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Nas discussões teóricas sobre estruturas hegemônicas, Robert Cox salienta a importância que deve ser dada pela teoria crítica à busca de uma contraestrutura, mesmo que esteja ela ainda “latente” (Cox, 1981, p. 144). Nesse sentido, a existência de discursos contra-hegemônicos, seja parcialmente ou em sua totalidade, tende a revelar por si só as fraturas da estrutura hegemônica, ainda que não seja capaz de eliminá-la ou convertê-la em uma contra-hegemonia. Frente à apresentação do regime internacional de controle de drogas ilícitas como uma estrutura histórica construída a partir de relações hegemônicas, cabe a quem a estuda a partir de uma perspectiva crítica, portanto, procurar por vozes dissonantes em seu interior que possam indicar possibilidades de mudança, seja da própria estrutura, seja em alguns de seus preceitos fundamentais.

Ambos os discursos a favor do desenvolvimento alternativo e da responsabilidade compartida apresentam características desviantes do modo como o regime internacional de controle de drogas ilícitas havia sido conduzido até então. Nesse sentido, o discurso anteriormente predominante era o de coibição da oferta de psicoativos pela via militarizada, cujo carro-chefe eram as políticas de erradicação forçada de cultivos ilícitos. A partir da década de 1990, o surgimento das duas novas abordagens no contexto das políticas de combate ao tráfico internacional de substâncias psicoativas ilícitas demonstra que determinado consenso acerca de como as políticas de manutenção do regime – e, consequentemente, da estrutura hegemônica – se estabeleciam estava em declínio. É

imperioso questionar, portanto, se o aparecimento dessas incoerências é suficiente para que ambos os discursos sejam caracterizados como contra-hegemônicos.

Tanto Stephen Krasner, em sua conceituação de regimes internacionais, quanto Robert Cox, em sua discussão acerca de hegemonia, percebem que não necessariamente discursos e práticas que sugerem a ruptura em um modo pré-estabelecido de formulação de políticas pretendem transformar inteiramente a estrutura. Nesse sentido, Krasner reconhece a diferença entre movimentos que se propõem a mudar um regime daqueles que simplesmente objetivam transformações dentro dele. Fraturas dentro de um regime, de acordo com Krasner, acontecem quando regras e procedimentos são alterados, mas a essência da estrutura permanece a mesma; se, no entanto, seus princípios e normas sofrerem mutação, aí, sim, a estrutura evolui para a formação de um novo, ou nenhum, regime (Krasner, 1983).

De modo análogo, Cox também propõe distinguir as teorias que intentam mudar os aspectos políticos de uma estrutura hegemônica daquelas que se propõem, de modo mais amplo, a mudar o status quo hegemônico por inteiro. Dentro do que argumenta Cox, as últimas podem ser consideradas teorias críticas, enquanto as primeiras se resumem a teorias de resolução de problemas. Longe de desvalorizar sua importância no enfrentamento às dificuldades reais enfrentadas cotidianamente, Cox não deixa de enfatizar que as teorias de resolução de problemas tendem a servir a interesses específicos dos atores hegemônicos, de modo a facilitar a relação entre esses e os demais; desse modo, evitam o aparecimento rupturas significativas nas relações de dominação e hegemonia (Cox, 1981).

Nesse sentido, uma vez conciliada a teoria de regimes internacionais ao conceito gramsciano e teórico crítico de hegemonia13, entende-se que as teorias de resolução de problemas, ao preservar o status quo hegemônico, resumem-se a pensar mudanças dentro de um regime, em suas regras e procedimentos. Por outro lado, as teorias críticas que se pretendem a eliminar, reverter ou transformar definitivamente as relações de hegemonia entre os atores da estrutura são aquelas que se propõem a mudar o regime como um todo através de seus princípios e normas. Os últimos elementos podem ser correspondidos, respectivamente, às ideias e às instituições (físicas ou normativas); somando-se às capacidades materiais – fator contemplado por Cox, mas não levado em consideração de forma significativa por Krasner –,

13 É importante deixar claro que, ao fazer essa conciliação, estamos conscientes das diferenças entre as relações estabelecidas por Krasner e Cox, cada uma a sua maneira, com a estrutura que descrevem. Krasner, como realista, não se propõe a interagir com a estrutura de forma a provocar sua mudança, como o faz o teórico crítico Cox. Nesse sentido, o próprio conhecimento produzido sobre a estrutura pode ser utilizado, de acordo com Cox, para transformá-la, dinâmica que não é contemplada por Krasner. Fazendo esta diferenciação, a argumentação deste trabalho se identifica em maior escala com a abordagem epistemológica da Teoria Crítica.

esses três pilares formam a sustentação de um regime internacional de relações hegemônicas (ver Quadro 1).

