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CAPÍTULO 2: A Enunciação Reportada: da tradição gramatical às teorias enunciativas

2.2 A enunciação reportada no quadro da TOPE

2.2.1 Discurso Reportado Direto

Dentre as diferentes formas de enunciação reportada, existem aquelas ocorrências em que há distinção entre o dito/escrito pelo enunciador e o dito/escrito pelo locutor. Na escrita, a distinção formal da fala do locutor pode ocorrer por meio de aspas, travessão ou alguma outra forma que explicite seu discurso. A este tipo de enunciação reportada, atribui-se, tradicionalmente, o nome de discurso direto.

Alrahabi & Desclés (2009, p. 26) sugerem57 uma abordagem semântica e cognitiva para

distinguir enunciador e locutor, diferentemente dos modelos de análise puramente sintáticos.

57 Embora não se trate especificamente do português, mas do francês e do árabe, os autores realizam uma discussão

teórica com pressupostos da TOPE, e que, portanto, contribuem com a compreensão do funcionamento da enunciação reportada pelo viés teórico que fundamenta nossa tese. Alguns exemplos que trazemos foram retirados do texto dos autores e por nós traduzidos e adaptados para o português. Nos casos de exemplos retirados de outra fonte, a referência será mencionada.

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Os autores apresentam quatro formas prototípicas do discurso direto que envolvem traços formais da distinção entre enunciador e locutor. São elas58:

1. X introdutor: “…” / introdutor-X: “…”

2. X introdutor que “…” / introdutor-X que “…” 3. “..., introdutor-X, ...”

4. “...”, introdutor-X

Os enunciados entre aspas são pertencentes ao discurso do locutor. A forma apresentada em 2 corresponde aos discursos introduzidos por “que”. Os autores nos esclarecem que o termo “introdutor” não está sendo utilizado em seu sentido literal, uma vez que pode aparecer antes ou depois da reportação. Entende-se por “introdutor” os verbos e locuções adverbiais, por exemplo. O símbolo X representa uma ocorrência realizada pelo locutor.

Além dessas formas prototípicas de discurso direto com a separação das vozes do locutor e enunciador, os autores apresentam formas que o locutor não está presente. É o caso de59:

Eu ouvi / Foi-me dito o seguinte: “...”

O introdutor, no exemplo acima, “representa um marcador que denota um ato de linguagem reportada, sem o qual não saberíamos que ele existe” (ALRAHABI, M., & DESCLÉS, J. P., 2009, p. 27). O esquema enunciativo do discurso direto pode ser representado segundo o sistema de orientação descrito por Culioli (1990), em que X é localizado em relação ao Eu:

Eu digo (Enunciador (X – Diz (Locutor (o que se disse)))) 1. Eu disse: “...”. Tem-se um exemplo de identificação entre X e Eu.

2. Você disse: “...”. Tem-se um exemplo de diferenciação em que X é diferente de Eu. 3. Ele disse: “...”. Tem-se uma relação de ruptura entre X e Eu.

58 1. X introducteur : “...” / introducteur-X: “...”; 2. X introducteur que “...” / introducteur-X que “...”; 3. “...,

introducteur-X, ...”; 4. “...”, introducteur-X. (ALRAHABI, M., & DESCLÉS, J. P. 2009, p. 27).

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O discurso direto relaciona-se, segundo Alrahabi & Desclés (2009), com valores de verdade, plausibilidade e com a modalidade apreciativa e intersubjetiva.

O valor de verdade no discurso direto ocorre “por meio de ajustamentos, de jogos discursivos ou de negociações dialógicas, etc.” (idem, p. 26)60 entre enunciador e coenunciador.

Isso acontece quando o enunciador, durante a enunciação, não se preocupa, nem se responsabiliza, com a veracidade do enunciado que reporta. Um exemplo típico é o uso do verbo dizer atribuído ao enunciador, como em (a), ou ao locutor, como em (b):

(a) Eu digo que X disse: “...”. (b) X diz: “...”.

Há outros enunciados, no entanto, que o enunciador se responsabiliza pelo conteúdo da predicação e faz um julgamento sobre aquilo que reporta. O enunciador atua, então, como um suporte do valor de verdade ou falsidade da relação predicativa, como nos exemplos (c) e (d):

(c) Eu afirmo que X disse: “...”.

(d) X afirmou a seguinte informação: “...”.

No discurso direto, o enunciador pode, ainda, apresentar o conteúdo como uma verdade ou um saber por ele evidenciado, como nos seguintes casos:

(e) Eu estou certo que... (f) É verdade que... (g) Eu sei que...

(h) Eu tenho provas de que...

Ao que diz respeito à asserção do locutor sobre o conteúdo proposto, os marcadores limitam-se aos introdutores que indicam uma asserção, como no uso dos verbos afirmar e

constatar, por exemplo. Correntemente vemos esse tipo de construção em textos jornalísticos, em que o enunciador passa a palavra ao locutor. Ele afirma pelo locutor a fim de trazer um caráter de verdade, de veracidade, à informação dada, como no caso do seguinte exemplo61:

60 “Celle-ci est alors négociable entre l’énonciateur et le co-énonciateur via des ajustements, des jeux discursifs ou

des négociations dialogiques, etc.” (ALRAHABI, M., & DESCLÉS, J. P. 2009, p. 26)

61 Disponível em: <http://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2017/02/ministro-diz-que-faltam-4-para-obras-

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[...] o ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, afirmou nesta quarta-feira (22) que "faltam apenas 4% para conclusão das obras do Projeto São Francisco".

