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É possível que Gayatri Spivak seja a voz mais influente (e producionista) nos círculos de discussão do feminismo pós-colonial. Isso porque, como visto até aqui, a autora intersecciona sua teoria do Sul com os estudos de gênero, sobretudo aqueles que envolvem o sujeito generificado subalterno, no sentido de propor novos espaços de agência e reflexão que incluam o ambiente terceiro-mundista. É proposta contínua da autora a leitura crítica – assim como a reescrita – da história que ocidentalmente fora construída em favor de uma elaboração de pensamento que privilegia uns, e detrimenta outros.

A construção discursiva do feminismo pós-colonial associa-se à possibilidade de um diálogo útil que enlace as discursividades críticas de dois campos cujos projetos vão resultar em reflexões do modo de produção desde intelectuais, à culturais, para citar alguns.

A teoria pós-colonial é, ao lado da teoria feminista, um campo de estudos que elabora um novo olhar sobre as sociedades modernas e sobre os discursos ‘clássicos’ que estas produziram. Compartilha, com a teoria feminista, uma proposta metodológica de trabalhar a partir de uma ‘epistemologia de alteridade’ – o resgate das experiências invisibilizadas, silenciadas ou construídas como um Outro da modernidade ocidental (ADELMAN, 2007, p. 394).

Sobre o benefício de aliar novas discursividades para oportunizar campos férteis de problematização das bases consolidadas ocidentalmente, Almeida pondera:

É justamente essa possibilidade de pensar o trabalho teórico como uma forma de interrupção teórica e epistemológica, como aquela efetuada não apenas pelos estudos feministas e de gênero, mas também pelos estudos sobre etnicidade e raça (campo especialmente articulado na crítica pós- colonial), que pode levar a uma desestabilização produtiva nas teorizações e nas análises da sociedade e das práticas culturais a ela associadas (ALMEIDA, 2013b, p. 691).

A crítica feminista acresce, portanto, seu empenho em suscitar e exercitar o questionamento das discursividades sociais e culturais, pretendendo atingir – ou atingindo, propriamente – as estruturas que operam o poder e o agenciamento. Há nessa proposta, inclusive, o empenho em abordagens aprofundadas nas relações de poder, cujas exigências dizem respeito à rediscussão sobre os processos de invisibilização e silenciamento, assim como a extinção do binômio que se refere à mulher de Terceiro Mundo/mulher ocidental.

É perceptível que a maior parte dos intelectuais conhecidos pelo exercício do discurso pós-colonial ao redor do mundo é formada por homens (Edward Said, Stuart Hall e Chakrabarty são alguns exemplos), mas a participação da indiana Gayatri Spivak é uma evidência de que as discussões voltadas para a mulher, até mesmo aquelas que vão dar conta da consolidação de uma intelectualidade feminina, marcam um momento histórico da perspectiva. Esse envolvimento muito tem a ver com as constantes negações das demandas existentes desse grupo (mulheres), cujas solicitações foram amplamente detrimentadas pelas lutas tidas como “mais emergenciais” – como as dos movimentos anticoloniais dos contextos terceiro-mundistas ou das minorias raciais norte-americanas, ambas com cenário nas décadas de 1950 a 1980. Não por acaso, mas por reinvidicações pontuais das mulheres que compunham esses grupos específicos, é que as contestações feministas passam a ser pauta dentro dos círculos discursivos da diferença colonial.

Esse movimento é um sintoma de que mais do que construir laços com a crítica permanente dos discursos hegemônicos a partir de suas próprias epistemologias específicas, a teoria pós-colonial está cada vez mais envolvida com as teorias críticas feministas e suas perspectivas particulares. Não por acaso, esse mesmo movimento faz o próprio grupo feminista que, embora compreenda os afastamentos, agrega para si consideravelmente as perspectivas pós-coloniais. É nessas aproximações que um discurso ganha contornos híbridos e passa, além de questionar o feminismo, cujo cerne está na Europa, a exibir, como faz Spivak, uma nova prioridade: a de inserir as discursividades feministas consistentemente no centro das estruturas discursivas do pós-colonial.

