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CAPÍTULO II : TOXICIDADE AGUDA DO MERCÚRIO INORGÂNICO (HgCl 2 ) EM

4. DISCUSSÃO

Mudanças na composição química de ambientes aquáticos naturais podem afetar organismos não-alvos, particularmente os peixes, os quais são muito utilizados como bioindicadores de poluição para se avaliar a qualidade de sistemas aquáticos (ADAMS & GREELEY, 2000). Em áreas poluídas, a exposição de peixes a xenobióticos pode dar origem a distúrbios bioquímicos (GÜL et al., 2004a).

O elevado desenvolvimento industrial ocorrido nas últimas décadas tem sido um dos principais responsáveis pela contaminação de nossas águas e solos, seja pela negligência no tratamento dos efluentes antes de despejá-los nos rios ou por acidentes e descuidos cada vez mais freqüentes, que propiciam o lançamento de muitos poluentes nos ambientes aquáticos, acarretando um potencial tóxico à biota aquática e à saúde humana (BRAGA et al., 2002). Os poluentes mais tóxicos lançados são os metais pesados, altamente tóxicos e persistentes, dentre os quais se destaca o mercúrio como um dos principais contribuintes para a poluição dos ecossistemas aquáticos. O mercúrio, do ponto de vista ecotoxicológico, é, de longe, o metal pesado mais importante e preocupante, apresentando tanto o fenômeno de bioacumulação como o de biomagnificação.

Na indústria, o sal de mercúrio mais importante é o cloreto de mercúrio (HgCl2),

também chamado sublimado corrosivo. O cloreto de mercúrio, composto altamente reativo e tóxico, facilmente desnatura proteínas, por isso foi intensamente usado no século XIX como desinfetante. O sublimado corrosivo é atualmente empregado na homeopatia, em concentração apropriada, para o tratamento da disenteria. Além disso, o cloreto de mercúrio é vastamente empregado como catalisador na indústria química e pode, assim, ser parcialmente eliminado nos efluentes líquidos industriais. Por exemplo, o HgCl2 catalisa a síntese de acetaldeído e a

fabricação de uma tonelada do produto libera de 30 a 100 g de mercúrio. Adicionalmente, o cloreto de mercúrio é utilizado na curtição de peles e como inseticida e/ou fungicida (AZEVEDO, 2003).

Dessa forma, o mercúrio inorgânico pode facilmente atingir os ecossistemas aquáticos. A forma oxidada (Hg2+) é predominante no sistema aquático, podendo ou não estar

associada a ligantes orgânicos ou inorgânicos. Além disso, é a forma mais comum de mercúrio liberada no ambiente por indústrias, apresentando um forte efeito agudo sobre os tecidos de peixes (OLIVEIRA RIBEIRO et al., 1996), e os valores de CL50 obtidos a partir de ensaios de

toxicidade aguda com peixes variam entre 33 a 400 μg.L-1 de HgCl

2 (WHO, 1991).

A toxicidade de um xenobiótico para organismos aquáticos pode ser classificada de acordo com o valor da CL50 96 horas (VIRGINIA COOPERATIVE EXTENSION, 1996). Se a CL50

for < 0,01 mg.L-1, o xenobiótico é considerado supertóxico; se 0,01 < CL

50 < 0,10, extremamente

CL50 < 100, levemente tóxico e, se > 100 minimamente tóxico. O valor da CL50 96 horas para o

cloreto de mercúrio em matrinxã, obtido no presente estudo (0,71 ppm), deixa claro que o mercúrio inorgânico é altamente tóxico para esta espécie, que mostrou elevada sensibilidade a este metal. Alguns valores de CL50 96 horas do cloreto de mercúrio para várias espécies de peixes

estão registrados na Tabela 5.

Observando-se a Tabela 5 fica evidente a necessidade de estudos de toxicidade sobre peixes tropicais, particularmente os peixes brasileiros, pois os pesticidas e metais pesados são testados em organismos-teste que são usualmente peixes de água doce originários de regiões temperadas. O valor da CL50 96 horas do cloreto de mercúrio obtido para o matrinxã no

presente estudo ficou próximo aos valores de CL50 obtidos para Cyprinus carpio, Fundulus

heteroclitus, Etroplus maculates, Anabus testudineus e Tilapia mossambica. Entretanto, valores

diferentes podem ser obtidos para outras espécies. Estes valores podem variar tanto devido às características físico-químicas da água (pH, dureza, alcalinidade, temperatura, etc) quanto às características biológicas de cada espécie (sensibilidade) bem como a duração e o tipo de ensaio (sistema estático, semi-estático ou de fluxo contínuo).

De acordo com a EPA (1985), os valores de CL50 para peixes expostos ao mercúrio

inorgânico (geralmente como HgCl2) variam de 150 a 420 µg.L-1 em sistema de fluxo continuo. Já

para RAMAMOORTHY & BADDALOO (1995), os valores de CL50 do mercúrio inorgânico para

peixes de água doce variam de 60 a 800 µg.L-1. Assim, o valor da CL

50 96 horas do HgCl2 para o

matrinxã, obtido no presente estudo, está em concordância com os descritos na literatura.

O cloreto de mercúrio exibe um comportamento diferente de outros sais de metais pesados em água. O HgCl2 solúvel em água (69 g.L-1 a 20 oC), porém em solução o HgCl2 não se

dissocia completamente em Hg2+ e Cl-. Ao contrário, forma diferentes complexos com cloreto:

HgCL, HgCl2, HgCl3- e HgCl42- e com os íons OH: HgClOH, Hg(OH)2, Hg(OH)+ (AZEVEDO, 2003).

