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5.3. As percepções sobre as diferenças de gênero na carreira

5.3.1. Discursos contestados da diferença

O discurso do profissionalismo – que cria a representação do grupo, de um “nós” composto de jornalistas competentes, profissionais, contadores de estórias, honestos, isentos, comprometidos com a verdade e a ética – é feito para construir o apagamento das diferenças de gênero na carreira.

O discurso do profissionalismo é empregado por alguns grupos que buscam fazer uma representação do todo, forjando a construção de identidades profissionais e dos sentimentos de pertencimento ao grupo. Assim, o sentimento de pertencimento à profissão, materializado na neutralidade do profissionalismo, pode apagar as especificidades e esconder a heterogeneidade do grupo. Uma das formas de experimentar o gênero é enfatizando a identidade na profissão, ao mesmo tempo em que a diferença de gênero, como relação social, ou seja, como experiência compartilhada no grupo, é apagada, isolada na subjetividade, na interioridade socialmente produzida, que fica restrita à intimidade.

O mundo das profissões orienta-se, em geral, por práticas e valores masculinos, fundamentados na neutralidade e racionalidade. Assim, a “eficácia simbólica” da profissão se expressa em razão de a sociedade confiar na expertise, reconhecendo sua autoridade. A ideologia por trás da expertise é de que o saber é neutro. E o saber se afirma neutro à sociedade justamente porque se aplica sem distorções, utilizando exclusivamente este conhecimento (BONELLI, 2010).

De acordo com Bonelli (2010), como o gênero permanece sendo uma eterna desvantagem, as mulheres de nível superior empenham-se em realizar um “apagamento de gênero”, contestando, por meio de sua negação, a “reprodução de dominação e sujeição” do gênero. Nos termos da autora: “O apagamento do gênero como diferença identitária é uma ação promovida por sujeitos [...] A experiência na profissão traz mais reconhecimento e valorização social, reforçando a identificação profissional perante o pertencimento a outra comunidade, como a de gênero” (p. 278). É o caso de juízas que buscam “apagar a diferença por meio da neutralidade da expertise”:

A neutralidade não é um saber abstrato descolado do corpo. Ela ganha forma física, na postura imparcial, no vestir, na conduta nas relações profissionais com os pares, os jurisdicionados, a mídia mas também nas relações sociais mais amplas [...] A vivência dessa forma de ser, desse estilo de vida promove o sentimento de pertencimento [...] Os resultados alcançados nesse processo trazem realização, tornando os membros da carreira ativos promotores da disposição interiorizante da subjetividade e do apagamento da diferença como identidade do eu ou como identificação coletiva proclamada(p. 277).

Segundo Brah (2006), há uma diversidade de formas pelas quais os discursos da diferença são “constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados”. A forma como a mulher que realiza o “apagamento de gênero” experimenta o gênero é mantendo-o na intimidade, na subjetividade, não na prática da profissão. Os valores profissionais são exaltados por resultarem em maior reconhecimento da profissional, o que conduz as mulheres a reforçarem sua identidade profissional em detrimento da de gênero, que estaria ligada a estereótipos negativos.

Pensando sobre sua trajetória profissional de quase 50 anos dentro do jornalismo, Elisa nega a diferença como relação social. Em sua percepção, “trabalhar dobrado” contribuiu para apagar as marcas de gênero e permitiu que seu valor como profissional pudesse se destacar, já que tinha “fama de trabalhar muito”.

Eu nunca fui discriminada por ser mulher. Não posso considerar isso. Talvez tenha sido e não tenha percebido. O que me levou a não ser é que eu tinha até a fama de trabalhar muito. Eu tinha que trabalhar dobrado pra valer um homem! Eu trabalhava muito! Eu era a única pessoa a escrever todos os textos no programa de televisão em que eu trabalhava. Eu só fui ter minha primeira auxiliar meses depois...

Elisa, 66 anos, divorciada, um filho, jornalista há 49 anos

A identificação à diferença de gênero como relação social é suprimida em favor da identificação ao profissionalismo. “Trabalhando dobrado”, Elisa considerava que alcançaria o mesmo valor de um homem e, na sua concepção, como resultado, esse esforço fez com que nunca experimentasse nenhuma situação de discriminação de gênero. A jornalista contesta a diferença querendo

dizer que não reivindica um tratamento diferenciado por ser mulher. Para isso, faz referência a elementos que remetem à neutralidade do profissionalismo e busca demonstrar que em sua trajetória profissional esteve no mesmo nível dos homens, pois ocupou por diversas vezes cargos de chefia:

Por exemplo, eu já exerci chefia várias vezes. As revistas têm editoras, diretoras, mas as decisões ainda cabem aos homens. Eu vejo que os melhores cargos ainda ficam com os homens, nas chefias... mas tem muitas mulheres na chefia... e eu fui uma delas há muito tempo, então eu não posso dizer nada contra isso. Eu examino uma pessoa pelo talento, potencialidade, possibilidade, grau de informação que ela tem. Nunca penso se é homem ou mulher. Agora, tem uma coisa: aparece muito mais mulher do que homem, em todas as posições.

