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Discussões filosóficas e pragmáticas

Em D. Quixote das crianças (1973a), Dona Benta começa a ler o clássico espanhol, mas, logo após o primeiro parágrafo, é obrigada a contar com suas próprias palavras a saga do herói de Cervantes:

E Dona Benta começou a ler:

– “Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos da lança em cabido, adaga antiga e galgo corredor”.

– Ché! – exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adaga antiga, galgo corredor... Não entendo essas viscondadas, não...

– Pois eu entendo – disse Pedrinho. – Lança em cabido quer dizer lança pendurada em cabido; galgo corredor é cachorro magro que corre e adaga antiga é... é...

– Engasgou! – disse Emília. – Eu confesso que não entendo nada. Lança em cabido! Pois se lança é um pedaço de pau com um chuço na ponta, pode ser “lança atrás da porta”, “lança no canto” – mas “no cabido”, uma ova! Cabido é de pendurar coisas, e pedaço de pau a gente encosta, não pendura. Sabem que mais, meus queridos amigos? Vou brincar de esconder com o Quindim...

– Meus filhos – disse Dona Benta, – esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas.

– Isso! – berrou Emília. – Com palavras suas e de Tia Nastácia e minhas também – e de Narizinho – e de Pedrinho – e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevesado lá entre eles. Nós, que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido. Comece. E Dona Benta começou, da moda dela:

– Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo, aí duns cinqüenta anos, dos que têm lança atrás da porta, adaga antiga, isto é, escudo de couro, e cachorro magro no quintal – cachorro de caça. (DQC, 1973a, p. 10-11)

O fato acima transcrito revela a atitude coerente de Dona Benta, reconhecendo a necessidade de tradução da obra de Cervantes para a linguagem em nível menos erudito; culto, mas o mais próximo possível do coloquial, que alcançasse a compreensão dos seus interlocutores – as crianças, Emília, Tia Nastácia, todos do Sítio. Isso porque, como se nota, foi pressionada por Emília, a contestadora renitente, que protesta contra a “perfeição da língua”, porque confessa não entender nada.

A circunstância de Pedrinho, ao procurar valorizar a leitura da avó, mas não conseguindo explicar o que seja “adaga”, contribui também para que a avó decida contar, em vez de ler a história, em “estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido”. E assim começa, traduzindo as palavras desconhecidas, marcadas no tempo e no espaço por fatores de ordem sócio-histórico-culturais de então.

Essa passagem é exemplo rico de metalinguagem em que, na intertextualidade (entre Cervantes e Monteiro Lobato), ocorrem fatos inerentes à dinâmica da língua no intercâmbio das relações de comunicação. Nela fluem naturalmente, embora em clima de tensão ideológica deflagrada por Emília, elementos lingüísticos de variedades distintas e, no contexto transcrito, vistos como antagônicos. Aparentemente, numa leitura superficial e apressada, pode-se depreender uma discussão em torno da valoração do português “melhor”, baseado na linguagem dos clássicos, “rico de todas as perfeições e sutilezas de forma”, e do português “em estilo de clara de ovo”, acessível aos interlocutores de Dona Benta. Contudo, o caso é na verdade de adaptação à situação de comunicação. Da tentativa de leitura – em linguagem escrita e erudita da história – Dona Benta passa a contá-la – em linguagem oral e no registro próximo ao coloquial, o que, de certa forma, revela em Monteiro Lobato a percepção de uma

realidade cuja ignorância de outros escritores dificultou em muito a caracterização de ambas as variedades da mesma língua. Afinal, foram os traços da linguagem coloquial, popular, incorporados à linguagem literária moderna, que permitiram as relevantes mudanças no rumo da história da língua portuguesa do Brasil.

Por outro lado, ainda que Dona Benta traduza a saga de D. Quixote, narrando-a oralmente e em nível próximo do coloquial, lamenta estar privando as crianças de ouvirem a história do herói da Mancha na linguagem própria de seu criador e se justifica:

– É que está escrita em português que já não é bem o nosso de agora. Hoje usamos a linguagem a mais simplificada possível, como a de Machado de Assis, que é o nosso grande mestre. Os escritores portugueses, que chamamos clássicos, usavam uma forma menos singela, mais cheia de termos próprios, mais rica, mais interpolada... (ibid., p. 86)

A observação de Dona Benta ilustra eficientemente fatos fundamentais envolvidos na articulação da linguagem especialmente ligados ao tempo e ao espaço. Da questão da variedade e da adequação do estilo para a situação de comunicação emerge o aspecto sincrônico e o diacrônico (cf. SAUSSURE, 1972), realidades que mostram a língua em momentos distintos – como um continuum dotado de múltiplas particularidades e como um recorte –, um dado momento no tempo e no espaço de sua dinâmica. O papel do falante enquanto aprendiz da língua, o desenvolvimento da competência lingüística (cf. CHOMSKY) e da capacidade para apreciar a arte literária são outros valores implícitos e explícitos no discurso da vovó tradutora de Cervantes.