A forma predominante dependerá do pH e da concentração de cloreto na água. De acordo com as características físico-químicas da água descritas no presente estudo para os ensaios de toxicidade, ou seja, pH ~7,3 e concentração de cloreto ~ 40 mg.L-1, as formas de mercúrio

predominantes provavelmente são Hg(OH)2(aq), HgClOH(aq) e HgCl2(aq) conforme descrito por

POWELL et al. (2004, 2005). Segundo BLACK et al. (2007), cálculos de especiação química do cloreto de mercúrio em águas doces de pH 7,7 e com concentrações de cloreto inferiores a 5 mM assumem que a quantidade de Hg2+ é insignificante e que os complexos inorgânicos dominantes

são Hg(OH)2(aq), HgClOH(aq) e Hg(Cl)2(aq), todos operacionalmente definidos como hidrofóbicos por

não apresentarem cargas e, portanto, capazes de atravessar membranas biológicas mais facilmente que o Hg2+.

Tabela 5: Valores de CL50 96 horas do cloreto de mercúrio em mg.L-1 para diferentes espécies de

peixes juvenis descritos na literatura.

Espécie CL50 Teste pH D T Autores

Anabas testudineus

(climbing perch) 0,64 estático 7,6 --- 28

SINHA & KUMAR, 1992

Cyprinus carpio

(carpa) 0,71 renovável 7,1 --- 23 MAUGHAN, 1992 ALAM &

Cyprinus carpio

(carpa) 0,77 renovável 7,5 --- 23 MAUGHAN, 1995 ALAM &

Etroplus maculates

(pearlspot) 0,67 estático 7,85 --- 21 GAIKWAD, 1989

Fundulus heteroclitus (mummichog) 0,80 estático 7,8 --- 20 EISLER & HENNEKY, 1977 Ictalurus melas

(black bullhead) 0,57 estático 7,6 298 13 ELIA et al., 2003

Leuciscus cephalus

(european chub) 0,55 estático 7,2 20 22 GÜL et al., 2004b

Oncorhynchus mykiss (truta arco-íris) 0,40 estático 7,5-7,8 90 5 MACLEOD & PESSAH, 1973 Oryzias latipes (japanese medaka) 0,90 fluxo

contínuo --- --- 18 HORI et al., 1996

Tilapia mossambica (tilapia) 0,74 estático --- --- 28 - 32 RAMAMURTHI et al., 1982 Brycon amazonicus (matrinxã)

0,71 estático 7,3-7,6 40-50 24 - 25 PRESENTE ESTUDO

--- = valor não informado T = temperatura em oC

D = dureza total em mg.L-1 de CaCO 3

Além das características discutidas até aqui discutidas, o mercúrio e outros metais pesados em ambientes aquáticos ligam-se predominantemente ao material particulado em suspensão (MASCARENHAS et al, 2004). Dessa forma, a quantidade de material particulado em suspensão na água também influenciará a quantidade de mercúrio disponível. Na água, os metais podem não interagir diretamente com a biota, mas ligar-se ao material particulado que irá precipitar e representar o compartimento sedimento, prejudicando a fauna local, os animais onívoros e iliófagos, além de novamente se disponibilizarem na coluna de água, sob condições ambientais específicas, sendo este compartimento ora um depósito ora uma fonte de contaminação aos corpos de água (FORSTNER, 1990). Dessa forma, a complexação do cloreto de mercúrio com ligantes inorgânicos e orgânicos pode contribuir também para os diferentes valores de CL50 96 horas do cloreto de mercúrio registrados na literatura para várias espécies de

teleósteos.

Durante a realização dos nossos experimentos, não foram observadas diferenças nas características físico-químicas da água contendo cloreto de mercúrio em relação à água do controle. Entretanto, houve uma tendência de aumento da amônia e de nitrito na água após 96 horas de exposição tanto no controle como na água com HgCl2. Esses aumentos nas

concentrações de amônia e nitrito já eram esperados para um sistema estático, onde os peixes, permanecendo confinados na mesma água, excretam continuadamente amônia como produto final do metabolismo protéico. A amônia, por sua vez, pode ser transformada em nitrito na presença de oxigênio. A não dissociação do HgCl2 em Hg2+ e Cl- foi corroborada pela análise dos

níveis de cloreto na água dos grupos experimentais, não tendo sido observadas alterações na concentração deste íon mesmo após a adição do cloreto de mercúrio.

Os efeitos da intoxicação pelo HgCl2 observados nos matrinxãs como intensa

agitação e perda de equilíbrio e postura, podem ser o reflexo de danos no sistema nervoso central ocasionados pelo metal. Em peixes, o mercúrio é capaz de induzir disfunções bioquímicas no SNC como a inibição da atividade da Na+/K+ ATPase, monoamino oxidase (MAO) e

acetilcolinesterase (BERNTSSEN et al., 2003; GILL et al., 1990; RAM & SATHYANESAN, 1985). Além disso, os metais dissolvidos na água são captados pelas brânquias afetando a morfologia do epitélio branquial, promovendo desequilíbrios osmóticos e iônicos, aumentando a produção de muco e levando ao comprometimento da função respiratória (EVANS, 1987; SKIDMORE, 1970). No presente estudo, as hemorragias brânquias e a permanância dos peixes mais na superfície da água corroboram tais assertivas.

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