Elisa, 66 anos, divorciada, um filho, jornalista há 49 anos

Sua subjetividade, concebida como “interioridade” (BRAH, 2006), é formada e internalizada no processo de constituição do sujeito. Elisa foi jornalista em um período muito difícil, começou na carreira ainda na década de 1960, período em que existiam pouquíssimas mulheres na profissão. Ainda assim, contesta a diferença como relação social. Coloca a diferença no âmbito da intimidade, transformando-a em sentimentos, emoções muito íntimas. Ao relatar sua trajetória, Elisa afirma que “tinha um problema em casa”: seu salário era maior que o de seu marido:

Nessa época, o mercado de trabalho feminino ainda era pequeno. Até então, a mulher que trabalhava era vista assim: ou trabalha para os seus alfinetes, como se dizia, ou para ajudar o marido. E foi assim por muito tempo, mesmo que ela ganhasse mais. Eu mesma tinha um problema em casa. Eu ganhava mais do que meu marido e eu não podia falar nisso... não podia tocar no assunto. Eu sabia e ele sabia, mas ninguém falava nisso. A gente simplesmente não falava no assunto.

Elisa, 66 anos, divorciada, um filho, jornalista há 49 anos

Elisa fala sobre a questão da conciliação da vida familiar e profissional a partir da sua realidade. Podemos perceber em seu depoimento que a diferença

não se restringe à discriminação. Aqui vemos a diferença como experiência, sendo que a maternagem assume um papel central neste aspecto:

Eu me arrependo de uma coisa na minha carreira: eu trabalhava muito e ficava pouco com meu filho. Eu acho que hoje ainda acontece essa frustração. Olha, o homem com dedicação integral parece que não é um sacrifício em relação à família. Mas eu acho o pai tão importante quanto a mãe. Agora, eu ficava muito tempo trabalhando fora, muito, muito... Eu gostaria de ter me aproximado mais do meu filho, de ter tido essa possibilidade... De ter a Internet antes, porque aí eu poderia vir pra casa e escrever aqui e mandava por email e pronto. Mas, não, a gente tinha que ficar lá na redação. Nossa, eu chegava muito cedo no trabalho e saía muito tarde. Sempre foi assim. E quando eu trabalhava em produtoras, como freelancer, às vezes, quando eu tinha dois dias para entregar um trabalho, aí eu trabalhava de madrugada. É, eu sacrifiquei minha família, infelizmente. Não porque eu gostava, mas porque eu precisava, senão não teria como sustentar a casa, colocar comida na mesa.

Elisa, 66 anos, divorciada, um filho, jornalista há 49 anos

Da mesma forma, Isadora afirma que é respeitada por sua equipe, já que “entende” e “domina o assunto”. A jornalista usa o discurso do profissionalismo, com referência à competência e domínio do conhecimento, para justificar porque não sofreu discriminação de gênero em sua carreira. Ela acredita que por ser competente e ter o domínio sobre seu trabalho, nunca sofreu resistência em seu trabalho:

Nunca senti resistência por ser chefe da equipe. Nem quando eu trabalhei em TV, porque quando a gente entende... Eu acho que o problema de resistência é quando a equipe nota que você não sabe sobre determinado... mas quando a profissional tem domínio, a equipe não tem resistência.... Se não domina o assunto, se tem dúvida, aí a equipe não respeita. Aí perde o respeito mesmo... E a mulher prova competência trabalhando! E é por tempo de trabalho. Não tem outro jeito. Ninguém sai totalmente formado... A gente não sai com toda a credibilidade da faculdade. O que prova isso então é o tempo de serviço. É o tempo que você tem de trabalho.

Isadora, 34 anos, solteira, sem filhos, coordenadora de comunicação e professora universitária

Contrapondo a percepção da diferença como uma prática excludente e discriminatória, Isadora busca mostrar que muita coisa mudou no jornalismo nos últimos tempos, embora o cargo mais poderoso em sua empresa seja ocupado por um homem:

Acho que hoje já melhorou muito. Hoje as mulheres já alcançam isso. É... eu sou coordenadora de comunicação. Eu só tenho um gestor acima de mim, que no caso ele é um padre porque todos os gestores lá são padres, mas eu sou a principal abaixo dele... As mulheres já ocupam um lugar de destaque... Em grandes veículos e em grandes empresas também, que aí é no corporativo, a comunicação corporativa, empresarial... aí principalmente você vai achar muita mulher trabalhando.

Isadora, 34 anos, solteira, sem filhos, coordenadora de comunicação e professora universitária.