Uma vez que a ênfase das problemáticas se instala em um ambiente fora do eixo eurocêntrico, uma nova perspectiva se abre para um pós-colonial mais ampliado: no centro das discussões está a mulher do Terceiro Mundo, ou seja, a mulher não ocidental (neste caso, a indiana). Esse movimento muito nos remete ao que Said propõe em Orientalismo (2007), quando traz à luz as especificidades vindas do Oriente na intenção de orientalizar o

ocidentalizado, considerando antes de tudo que é precisamente o contrário que ocorre, sob o

ponto de vista colonial, a saber: que o orientalismo é uma forma de ocidentalizar o Oriente, pois constrói imagens ocidentalcêntricas sobre este último investindo na possibilidade de que, com o tempo, o próprio oriental se veja a partir do espelho discursivo ocidental.

Dessa forma, a consistência desse argumento se dá no questionamento dos discursos já estabelecidos sobre o afastamento das categorias mulher ocidental e mulher oriental. A proposta é não somente o desconstruir e reescrever a história colonialista incluindo a história

silenciada, mas também vasculhar e considerar que existem igualmente manifestações de sujeição da figura da mulher no interior das estruturas de luta nacional, principalmente quando está se submete à potencia dominante.

A crítica também se estende à produção acadêmica seja colonial, ou pós-colonial, que ingenuamente não materializa as discussões de gênero ao seu próprio saber. Sobre essas representações, referimo-nos aos modelos de senso comum que existem na literatura, por exemplo: ou têm sua sexualidade desprendida (selvagem) da doutrinação ocidental – senso comum pelo qual a imagem da mulher do outro lado do mundo é compreendida no Ocidente –, ou por outro lado, não menos reducionista, é sujeito de constante violência exercitada pelos homens cuja “educação” não tenha passado pelo processo civilizatório do Ocidente.

O que é sensivelmente observado pelo feminismo pós-colonial é o aspecto ligado à cultura, cenário das mais veladas formas de sujeição da mulher terceiro-mundista. Spivak (2010) cita o ritual do sati para ilustrar a dupla violência epistêmica que está sujeita a viúva indiana quando se auto-imula na pira funerária do marido morto. Nessa leitura, dá-se um sentido de essencialismo cultural, respaldado por discursos nacionalistas, que nada mais fazem do que sustentar os costumes de uma sociedade tradicional. Ou seja, mesmo quando agem em favor de uma defesa cultural de um país em situação de imposição colonial, a elite nativa ainda submete a figura da mulher aos padrões daquilo que está representado convencionalmente na história daquele povo – e suas concepções de lugar da mulher. Além disso, é evidente o empenho das teorias feministas em dar conta de um feminismo que contemple sem ingenuidades totalizantes as demandas de gênero em um contexto mundial de sujeição ocidental – sujeição que passa pela raça e pela classe, inclusive.

Nesse sentido, o feminismo pós-colonial entende que o pressuposto da diferença colonial é uma realidade que deva ser vencida para o êxito de um projeto amplo de construção discursiva sólida, na qual as demandas genuínas sejam percebidas e consideradas tanto quanto as globais. Dessa forma, é importante ressaltar a necessidade de afastar-se de uma tendência universalista e observar a utilidade de uma crítica “perspectiva e situada” (Almeida, 2013b).

A postura de uma crítica perspectivada e situada torna-se cada vez mais relevante neste momento histórico em que movimentos de migração e mobilidade globais, que perpassam os vários espaços geopolíticos, podem ser vislumbrados como um significante efeito do momento pós-colonial [...] No entanto, cabe ressaltar que, a despeito das motivações e movimentos contrários, predomina em nossos dias um contínuo processo de deslocamento e recolocação da matriz colonial de poder (ALMEIDA, 2013b, p. 694-695).

