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Uma discussão semelhante aconteceu no século XVII, relativa às tragédias, quando da première da Le Cid, de

No documento Il Trovatore e o libreto belcantista (páginas 50-52)

Pierre Corneille.

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Apesar de simples, essa tentativa de reforma vinha de um meio aristocrático e embasado no teatro francês, bastante elitista (Smith, p. 67).

69 “Sendo a tragédia a imitação de homens melhores que nós, convém proceder como os bons pintores de retratos, os

quais, querendo reproduzir o aspecto próprio dos modelos, embora mantendo semelhança, os pintam mais belos. Assim também, quando o poeta deve imitar homens irados ou descuidados ou com outros defeitos análogos de caráter, deve pintá-los como são, mas com vantagem, exatamente como Agatão e Homero pintaram Aquiles” (Poética, XV, 14).

uma “caracterização grega” (Kimbell, 1991, p. 185) a seus libretos. Foi ele o criador do dramma

per musica, como a ópera era então chamada, e sabia que não se tratava de um drama qualquer:

os afetos deveriam ser trabalhados de forma mais variada que na tragédia teatral, para serem posteriormente caracterizados através da música – sobretudo nas árias, uma vez que os recitativi continuavam, em sua maioria, a ser secchi, ou seja, acompanhados apenas por um contínuo.

Embora tivesse consciência das regras do gênero, Zeno era guiado pela ação: escrevia longos recitativi e deixava as árias (que continuavam sendo o núcleo da ópera) para o fim das cenas – reforçando as já conhecidas arie di sortita (“árias de saída”): a personagem cantava e saía, dando o “gancho” para que a cena seguinte pudesse começar. A criação de longos recitativi e de líricas arie di sortita acabaria por agradar tanto aos intelectuais – uma vez que nos recitativi havia diversas reflexões literárias, filosóficas e morais (Kimbell, 1991, p. 187) – quanto ao público em geral, que se deliciava com as interpretações das árias. Outra conseqüência desse esquema recitativo-ária é que a figura do compositor não se fazia importante, uma vez que os libretos eram estruturados principalmente para serem obras inteiras, sem necessidade do canto.

Com tantas saídas de palco, era preciso criar artifícios além dos típicos da tragédia teatral para que tais saídas se mostrassem coerentes com a ação. Assim, as tramas se tornaram mais complexas, ainda com a presença de disfarces e mal-entendidos, involuntariamente aproximando Zeno da tradição cômica:

O planejamento de enredos para os drammi per musica realmente aproximou os autores mais das tradições da comédia que da tragédia, pois os ingredientes básicos eram elementos como “intriga, disfarce, identidade trocada, peripécias...” 70

Apesar da complexidade dos enredos, o número de personagens dos libretos de Zeno era em geral seis (no máximo oito), todas de alguma forma interligadas pelo amor. Este, porém, era um tema secundário, já que o principal era outro: o herói tentando recuperar seu trono roubado, ou algo semelhante. Todas as personagens eram movidas por sentimentos nobres, e o enredo se baseava no jogo de emoções – sendo o maravilhoso, elemento recorrente nas óperas do

70 “Indeed the devising of plots for drammi per musica brought authors closer to the traditions of comedy than of

tragedy, for the basic ingredients came to be such elements as ‘intrigue, disguise, mistaken identity, peripateia...’” (Kimbell, 1991, p. 188). O trecho entre aspas é uma citação do artigo “The rehabilitation of Metastasio”, de Raymond Monelle, publicado em 1976 no periódico Music and Letters, e se refere a Metastasio – mas, segundo Kimbell, pode ser estendido também a Zeno.

Seicento, totalmente eliminado (Smith, 1970, p. 69; Machado Coelho, 2000, p. 174). Conjuntos e

coros quase não existiam. Os duetos passaram a ser incorporados à opera seria no decorrer do

Settecento por influência da opera buffa. Os coros, por sua vez, se resumiam a fins de atos ou das

óperas (quando todos cantavam) ou a alguma parte festiva da ação, como um banquete.

O conhecido lieto fine não foi adotado nos primórdios da opera seria (id., ibid., p. 172), uma vez que os autores queriam seguir as tragédias clássicas exatamente como eram. Machado Coelho afirma que a adoção desse tipo de final não foi propriamente uma exigência do público, mas uma forma de agradar ao rei Carlos VI, em cuja corte não era de bom tom apresentar finais tão trágicos. Eles também eram criticados pelo mesmo motivo apontado por Horácio em sua Arte poética 71: as mortes não deveriam ser apresentadas no palco, mas acontecer longe dos olhos do público e ser narradas por alguma personagem – como nas tragédias greco- romanas.

O número de atos não era fixo, variando entre três e cinco – este último é o número de atos da tragédia francesa, que era uma das fontes preferidas por Zeno (e pelos libretistas da transição entre o Seicento e o Settecento). Em seus argomenti, o autor fazia questão de mencionar de onde havia retirado os enredos e por que razão os havia escolhido. É o caso de sua Merope:

Querendo Aristóteles, no capítulo XV de sua Poética, dar um exemplo do mais perfeito reconhecimento nas ações trágicas, o qual ocorre quando as pessoas não sabem da atrocidade dos atos que estão para cometer senão depois do perigo em que se encontram ao cometê-los, refere-se ao exemplo de Eurípides, em cuja tragédia Cresfonte faz com que Merope reconheça o filho quando está para matá-lo. Assim como essa tragédia de Eurípides não foi conservada, da mesma forma é difícil tanto adivinhar o artifício com que conduziu a fábula quanto saber o argumento sobre o qual discorre. Quanto ao artifício, há um pequeno indício em Plutarco, o qual, em seu tratado Do uso dos

alimentos, refere-se a Merope, pronta a envenenar o filho que não

conhecia, e que passou a conhecer com a oportuna chegada de um velho que lhe faz saber da verdade. Depois, quanto ao argumento, acredito haver encontrado as possíveis circunstâncias não menos em Pausânias (livro IV) que em Apolodoro (livro II de sua Biblioteca). E foi restringindo-me a isso que julguei mais oportuno o modo como desenvolvi o enredo. 72

No documento Il Trovatore e o libreto belcantista (páginas 50-52)