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3.4 AS FORMAS DE REPRODUÇÃO DO DISCURSO

3.4.3 O discurso indireto livre

Com relação ao discurso indireto livre, Bakhtin [Volochínov] determina que esta é uma forma que inter-relaciona o discurso narrativo e o discurso citado. Para o autor russo, trata-se de um tipo novo32 de arranjo discursivo, possibilitado por questões relacionadas à expressão do contexto comunicativo socioverbal, as quais são outorgadas pelo horizonte linguístico do falante.

Nessa perspectiva, o surgimento do discurso indireto livre deve-se a certas condições socioeconômicas33, que incidem na mudança das relações socioverbais, uma vez que nenhum indivíduo socialmente organizado “cria” aleatoriamente uma

32 Considerando que seu texto é do início do século XX.

33 Segundo Bakhtin, o discurso indireto livre surgiu em função da mudança de paradigma do público

leitor. A saber, em meados do século XIX, com a ascensão da burguesia, a leitura deixa de ser oralizada para um grupo de pessoas e passa a ser individual. Essa situação se deve ao prestígio do ato de saber ler na sociedade burguesa do século XIX, constituindo um tema recorrente inclusive em narrativas do período, como, por exemplo, em O primo Basílio, de Eça de Queirós, obra em que a personagem de Luisinha, quando ainda fielmente casada com Jorge e, portanto, parte da burguesia ascendente, aparece lendo em algumas cenas; após a aproximação da personagem com Basílio, o ato de ler passa a ser fastidioso. Esse caso, tomado para ilustrar a relevância da leitura na sociedade burguesa, evidencia, de certa forma, a mudança do paradigma do valor da leitura, que deixa de ser coletiva e passa a ser individual.

nova estrutura de comunicação. As estruturas da comunicação são, na verdade, produto da relação do sujeito com seu tempo histórico e com seu contexto socioeconômico.

Outro traço particular do discurso indireto livre é seu caráter dualístico: ao mesmo tempo que reflete duas vozes em uma mesma construção, caracteriza-se como um fenômeno específico em termos gramaticais e estilísticos. Há, assim, o plano do que se pretende reconstruir por meio dessa estrutura e também os aportes que o sistema da língua possibilita.

Sobre as possibilidades do sistema da língua, também é pertinente pontuar que existe uma forma geral de discurso indireto livre que se repete em diferentes idiomas; porém, cada língua apresenta características relacionadas a aspectos socioeconômicos que particularizam esse arranjo em função desses traços socioverbais. No que concerne a essa validação social das formas da língua, Bakhtin afirma: “a vida começa apenas no momento que uma enunciação encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo que não seja direta, ‘de pessoa a pessoa’, mas mediatizada pela literatura (2014, p. 186)”. Ou seja, mesmo na construção literária, estão presentes os pressupostos da interação verbal, os quais legitimam tanto a existência do que é dito quanto a forma como o discurso é apresentado e, consequentemente, a perspectiva ideológica que nele é mobilizada.

Se considerarmos essas questões podemos concluir que o discurso indireto

livre é a forma de organização do discurso mais distante da realidade, justamente,

porque o narrador se incrusta naquilo que se pretende representar – se apropria da verdade – com o objetivo de constituir uma associação simultânea de vozes para a constituição da representação de algo que é, em última instância ordenada. Dito isso de outra forma: no discurso indireto livre o narrador é o centro de refência daquilo que está sendo dito e as vozes se entrecruzam de acordo com o que ele pretende representar.

Para Elsa Dehennin (1992) o discurso indireto livre “é um discurso ambíguo,

heterogêneo e instável” (tradução nossa)34. Essa perspectiva coloca em evidência questões relacionadas a falta de unidade das formas verbais (por exemplo, no caso de Los Cachorros o narrador oscila entre o emprego da terceira pessoa do plural e da

primeira e da terceira do singular), o que permite a asserção de que o discurso indireto

livre é não unívoco.

Outro traço da configuração linguística do discurso indireto livre é a omissão do verbo discendi, que introduz o discurso citado. Essa característica resulta na apresentação, por parte do autor do texto, simplesmente da voz de outrem sem marcações específicas, o que confere à informação não citada a dimensão de um fato, e não de pensamentos e palavras atribuídas previamente. Isso significa que o uso do

discurso indireto livre está relacionado, justamente, à apresentação de pensamentos

e palavras como fatos, o que constitui outro tipo de relação entre a voz narrativa e o que está sendo construído, relação essa caracterizada pela ausência de marcação entre o discurso citante e o discurso citado. Esse tipo de recurso confere à ficção uma não fronteirização entre as vozes (de quem cita e de quem é citado), o que provoca uma atenuação entre esses discursos, além, claro, de não apagar a autonomia do

discurso citado35.

Essa opção, por apresentar a voz de outrem sem a introdução dos verbos de dizer, refere-se também à personalidade do falante (narrador), porque, sempre que se faz uso da língua, são suscitados temas ideológicos, os quais são resultado da personalidade do falante, que existe apenas quando ocorre a “materialização objetiva da língua” (BAKHTIN, 2014, p. 195). Essa dinâmica é oriunda do processo de diferenciação ideológica, que integra a interação verbal.

Também está presente na constituição do discurso indireto livre a problemática do sentido do discurso: como é possível determinar os limites entre as vozes? Para o autor russo, o sentido está relacionado à acentuação e à entonação, porque,

no discurso indireto livre, identificamos a palavra citada não tanto graças ao sentido, considerado isoladamente, antes de mais nada, graças às entonações e acentuações próprias do herói, graças à orientação apreciativa do discurso (BAKHTIN, 2014, p. 198).

Ou seja, o sentido deve-se ao que podemos determinar com base nas ocorrências enunciativas que constituem a personalidade do herói, a qual vai sendo construída a partir da leitura que localiza os fatos de acordo com as vozes presentes no discurso

indireto livre.

35 A não discrepância entre as vozes da narrativa provoca um efeito de sentido de que a história incrusta

argumentos de autoridade sobre o que está sendo narrado. O que está entre as hipóteses desta dissertação é que esse tipo de recurso valida a história ou, melhor dito, assegura traços da verossimilhança interna, que contribuem para o efeito de ilusão de realidade oral.

Por fim, é preciso ressaltar que o discurso indireto livre, além de ser uma maneira de apreender na língua o discurso de outrem, consiste em uma forma do discurso que reflete mudanças sociais da interação verbal e, consequentemente, do aspecto ideológico verbal. Esses traços do funcionamento do discurso indireto livre refletem a relação entre os sujeitos, pois se referem à constituição da palavra de outrem a partir de outra voz, sendo caracterizados pela ausência de marcas que indiquem um pertencimento e pela reprodução do discurso.

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