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bre um discurso marcado pelo outro

No documento Coleção Mestrado em Lingüística Volume II (páginas 194-200)

Estado da Educação de São Paulo (artigo publicado inicialmente em 1978 em Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 2.o grau, coletânea de textos que visava implementar a Proposta Curricular

de Língua Portuguesa para o 2.o grau, de 1977), lista alguns desses

preconceitos presentes em falas de professores:

A norma culta representa o português correto; tudo o que foge à norma representa um erro;

O bom português é aquele praticado em determinada região. Se compararmos Portugal ao Brasil, o português europeu é mais correto - basta ver como se colocam bem os pronomes por lá, e ainda se faz a concordância e se conjugam os verbos com perfeição. Agora, se ficarmos no Brasil, o melhor português é o do Rio de Janeiro. Ou o de São Luís do Maranhão;

O bom português é aquele exemplificado nas chamadas épocas de ouro da literatura. Os séculos clássicos, portanto. Depois dos clássicos veio a decadência da língua portuguesa;

Dentre a multiplicidade de formas de expressão, só uma é cor- reta e todas as demais são erradas (p. 54-55).

Essas posições sobre a língua portuguesa e suas variedades (diastráticas, diatópicas e históricas) foram tratadas por Castilho como “desinteligências”, “confusões” ou “enganos”. Também têm sido tratadas por lingüistas como “mitos” que, perpetuados pela mídia de referência, deveriam ser combatidos. É nessa linha ar- gumentativa que encontramos publicações de Marcos Bagno em que o autor descreve como “obscurantismo anticientífico” a forma como a mídia lida com questões relativas à língua e ao seu ensino. Como exemplo desse “obscurantismo” o autor (BAGNO, 2001) faz referência a uma matéria de capa da revista Veja (de /11/2001, que tem por título “Falar e escrever bem”) e a estréia de Pasquale Cipro Neto no programa Fantástico da Rede Globo de televisão. Em outra publicação, o autor afirma que:

Quando o assunto é língua, existem na sociedade duas ordens de discurso que se contrapõem: (1) o discurso científico, emba- sado nas teorias da Lingüística moderna, que trabalha com as noções de variação e mudança; e (2) o discurso do senso comum,

impregnado de concepções arcaicas sobre a linguagem e de precon- ceitos sociais fortemente arraigados, que opera com a noção de erro.

(BAGNO, 2006, itálico adicionado)

Como podemos perceber a partir da citação, o senso comum sobre língua é tratado pelo autor como os conhecimentos que vão de encontro à ciência moderna da linguagem, a lingüística. É colocado como “arcaico” e impregnado de preconceitos sociais. Em sua argu- mentação, o lingüista (BAGNO, 2006) mostra que se encontra esse senso comum ao longo da história:

Se não existissem livros compostos por frades, em que o tesouro está conservado, dentro em pouco podíamos dizer: ora morreu a língua portuguesa, e não descansa em paz (José Agostinho de Macedo [1761-1831], escritor português);

Temos a prosa histérica, abastardada, exangue e desfalecida de uma raça moribunda. A nossa pobre geração de anémicos dá à história das letras um ciclo de tatibitates [...] (Ramalho Ortigão [1836-1915], escritor e político português);

[...] português – um idioma que de tão maltratado no dia-a-dia dos brasileiros precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm como língua materna [...] (SABINO, Mario. Veja, 10/9/1997);

Não fique nenhuma dúvida, o português do Brasil caminha para a degradação total [...] (CASTRO, Marcos de. A imprensa

e o caos na ortografia. São Paulo: Record, 1998, p. 10-11);

[...] o usuário brasileiro da língua [...] comete erros, improprie- dades, idiotismos, solecismos, barbarismos e, principalmente, barbaridades (GIRON, 2002).

Vê-se, nos enunciados acima e em outros facilmente encontráveis nos discursos sobre língua nas mídias, um purismo lingüístico que busca a preservação do idioma em sua qualidade de “bem dizer”. É nesse sentido que se pode afirmar, com o autor, que o senso comum sobre língua é conservador, visto mostrar rejeição a inovações lingüís- ticas – que podem indiciar uma mudança no idioma (“Não fique nenhuma dúvida, o português do Brasil caminha para a degradação total”) – e a variedades (“Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa”).

Em publicação anterior, o autor se propõe a escrever sobre a “mi- tologia do preconceito lingüístico” alimentada

[...] diariamente em programas de televisão e de rádio, em co- lunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem ensinar o que é certo e o que é “errado”, sem falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da língua: a gramática normativa e os livros didáticos (BAGNO, 2000, p. 13).

Organiza a primeira parte de seu livro em torno desses “mitos”, assim arrolados:

1. “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”;

2. “Brasileiro não sabe português / Só em Portugal se fala bem português”;

3. “Português é muito difícil”;

4. “As pessoas sem instrução falam tudo errado”;

5. “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é no Maranhão”;

6. “O certo é falar assim porque se escreve assim”; 7. “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”; 8. “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”.

