipe, onde se forma uma espécie de sujeito coletivo. 4. O sujeito coletivo é capaz de viver a interdisciplinaridade em qualquer espaço de atuação, não se diferenciando no ensino, na pesquisa e na extensão. Aparece, aqui, o pressuposto da pan- disciplinaridade. Ademais, pressupõe-se que o sujeito pensante coletivo (entenda-se equipe) é capaz de curar qualquer male qualquer grau de enfermidade relativa ao conhecimento. 5. A produção do conhecimento estará garantida, uma vez satisfeita a exigência do trabalho em parceria, independente da forma histórica como se deu ou está se dando a produção da existência. (JANTSCH; BIANCHETTI, 2011, p. 25-26)

Os autores opõem-se a esta visão, rotulando-a como filosofia do sujeito.

Nessa filosofia, caberia apenas ao sujeito a mudança de postura ou conduta para que a interdisciplinaridade ocorresse. Desconsidera-se as características do próprio objeto que ao ser definido em sob um paradigma ou em um contexto, dificilmente caberá em outro paradigma ou servirá em outro contexto.

Desta forma, os professores das disciplinas escolares, que aperfeiçoaram-se em estudos concernentes ao coletivo de pensamento da sua disciplina, muitas não estão preparados para compreender a forma que outros coletivos abordam o mesmo objeto de estudo. Logo, não é possível atribuir apenas ao sujeito a responsabilidade de integrar conhecimentos ou abordá-lo de forma interdisciplinar, se sua própria formação não tratou de ensiná-lo como fazer.

Isso também se deve porque os cientistas (e os engenheiros e tecnólogos) sempre estão buscando dar sentido e significado para seus objetos de estudo. Para tanto, eles criam modelos explicativos que dão ao fenômeno (ou tecnologia) uma

racionalidade. Para Fourez (1997, p. 89), "Pode-se assim considerar as ciências como tecnologias intelectuais que os humanos têm desenvolvido para pôr ordem, sentido e eficácia em seu universo” . Estes modelos têm sua validade garantida dentro dos limites da disciplina, e, geralmente seu lugar de aplicação é o laboratório.

Devido a uma realidade mais complexa e a um contexto mais aberto, no dia a dia, são necessários outros tipos de modelos. Conforme Fourez (1997), nem mesmo os próprios cientistas despregam amplos sistemas hipotético-dedutivos tais como encontrados em livros de ciência. Na verdade, eles buscam conhecimento sobre o objeto em diferentes direções.

Assim, entende-se que um trabalho interdisciplinar não pressupõe o desaparecimento gradual das disciplinas e muito menos sua extinção. Pelo contrário, no entendimento de Fourez (2002, p. 69) "a interdisciplinaridade é compreendida como uma prática integradora que vai para além da simples justaposição de disciplinas” . Na educação, a interdisciplinaridade, compreendida dentro das categorias de totalidade e contradição, são importantes na busca pela emancipação do homem. E a Teoria Crítica, fornece elementos importantes e subsídios para esta tarefa, pois

A Teoria Crítica não tem, apesar de toda a sua profunda compreensão dos passos isolados e da conformidade de seus elementos com as teorias tradicionais mais avançadas, nenhuma instância específica para si, a não ser os interesses ligados à própria teoria crítica de suprimir a dominação de classe (HORKHEIMER, 1983, p. 68).

Conforme Fourez (2002, p. 70), a maior parte das declarações ou tentativas de definir a interdisciplinaridade apontam para "a interconexão das disciplinas em função de um contexto particular e de um projeto determinado [...]. As disciplinas são solicitadas e integradas com vista a construir um modelo original, em resposta a uma problemática particular”. O objetivo então seria uma articulação entre conhecimentos da natureza com o contexto social existente. Esse processo gera, assim, uma representação única, elaborada por um grupo específico de indivíduos.

Contudo, para que isso ocorra, o discurso proferido pelos cientistas (e pelos docentes) não pode ser da mesma classe dos discursos tradicionalmente empregados. Logo, dentro da área educacional,

A classe de discurso empregado em tal comunidade não seria, portanto, aquela classe de discurso quase-técnico que produz um saber sem valores.

Em vez disso, empregaria aquela forma de discurso prático, eticamente informado, que gera um saber acerca do que se deveria fazer em uma situação particular com o fim de dar expressão prática a valores e ideais educacionais compartilhados. Os resultados de semelhante discurso não seriam pois princípios teóricos que há de se demonstrar que são corretos, senão juízos práticos acerca de como atuar educativamente em uma situação prática específica, juízos que podem ser defendidos discursivamente e justificados como educativamente apropriados às circunstâncias reais às que se aplicam (CARR, 1990, p. 158-159).

Logo, a interdisciplinaridade ou a prática interdisciplinar é requerida para possibilitar uma leitura mais ampla da complexidade do mundo. Não é a busca pelo fim das fronteiras das disciplinas ou a criação de uma superdisciplina, mas sobretudo, é a busca de uma análise globalizante e contextualizada do objeto de estudo.

Para o autor,

As práticas interdisciplinares são úteis para diminuir os inconvenientes dos limites de um paradigma determinado. Vimos porém que uma reunião de um certo número de especialistas pode na melhor das hipóteses criar uma nova especialidade e não um ponto de vista universal. (FOUREZ, 1995a, p. 299) Portanto, o autor propõe que os estudantes criem ou inventem seus próprios modelos ou representações dos fenômenos naturais ou do cotidiano. Desta forma, para designar os modelos e representações contextualizados, construídos pelos estudantes, o autor desenvolve a metáfora de ilha interdisciplinar de racionalidade que abordaremos no tópico a seguir.

2.4 ILHAS INTERDISCIPLINARES DE RACIONALIDADE: UM CAMINHO

No documento A revolução burguesa no Brasil (páginas 40-44)

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