Como dito anteriormente, a teoria feminista tem olhado cada vez mais para a teoria pós-colonial identificando afinidades. Essa proposta de leitura e problematização crítica das assimetrias de poder que arrastam o gênero para sua complexa estrutura, e amplificam o descortinamento de realidades específicas e gerais, encontram-se em processo constante de expansão, ganhando notoriedade nos mais diversos campos de conhecimento. Como resultado colhido, há o descentramento da elaboração eurocêntrica de saber, cujo mecanismo é obviamente operado pelo homem branco.

Quando discute a aliança entre o feminismo e o pós-colonialismo, Deepika Bahri, em

Feminismo e/no pós-colonialismo (2013) traz à luz alguns dos desafios dessa nova junção em

um contexto de globalização. Sobre a relação profícua das duas teorias, a autora prefere relativizar que, embora exista uma coincidência entre elas, é sábio observar que também que há divergência:

Os estudos feministas e os estudos pós-coloniais às vezes se encontram em uma relação mutuamente investigativa e interativa entre si, especialmente quando se tornam muito específicos, por exemplo, quando as perspectivas feministas fecham os olhos a assuntos pertencentes ao colonialismo e à divisão internacional do trabalho e quando os estudos pós-coloniais ignoram a questão do gênero em sua análise. De um lado, então, as feministas por vezes reclamam que as análises de textos coloniais e pós-coloniais não consideram questões de gênero, omitindo-as para dar atenção a questões supostamente mais importantes, tais como a construção do império, a descolonização e a luta pela libertação (no contexto colonial), e a construção da nação (no contexto pós-colonial) (BAHRI, 2013, p. 662).

No empenho de reunir alguns conceitos-chave da discussão “feminismo e pós- colonialismo”, Bahri (2013, p. 663) salienta o feminismo pós-colonial é especialmente interpretado como uma linha de pensamento acadêmico que está intimamente ligada à expansão dos estudos pós-coloniais no ambiente acadêmico do Ocidente.

Um levantamento dos principais interesses temáticos e dos conceitos-chave da área a qual poderíamos chamar de “estudos feministas pós-coloniais” claramente indica sua identidade relacional, sugerindo que ela existe como uma configuração discursiva em diálogo com construções acadêmicas predominantes do Primeiro Mundo quando em tensão com essas (BAHRI, 2013, p. 663-664).

Passando pelas convergências e divergências entre o feminismo e a teoria pós- colonial, Bahri intenta elencar alguns conceitos-chave em volta dos quais ela constrói seu argumento acerca da discussão. Observados como recorrentes no debate do feminismo pós-

colonial, a autora destaca “representação”, “essencialismo”, “Mulher de terceiro mundo”, “Mulher de terceiro mundo no Ocidente” e “globalização” para falar sobre a relação da mulher com a comunicação, com a identidade, da mulher e o trabalho e da mulher e a questão da alteridade78, respectivamente.

Dessa forma, tomando como norteador um feminismo “caracterizado pelo debate, pelo diálogo e pela diversidade” (2013, p. 663), Bahri vem dizer que o “feminismo pós-colonial consistentemente convida à investigação fundamentada e instrutiva de suas principais premissas, métodos e tensões”.

No feminismo pós-colonialista, de outro lado – isto é, o feminismo congruente com perspectivas pós-coloniais amplas, simultaneamente “pós- coloniais” e “femi-nistas” em sua natureza e comprometimento – a ênfase tende a ser colocada sobre o conluio do patriarcado e do colonialismo (BAHRI, 2013, p. 662-663, grifos da autora).

A autora observa que, quando inseridas no contexto dos estudos literários pós- coloniais, as perspectivas feministas migram para um cenário mais amplo que sai de uma premissa lastreada em uma ideia de identidade fixa, na maioria das vezes essencialista, para propor uma pespectiva diretamente ligada à história e, assim, instaura um ponto de vista relacional. Esse novo posicionamento tem o gênero como uma categoria importante de análise.

