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Levando em consideração o maior detalhamento da jurisdição indígena em matéria penal na legislação vigente, foram identificadas pesquisas de jurisprudência voltadas para a temática. Como os sistemas de busca de jurisprudência não contemplam a totalidade das decisões, inclusive as proferidas após a criação da plataforma (Wang et. al. 2014: 127) não é possível fazer afirmações peremptórias sobre a existência ou não de posições majoritárias, apenas indicar tendências103. Em pesquisa (Moreira 2014) que contemplou os dois tribunais superiores (STJ e STF), TRF1 e TJMS, não foram identificadas decisões que envolviam o questionamento de medidas de autoridades indígenas em matéria penal. Já Barreto (2003), considerando os dois tribunais superiores e as cinco regiões da justiça federal, identificou um caso no qual o exercício da jurisdição penal indígena justificou a absolvição do acusado.

Dos casos penais envolvendo indígenas, as disputas nos tribunais superiores envolviam a competência, se da justiça federal ou estadual, em razão do artigo 109, XI da Constituição (disputas sobre direitos indígenas). A doutrina indigenista tende a argumentar

por uma interpretação mais ampla da competência da Justiça Federal, por considera-la melhor preparada para lidar com questões relativas aos povos indígenas (Villares 2013: 314-318; Moreira 2014: 221; Barreto 2003: 75-94). O STF e o STJ, no entanto, adotam uma interpretação mais restritiva: apenas casos que repercutissem sobre a integridade do grupo como um todo devem ser julgados pela Justiça Federal, enquanto crimes isolados envolvendo indígenas (como autores ou vítimas) devem ser julgados pela Justiça Estadual104. Outros casos penais envolviam argumentos de cerceamento de defesa em razão da ausência de perícia antropológica ou tradução105. Estes argumentos eram rejeitados com base na verificação, pelo juiz, do “grau de integração” do acusado, evidenciado pelo fato de serem eleitores, falarem português, terem frequentado escolas e trabalharem ou adquirirem bens fora da terra indígena. Segundo Villares (2013: 307), estas decisões evidenciam uma confusão em relação à imputabilidade penal do índio, que “mistura o histórico tratamento do índio como menor no Direito Civil com uma analogia da incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Para o autor (2013: 308-313), em princípio qualquer índio pode ser processado penalmente, mas pode incorrer em erro culturalmente condicionado, ou seja, um erro de proibição relacionado ao fato de uma pessoa inserida em determinada cultura ter dificuldades para interiorizar as regras de outra. O erro admite gradações: se inevitável, isenta o agente de pena e, se evitável, é causa de diminuição (artigo 21 do Código Penal). A figura do erro, portanto, trata o indígena como agente imputável. A verificação desse erro, no entanto, é uma questão de prova que demanda perícia antropológica. O papel da perícia, então, é entender se a conduta do agente de fato se deu de acordo com sua cultura, ou seja, de acordo com o que determinaria seu direito costumeiro, e isso pode ocorrer independentemente da familiaridade do agente com a cultura majoritária. A simples verificação, pelo juiz, de elementos que indiquem a familiaridade do agente com a cultura majoritária ignora a possibilidade de este estar inserido em duas culturas e reforça a orientação assimilacionista de que, uma vez inserido na sociedade majoritária, o indígena deve necessariamente se submeter ao direito estatal e agir sempre conforme suas exigências. Estas considerações: no entanto, se aplicam apenas a conflitos entre indígenas: crimes praticados contra não-índios ou mesmo contra índios que desejam a intervenção do Judiciário devem ser punidos por este.

104 Ver decisões citadas em Barreto 2003: 75-84.

105 As principais decisões dos tribunais superiores são os HC 85.198/MA (STF), 40.884/PR, 30.113/MA, 25.003/MA e 9.403/PA (STJ) (Villares 2013: 313).

Um outro fator relevante além da tendência do Judiciário a desconsiderar a cultura indígena é a perda de capacidade das próprias autoridades indígenas para resolver os conflitos internos. Um exemplo disso é a região do cone sul do MS, marcada por disputas entre indígenas e fazendeiros pela posse da terra e pela interferência do Estado na organização interna dos povos indígenas. A FUNAI interfere nas lideranças, fortalecendo as autoridades indígenas ligadas ao órgão em detrimento das demais. Outro fator de interferência é a frequência de crianças indígenas a escolas comuns:

“A entrada das escolas provocou reflexos que não são pequenos. As crianças hoje falam português muito melhor do que falam os mais velhos. O português é que vai fazer com que elas tenham contato com o mundo externo – prefeitura, MPF, etc., fator de empoderamento. Com isso, os pais perderam o controle e a ascendência sobre os jovens. Os jovens ficam numa situação extremamente complicada. Eles estão recebendo muito mais influências externas, mas ao mesmo tempo, sofrem todas as barreiras discriminatórias que vêm pelo fenótipo”106

Os conflitos pela posse da terra, por sua vez, levam os indígenas a demandar a presença de forças policiais nas aldeias e encontrar resistência do próprio governo do MS. A Procuradoria do Estado emitiu um parecer argumentando que as terras demarcadas, por serem de propriedade da União, seriam de responsabilidade da Polícia Federal e não das polícias civil e militar. Uma tentativa de parceria entre a União e o MS foi frustrada:

“A União queria fazer uma parceria com o estado, com repasse de verbas, veículos, mas foram tantas exigências do estado do MS, que por fim o Ministério da Justiça desistiu da parceria. E lamentavelmente era tudo que o governo queria. Se eximir de ter de atuar nas aldeias.”107

Em situações como essa, dificilmente a organização social dos povos indígenas será coesa o suficiente para a permanência de modos costumeiros de resolução de conflitos internos.

Aos casos nos quais os crimes são diretamente julgados pelo Poder Judiciário contrapõe-se um caso de exercício da jurisdição indígena que posteriormente foi levado a júri popular perante a Justiça Federal108. No estado de Roraima, um Tuxaua foi julgado pelo conselho da própria comunidade pelo homicídio de outro indígena. Foi punido com a obrigação de sepultar a vítima e com o afastamento da comunidade pelo tempo que o conselho julgasse necessário, o que durou quase catorze anos. Quando o caso foi levado ao

106 Trecho de entrevista concedida em 2011 por Marco Antonio, procurador da República em Dourados (Moreira 2014: 203).

107 Trecho de entrevista concedida em 2011 por Cesar de Souza Lima, juiz-diretor do fórum de Amambaí (Moreira 2014: 205).

Judiciário, a perícia antropológica atestou que os Tuxauas tinham o costume de exercer jurisdição sobre os conflitos internos, que o conselho era uma autoridade permanente, escolhido pelos próprios membros da comunidade, o que a maior pena aplicada era a de banimento. O Ministério Público Federal pediu a absolvição do acusado por considera-lo já punido, e o júri aceitou a tese (Barreto 2003: 119-120).

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