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3. O ponto de vista em A Mulher Sem Cabeça

3.3 Juntando as pistas narratividade e compreensão

3.3.1 Discurso social implícito

Após esse percurso através das marcas discursivas deixadas pelo meganarrador e sua influência na compreensão narrativa, se faz premente uma tentativa de decodificação do discurso implícito, uma das possíveis chaves de leitura imanentes ao texto, a nossa solução para esse "sudoku narrativo" que o filme propõe. Para além da temática "crime e castigo", que salta aos olhos na camada discursiva mais superficial do filme, nossa análise dos enquadramentos e das encenações nos remete a outro tema, mais subjacente, mas igualmente impregnado na obra: a marginalidade. Existe uma divisão muito forte no filme entre ricos e pobres, homens e mulheres, que é acentuada e sublinhada pela enunciação.

Os garotos humildes, que moram na zona do canal, entre eles o garoto "atropelado", só ganham destaque na primeira cena do filme. É o único momento em que eles tem direito a planos fechados e protagonismo. Após o atropelamento, tornam-se vultos desfocados, personagens marginais, que habitam outro mundo que não o de Vero e seus familiares. Sua pele é mais escura e os traços mais brutos, de origem indígena. Vez que outra algum deles

vai à casa da família oferecer seus serviços ou pedir algo para comer e vestir, mas, além de terem seus pedidos negados, estão sempre fora de quadro, silhuetados ou fora de foco. São uma gente sem rosto, sem importância para Vero — condenados a serem inferiores imageticamente. Em determinado momento, durante uma conversa entre Vero e Candita, Josefina interrompe a filha e pede-lhe que receba os entregadores de flores (que mais tarde revelam- se da família do garoto morto). Josefina reclama dessa "gente", verbalizando essa divisão de classes entre eles, uma família de posses na cidade, e os floristas, os mais pobres que vivem na periferia.

Curiosamente, antes de retomar a consciência e ser blindada por sua família, Vero é cuidada e amparada por pessoas humildes. Logo após o acidente, no posto policial, uma senhora toca os cabelos de Vero, preocupada que molhem na chuva. No hospital, os outros pacientes que aguardam atendimento, todos de aparência simples, reparam nela, tentando ajudá-la a não dormir para não agravar a concussão. Sua família e amigos, em contraste, não reparam (ou fingem não reparar) no desnorteamento de Vero. No final das contas, o momento em que Vero mais externa suas emoções é em um desses contatos com "essa gente" humilde. Logo após ter visto um dos fantasmas do garoto morto, no campo de futebol, Vero busca refúgio no vestiário e desata a chorar sozinha. Um clarão de solda e o seu som metálico interrompem seu breve desabafo. Talvez para não demonstrar sua fragilidade, Vero reclama com o funcionário soldador que não há água no banheiro. Prontamente o funcionário para o que está fazendo e vai examinar a torneira. Vero não se contém e comprime o rosto, voltando a chorar. Preocupado, o funcionário pergunta se ela está bem, mas Vero não responde. Em vez disso, ela o abraça e chora em seu ombro (Fig. 52). Contando as moedas que tem, o funcionário compra uma garrafa de água e usa-a para molhar a nuca de Vero. Ela se recompõe, coloca os óculos escuros e sai sem agradecer, com um seco: "boa tarde".

Figura 52

Fonte: A Mulher Sem Cabeça (La Mujer Sin Cabeza, 2008).

Quando Vero reúne evidências suficientes para crer ter atropelado e matado um garoto, e, mais do que isso, descobre que sua família acobertou as provas que a uniam ao acidente, podemos notar uma mudança na atitude de Vero em relação à classe desfavorecida. Sua mudança é marcada visualmente pela tintura dos cabelos de preto — como se, ao deixar o cabelo loiro para trás, Vero pudesse também deixar para trás as perturbações que sofreu ao longo desse período e assumir um novo estado de espírito, mais consciente e caridoso. Justo na primeira cena em que Vero aparece de cabelos negros, o garoto que lava os carros volta a bater à porta da casa da família. Vero que outras vezes recusou-se a dar atenção ao garoto, agora convida-o a entrar e lhe oferece um café com leite, algo para comer. Olha o garoto com interesse. Oferece-lhe também roupas usadas. É flagrante a mudança no comportamento de Vero, que agora atende com tamanha solicitude o mesmo garoto que havia rejeitado outras vezes. Na cena seguinte, Vero participa de um exame odontológico coletivo no pátio de uma escola. Voluntariosa, ela examina a boca de uma a uma das crianças humildes. Por mais que, ao longo do filme todo, a montagem ordene as cenas sem um encadeamento lógico-causal forte, essas duas cenas seguidas de Vero tratando bem os mais pobres evidenciam ainda mais a mudança na personagem e reforçam a nossa leitura. Culpada por acreditar ter lesado uma família pobre, Vero parece acometida por um desejo de reparação, uma forma de expiar o mal que causou. Trata-se de mais um índice dramático que vinha sendo plantado ao longo do filme para ser colhido agora.

Do início ao fim, Vero é conduzida, cuidada; seus problemas são resolvidos por ela; lhe dizem o que deve fazer ou simplesmente tomam as atitudes no seu lugar. A primeira vista A Mulher Sem Cabeça do título remete ao seu estado de desorientação, mas podemos também ler essa metáfora em outro sentido, como referência a uma mulher impotente, passiva, alheia aos que a cercam, em especial aos que estão abaixo dela. Se no final ela esboça uma maior humanidade para com os mais pobres, os marginalizados, na última cena a vemos seguindo em frente com sua vida frívola em um evento social onde só estão presente os mais ricos, os privilegiados, os impunes. Ao final, ela não é atingida por nenhuma conseqüência concreta dos seus atos, segue protegida dentro de uma redoma que, como a porta de vidro no último plano do filme (Fig. 53), traça uma barreira intransponível entre as classes sociais, entre os que estão no centro e os que estão à margem.

Figura 53

Fonte: A Mulher Sem Cabeça (La Mujer Sin Cabeza, 2008).

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