Discussões teóricas e curriculares na academia ocidental aclamam a escrita das mulheres pós-coloniais como uma reação salutar [...] A resultante expansão do cânone tradicional permite que os/as leitores/as explorem temas pós-coloniais através dos contextos específicos das vidas das mulheres do Terceiro Mundo (BAHRI, 2013, p. 667).

Sobre a questão da representação, Bahri destaca os terrenos da literatura, da política e das teorias como as principais vias representativas do subalterno, e alerta, acionando Spivak, sobre os riscos de, na intenção benévola dos intelectuais, esquecer-se que o sujeito é constituído no interior do discurso, ou seja, sua posição não é apenas preexistente a ele. Esse sujeito, portanto, na leitura de Bahri sobre Spivak, deve ser tido não somente como um objeto de conhecimento, mas observado a partir de uma crítica constante e atenta da existência de “outros” que podem estar sendo detrimentados pela representação superficial operada por aqueles que possuem acesso ao espaço público.

78 É no mínimo interessante para nós observar como o texto de Bahri e marcadamente cadenciado pela

Dessa forma, o imbróglio da representação é deflagrado no cenário em que a complexa relação do Primeiro e Terceiro Mundo é, na percepção de Bahri, sempre “ficcional ou parcial [...] (como retrato ou ‘uma obra de ficção’)”, (2013, p. 668). Por isso a autora identifica duas consequências incômodas:

Ambas indicam as complexidades do relacionamento Primeiro Mundo/Terceiro Mundo: uma delas é a construção monolítica das mulheres não ocidentais e a outra, a usurpação do espaço de representação pelas mulheres do Terceiro Mundo no Ocidente (BAHRI, 2013, p. 668).

Lidando com a problemática do essencialismo, Bahri conecta os campos da coletividade identitária e as descrições recorrentes operadas por outros e que ela mesma, a coletividade, faz de si própria:

Dada a importância da identidade e da cultura tanto nos estudos pós- coloniais como nos estudos feministas, não surpreende que as discussões sobre o essencialismo se sobressaiam nessas áreas [...] o conceito essencializado é marcado pelas expectativas de estabilidade estereotipada e de invariabilidade. A redução das diferenças nesse tipo de categorização é incômoda para muitos escritores relutantes a serem lidos e entendidos apenas através das lentes exclusivas e limitadas sugeridas pela terminologia essencialista (BAHRI, 2013, p. 669).

Ainda sobre essencialismo, a autora releva a ambiguidade inerente a essa possibilidade, propondo uma leitura atenta à linha tênue que separa a reificação do padrão de um uso estratégico:

[...] a diferença e o essencialismo podem funcionar como dois lados da mesma moeda. A estratégia do essencialismo pode ser usada para estereotipar e caracterizar indivíduos ou grupos com a infinidade de motivações e consequencias. Estereótipos essencialistas podem ser e tem sido usados para inferiorizar e privar de direitos, criar hierarquias raciais e explorar [...] Ao mesmo tempo, a tipologia essencialista é também usada para justificar agendas de melhoria e desenvolvimento, ou mesmo para compensar as injustiças históricas perpetradas a indivíduos ou grupos. Talvez seja útil lembrar que o essencialismo, de um tipo ou de outro pode ser inevitável. De fato, a categorização identitária de qualquer tipo exige aceitação da tipologia essencialista, mesmo que o próprio grupo lute contra ela (BAHRI, 2013, p. 670).

Bahri (2013) sugere, endossando o argumento de Spivak, a possibilidade de um uso estratégico – prudente e consciente – de um essencialismo que tenha, explicitamente, interesses políticos manifestados. É neste, e outros argumentos das teorias feministas que devemos nos aprofundar a seguir.

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