Considerarei, neste texto, esses “mitos” sobre os quais nos fala Marcos Bagno, que constituem discursos do senso comum presentes em instâncias públicas ligadas aos meios de comunicação e às relações de ensino. No entanto, não os tomarei como “mitos”, mas como “saberes” do senso comum. Saberes conservadores (ver mitos n. 2 e 5). Saberes elitistas, porque só atribuem prestígio às culturas desenvolvidas no interior das cidades letradas1 (ver mitos n. 4, 6 e 7) e porque excluem as possibilida-

des de ascensão social daqueles que não dominam a dita “norma culta” 2

(ver mitos n.3 e 8). A respeito desse último caso, sabemos que aquele que usará uma norma culta mais próxima da norma prescritiva será o que tem acesso à escrita e a outros bens culturais das classes sociais mais favo- 1 Tomo aqui cidades letradas tal como propõe Angel Rama (1985). Em ensaio que mostra como se deu o controle de populações na América espanhola e portuguesa, desde o início de sua colonização, o autor define essas cidades como: “(...) o anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais. Todos os que manejavam a pena estavam estreitamente associados às funções do poder (...)” (p. 43). Rama atribui a supremacia da cidade das letras, dentre outros fatores, à sacralização das letras, e por conseqüência, da escritura, dentro da tendência gramatológica da cultura européia. A cidade letrada era uma cidade escriturária que representava uma minoria dentro da “cidade real”. Era rodeada na vida social por anéis de populações que não dominavam a escrita. Assim, via-se não só em situação minoritária dentro da sociedade, mas em necessidade de exercer uma atitude defensiva dentro de um meio hostil. Fazia-o apoiando-se no manejo uma “língua minoritária”, aos moldes das metrópoles: “O uso dessa língua [escrita e ‘pura’] purificava uma hierarquia social, dava provas de uma proeminência e estabelecia um cerco defensivo em relação a um contorno hostil e, sobretudo, inferior” (p. 58). De acordo com Rama, o purismo lingüístico “(...) foi a obsessão do continente no transcurso de sua história” (p. 61).

2 O conceito de norma culta tem sido utilizado, no senso comum, como sinônimo daquela presente nos instrumentos lingüísticos como gramáticas e dicionários, ou seja, como sinônimo de norma prescritiva. Mas, para os sociolingüistas brasileiros, metodologicamente, norma culta é considerada a norma utilizada por falantes que possuem nível universitário.

recidas economicamente, o que significa que a língua não é diretamente um meio de ascensão social – esse discurso de que “o domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” mascara as desigualdades sociais que são responsáveis pela falta de oportunidades da população menos favorecida. O discurso “português é muito difícil” também exclui os falantes pertencentes aos setores econômicos menos favorecidos das chances de ocupar determinados lugares sociais de prestígio, porque já se parte do princípio de que “ele não aprenderá a variedade lingüística usada pela elite”. Também o mito n. 1 é elitista: reforça o sentimento nacional em torno de uma união que mascara as diferenças e as desigualdades, mascara o preconceito lingüístico e social, comportamento adequado e interessante para boa parcela da elite nacional.

Outro lingüista brasileiro que se refere aos “mitos” sobre a relação entre a língua e seus falantes, “mitos” esses reforçados pela tradição gramatical, é Carlos Alberto Faraco (2002). O autor reclama da falta de reconhecimento da lingüística na sociedade brasileira e critica o normativismo presente nas mídias. Como Bagno, contrapõe os estu- dos científicos desenvolvidos pela lingüística à tradição gramatical, criticando-a por ser baseada em “saber mítico” e ser preconceituosa. O autor também se dirige contra figuras destacadas na mídia que se tornam porta-vozes do senso comum. Defende a superioridade do discurso científico sobre os outros discursos que dizem a língua no país. Escreve que as idéias sobre linguagem do senso comum são “asneiras”, um “rematado absurdo”.

Em outro texto, Faraco (2001) critica o “mito” da unidade lingüís- tica que é atualizado no Projeto de Lei n. 1.676, proposto à Câmara dos Deputados em 1999 pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP); este se propunha restringir o uso dos estrangeirismos na vida pública do brasileiro. O referido projeto de lei foi duramente criticado pela comunidade científica – podemos dizer que esse confronto político pôs em evidência a oposição entre “saber científico” e “saber do senso comum” no país.

o purIsmo lIngüístIco e o senso comum na mídIas contemporâneas3

Considerando a metalinguagem presente nos discursos vei- culados na mídia no final do século XX e início do século XXI, encontrei dois tipos de purismo lingüístico predominantes, os quais chamei de “purismo nacionalista” e “purismo neoliberal” (MENDONÇA, 2006a).

Tomei por “purismo nacionalista” a metalinguagem que pres- supõe uma atitude lingüística que ajuda a sustentar a exaltação do sentimento nacional. No caso específico da luta contra os estran- geirismos no Brasil do final do século XX e início do século XXI, o “purismo nacionalista” se aproxima do “purismo ortodoxo”, no sentido que lhe atribui Marli Quadros Leite (1999), em que se deseja ver preservada a “norma prescritiva”. Mostrei que essa tendência nacionalista relacionada ao uso lingüístico constitui-se a partir da tradição gramatical presente na sociedade brasileira e do discurso dos escritores românticos do século XIX. O enunciado transcrito a seguir é exemplo desse tipo de purismo lingüístico:

O deputado Aldo Rebelo apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei destinado a defender a língua portuguesa das palavras e expressões que a estão desfigurando.

Entre os bens culturais que um povo possui, a língua que ele fala é, talvez, o mais importante e, sem dúvida, o primeiro com o qual seus cidadãos entram em contato. No meu caso particular,

isto é tanto mais verdadeiro na medida em que, sendo escritor, a língua portuguesa é meu instrumento de trabalho. Para mim, o exercício da literatura pode ser um ofício duro, mas é também um jogo exaltador e indispensável, fascinante, poderoso. Encaro a literatura como missão e festa, ao mesmo tempo. (...)

3 A reflexão que se encontra neste item foi parcialmente adaptada de Marina Célia Mendonça (2007a).

No documento Coleção Mestrado em Lingüística Volume II (páginas 194-200)

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