É uma estratégia usada pelas mulheres para contestarem a naturalização das diferenças de gênero, percebendo a diferença com igualdade. Como afirma Bonelli (2010, p. 279) sobre as juízas: as mulheres “que contestam a diferença e negociam os sentidos da igualdade na carreira embaralham as distinções consolidadas e desnorteiam classificações fixas, pensando as fronteiras de uma nova forma”.

Entre os homens, também podemos perceber em alguns discursos como a diferença de gênero é negada em defesa do discurso do profissionalismo. Ao dar início ao bloco das questões de gênero, os homens passavam a dar respostas muito curtas, mostrando-se desconfortáveis e limitando-se a dizer “não sei”, “não há diferença nenhuma”, “isso não existe” ou “não sei, porque eu sou homem, né?”. A diferença era reconhecida como “essência”, “natureza” de homens e mulheres, mas quando perguntados exatamente sobre as “diferenças de gênero” na profissão, afirmavam que isso não havia no jornalismo. O enfoque de sua narrativa era na “postura profissional neutra” (BONELLI, 2010), reforçando os valores que remetem à neutralidade do profissionalismo, a partir do argumento

de que as competências e habilidades dos profissionais não obedecem a uma divisão por gênero:

Dê gênero? Masculino e feminino? Não, é tudo igual... não tem diferença. Sem falar do que tem de homossexual pra todos os lados, nas redações... Então, essa questão de gênero, eu acho que essas competências e habilidades são independentes de gênero. O jornalista tem que conhecer o mundo, conhecer culturas... Das habilidades, se fala muito em agilidade, o jornalista tem que ser ágil... A agilidade de raciocínio, é esta a agilidade que o jornalista precisa ter, ele precisa sacar logo... que aí é treino, né, é prática... tomar decisões rápidas... Desde pequeno, desde que eu resolvi fazer jornalismo, que eu vejo mulheres fazendo reportagem na televisão, nos jornais, mulher escrevendo... e em cargos de chefia também. Eu não vejo muito essa diferença. Talvez lá atrás tivesse um pouco, mas era uma coisa mais ou menos assim: ah, porque o homem é aventureiro, o homem que vai viajar... Porque o repórter precisa viajar... Outros tempos, né? Aqui no Brasil a gente ainda vê que o cara que vai pra guerra é homem, mas também tem mulher que faz cobertura da guerra... A Ana Paula Padrão foi pro Paquistão, quando mataram o Bin Laden... Então tem, né?

Érick, 39 anos, casado, dois filhos, assessor de imprensa freelancer e professor universitário

O que define um jornalista competente, que seria um espírito investigativo, um faro para a notícia, não se diferencia entre homens e mulheres, considerando que as “competências e habilidades são independentes de gênero”. As diferenças entre homens e mulheres são vistas como naturais. Em sua percepção, como “prova” de que não há diferenças de gênero nem preconceito no jornalismo, ele afirma: “sem falar do que tem de homossexual pra todos os lados, nas redações”.

Emerson também recorre aos valores do profissionalismo para dizer que mesmo existindo, as diferenças de gênero não importam na profissão, pois são superadas pela competência profissional:

Às vezes eu tento adivinhar se o texto que eu estou lendo é de um homem ou de uma mulher, mas é só nessa questão, acho que há diferença nesse aspecto, a linguagem feminina é diferente... mas acho que o que prevalece é a competência profissional, o resultado final do

trabalho, o texto do jornalista, e aí, a maneira de exercer a profissão acaba sendo a mesma coisa.

Emerson, 59 anos, divorciado, duas filhas, ocupa um cargo de liderança no SJSP

Na opinião de Igor, o conhecimento do profissional e seu relacionamento interpessoal são mais relevantes para a carreira do jornalista:

É recente que a mulher vem conquistando espaço... Mas comparando com outras profissões, talvez o jornalismo tenha até mais mulheres na chefia do que em outras profissões. Porque é muito liberal mesmo no jornalismo, não tem muito preconceito... é uma questão cultural, de escrever, de ter ideias, não tem isso de preconceito. A pessoa se destaca, não pelo sexo, mas pelo conhecimento, pela questão do relacionamento pessoal. É claro que em algumas áreas sim, a área do esporte tem mais preconceito... porque a primeira impressão é: o quê que ela vai saber de futebol? Isso ainda tem esses preconceitos, mas no dia-a-dia, numa área não específica, aí não.

Igor, 34 anos, solteiro, sem filhos, editor PJ de uma revista online e professor universitário

Eduardo também nega as diferenças entre homens e mulheres no jornalismo. Diz que presenciou exclusivamente uma diferença de tratamento aos deficientes físicos nos jornais em que atuou:

Nos lugares onde trabalhei nunca vi distinção por nada, a não ser com deficientes físicos que têm dificuldades de locomoção e, portanto, ficavam na redação... Acho que não tem diferença nenhuma entre homens e mulheres... Já tive várias chefes mulheres, incluindo direção de jornalismo.

Eduardo, 45 anos, casado, sem filhos, repórter de televisão

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