Dentro do regime internacional de controle de drogas ilícitas, os princípios – ideias – e as normas – instituições – que o sustentam podem ser definidos da seguinte forma: (1) o uso de determinadas substâncias psicoativas pelos indivíduos não é compatível com uma vida física e moralmente saudável; (2) a melhor forma de neutralizar os problemas advindos do uso de tais substâncias é distanciá-las de seus consumidores através da proibição. Enquanto tais premissas básicas existirem, o regime internacional de controle de drogas ilícitas se sustentará. Nesse sentido, as abordagens de desenvolvimento alternativo e de responsabilidade compartida não oferecem risco de mudança do regime como uma estrutura hegemônica, pois não pretendem questionar, a princípio, nenhuma das duas afirmativas.

Quadro 1: Transformações em um regime de relações hegemônicas

De acordo com o que foi apresentado previamente, ambas as abordagens podem ser consideradas, então, discursos de resolução de problemas. Dentro do regime internacional, as duas intencionam solucionar a ineficácia das políticas anteriores no combate ao tráfico de drogas internacional, buscando alternativas que abordem o problema, ao mesmo tempo, de

maneira “integral” e “equilibrada”. Os discursos, portanto, procuram minimizar os efeitos negativos que dificultam a manutenção do regime, sem que, para isso, seja necessário transformá-lo integralmente.

Nesse contexto, o discurso a favor do desenvolvimento alternativo reflete de maneira mais intensa as relações de hegemonia dentro do regime do que o de responsabilidade compartida. Em primeiro lugar, porque conserva não apenas os princípios e normas da estrutura que problematizam e ilegalizam o uso de drogas, mas a própria lógica de combate ao consumo através do combate à oferta. Nesse sentido, a mudança nas táticas de combate ao narcotráfico acontece, mas a estratégia permanece a mesma.

Em segundo lugar, porque intenciona minimizar os discursos denunciantes das políticas militarizadas de combate ao narcotráfico antes que se tornem, de fato, vozes contra-hegemônicas dentro do regime. Como exposto por Cox (1981), em uma estrutura hegemônica, os movimentos de transformação das relações de poder tendem a surgir dos atores periféricos, e é por esse motivo que fenômenos como o transformismo existem: para neutralizar as possibilidades de mudança vindas dos atores não-hegemônicos. Desse modo, a estrutura hegemônica acaba por absorver os discursos de contra-hegemonia, acatando-os parcialmente, assim como a abordagem de desenvolvimento alternativo internaliza as reivindicações dos Estados produtores de drogas, ao mesmo tempo em que procura alternativas eficazes de combate ao cultivo ilícito.

Por outro lado, o discurso a favor da responsabilidade compartida se mostra da mesma forma como uma política de resolução de problemas, mas transparece de maneira clara as fraturas existentes no regime. Embora não questione a legitimidade do regime em si em seu princípio e norma fundamentais, tal abordagem coloca em evidência a intenção de mudança nas relações desiguais de poder dentro da estrutura hegemônica, a partir da visão específica dos atores periféricos. Nesse sentido, as relações entre consumidores e produtores, alvos e fontes, são colocadas em xeque como uma forma de relação de dominação ilegítima, e são repensadas de forma a torná-las mais equitativas, ainda que a distribuição de responsabilidades entre oferta e demanda mantenha, em última instância, a estrutura hegemônica como um todo.

A relação de hegemonia dentro do regime internacional de controle de drogas ilícitas, nesse sentido, não se dá primariamente entre Estados consumidores e Estados produtores, Estados desenvolvidos e Estados em desenvolvimento. Antes disso, a hegemonia foi estabelecida historicamente a partir de forças sociais que não têm relações profundas com tais substâncias sobre aquelas que as têm. É possível, portanto, que as relações desequilibradas

entre os primeiros atores sejam revistas – como no caso da responsabilidade compartida – sem que o regime internacional de controle de drogas ilícitas como uma ordem hegemônica em si seja colocado em ameaça; basta que tais discursos contra-hegemônicos sejam absorvidos pela estrutura. Desse modo, ainda que o discurso de responsabilidade compartida fosse acatado por inteiro, transformando os Estados consumidores de drogas nos reais depositários da responsabilidade pelo controle internacional de drogas ilícitas, as relações de hegemonia que estabeleceram o regime em primeira instância seriam mantidas.

Capítulo Três: Espaços de hegemonia – estudos de caso sobre

Colômbia, Bolívia e Afeganistão