Já o valor de plausibilidade diz respeito à forma de comunicação que implica uma separação parcial do enunciador e o conteúdo predicativo em discurso reportado. O enunciador indica, de maneira implícita, de que modo teve conhecimento de um fato. Um ato de locução reportado é entendido como “plausível” quando expressa o resultado de raciocínio baseado nos índices de percepção do enunciador. Esse raciocínio é evidenciado, muitas vezes, por meio de marcadores, tais como, assim, então, olhe etc., como em:

Pedro teria dito, então: “Eu prefiro sua irmã”.

O enunciador pode, também, por meio de marcadores linguísticos, mostrar sua atitude segundo uma modalidade de julgamento apreciativo. A apreciação pode abranger a totalidade da enunciação reportada (com a utilização de marcadores linguísticos como finalmente,

felizmente, etc.) ou referir-se ao conteúdo da enunciação do locutor. Neste caso, o enunciador faz um julgamento sobre a atitude que o locutor adota durante o ato de locução ou sobre a maneira como o locutor enuncia. Por exemplo:

Eu estou aliviado que ele me disse: “...”.

Há ocorrências que o locutor é avaliado pelo enunciador segundo o critério de verdade. Assim, o enunciador pode tomar a enunciação reportada chamando pela veracidade do locutor por meio de marcadores como presumir, dizer com sinceridade, etc. O enunciador pode, também, fixar uma opinião favorável ou desfavorável sobre a qualidade do conteúdo (falar

bem...; falar mal...; bom ou ruim; interessante ou chato, etc.), ou opinar sobre a maneira como o locutor enuncia (com precisão, claramente, com rigor, etc.).

Alrahabi & Desclés (2009) também retratam os casos que o enunciador descreve o locutor por sua atitude fisiológica ou psicológica. A atitude fisiológica cobre os índices dependentes da locução (como no caso dos marcadores de pronúncia ou de dialeto) e marcadores de intensidade de voz (como no caso de gritos ou sussurros), por exemplo. A descrição da atitude fisiológica abrange, igualmente, os marcadores independentes da locução, como aparência da face, a mudança da cor da pele, a postura diante da locução, etc.

Já a atitude psicológica que o locutor mostra durante a enunciação é indicada por meio de marcadores que exprimem, por exemplo, o arrependimento, a emoção, o espanto, o estresse,

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o medo, a raiva, a admiração, o aborrecimento, a satisfação, etc. No exemplo abaixo, é possível identificar, por meio do marcador “irritou-se”, a descrição do estado de Mike Greenwood no momento da enunciação:

“Desde o início, cada vez que a tailandesa pudesse ser colocada nos trilhos, as autoridades tomavam uma decisão errada”, irritou-se Mike Greenwood62.

A respeito da modalidade intersubjetiva no discurso direto, deve-se considerar o coenunciador e o colocutor. Focalizando na relação locutor - colocutor, o locutor toma um conteúdo predicativo e o apresenta ao seu colocutor por meio de diferentes formas, como as expressas pelos marcadores dizer, informar, lembrar, etc.

Em algumas ocorrências, a relação com a verdade do conteúdo predicativo é posta por meio de marcadores, tais como denunciar, acusar, etc. Em outras, com marcadores ceder,

aceitar, contestar, propor, prometer, mudar, pedir, ordenar, encorajar, proibir, permitir, ameaçar, convencer, etc., é possível expressar o valor de vontade que locutor e colocutor exercem um sobre o outro.

Outro caso descrito por Alrahabi & Desclés (2009), a respeito da modalidade intersubjetiva, refere-se às ocorrências em que há uma apreciação expressa pelo locutor numa situação face a face de seu colocutor. Os marcadores podem ser: simular-se, humilhar, criticar,

gabar-se, desculpar-se, queixar-se, etc.

Há ainda outras operações de enunciação reportada relacionadas com o discurso direto. É o caso de ocorrências em que o enunciador situa a enunciação reportada de acordo com um referencial espaço-temporal (X disse em Paris; X disse ontem) ou referencial temático (X disse a respeito de Y). Também há casos em que o enunciador descreve a organização do discurso do locutor (abordar um tema, a síntese, o resumo, etc.), ou casos que demonstram uma situação dialógica entre locutor e colocutor (interpelar, interrogar, responder, transmitir, etc.).

Os autores também descrevem a organização dos marcadores linguísticos em relação à semântica e ao contexto, além disso, destacam a importância dos sinais tipográficos, das reticências (com valor de suspensão), das interjeições e o que estiver fora das aspas da citação,

62 « Depuis le début, chaque fois que la thaïlandaise aurait pu être remise sur les rails, les autorités ont pris la

mauvaise décision », s'énerve Mike Greenwood, de Paribas-Asia Equity (ALRAHABI, M., & DESCLÉS, J. P. 2009, p. 29).

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como pontos de exclamação ou de interrogação. São todos aspectos importantes que contribuem para a interpretação da enunciação reportada.