Percebe-se que Dona Benta, ao contar em vez de ler histórias para as crianças, em D.

Quixote das crianças (1973a), tem uma atitude diferente das professoras, na escola (cf. ZILBERMAN & SILVA, 1988, p. 32). Ela respeita o estágio da competência gradativa da

criança leitora em desenvolvimento, ao afirmar que, quando elas crescerem, poderão ler e apreciar a linguagem de Cervantes e suas “belezas”44.

Elegendo Machado de Assis como modelo de linguagem de seu tempo, a matriarca do Sítio do Picapau Amarelo proclama a renovação na língua, como fizeram os escritores do Modernismo, legal e oficialmente, efetivada

pela ruptura com os padrões da estética parnasiana e a inovação calcada na incorporação da humanidade, deixando de obedecer ao ideal, ao modelo maniqueísta, para considerar o real, o existencial, passando a incorporar a oralidade e os níveis de fala. (PEREIRA, 1999, p. 19)

Ainda em D. Quixote das crianças (1973a), retomando o discurso metalingüístico, um pouco depois da discussão entre a bonequinha e Dona Benta sobre o “modo desbocado de Emília falar”, agora é esta quem interfere e critica a avó, que, vez ou outra, influenciada pela linguagem de Cervantes, usa a forma mais culta, o vocabulário que Emília contestara no início da leitura do livro.

Num fato expressivo, empregando o mesmo recurso usado por Dona Benta, uma estrutura típica da coloquialidade, a boneca intervém, novamente em favor da variedade lingüística popular:

– Lá vem, lá vem a senhora com palavras difíceis! Interpolada!... (DQC, 1973a, p. 86)

parodiando a avó, que tinha dito:

44 Sobre Dona Benta contadeira de histórias, será relevante refletir sobre o ponto de vista pedagógico e o

aspecto literário em seus relatos; como adaptadora; seu relacionamento com as crianças, mediando os fatos narrados e a curiosidade; o questionamento e a crítica infantil. Para tanto, pode-se ler com proveito o texto de Martha (“Dona Benta, contadeira de histórias”), no Proleitura. Em Histórias de Tia Nastácia (1994d), Tia Nastácia também se apresenta como contadeira de histórias. Cf. p. 128 deste estudo.

– Lá vem, lá vem você com as palavras plebéias! [...] Besteiras! (DQC, 1973a, p. 80)

E, para o prazer de Emília e a satisfação de todos, a narrativa é retomada na linguagem que todos entendessem. É um duelo bem ao modo infantil, atenuado pela graça e descontração que os diálogos revelam e, num e noutro momento, justifica-se particularmente a reivindicação. Para Dona Benta, defensora da “expressão mais culta”, não se devem usar “palavras plebéias”, porque, assim “não [se] ofende o ouvido das pessoas finas” (DQC, 1973a, p. 80) e, para Pedrinho, a “língua moderna, simplificada” [...] “não dá dor de cabeça” (ibid., p. 87).

Na mesma obra, ao tentar controlar os excessos de Emília, no momento interpretados como “loucura varrida”, ao modo de D. Quixote, Dona Benta a repreende, aconselha e sugere um equivalente semântico que, a seu ver, cumpriria o mesmo papel.Veja-se:

– Nós todos aqui, Emília, gostamos muito de você – mas você às vezes se excede e abusa. O sábio na vida é usar a moderação em todas as coisas. Uma loucurinha de vez em quando tem sua graça; mas uma loucura varrida é um desastre – e acaba sempre em hospício ou gaiola.

Emília explicou-se.

– Sei disso, Dona Benta, mas às vezes me dá comichão de fazer estrepolia grossa, como as do cavaleiro da Mancha. Porque eu não acho que isso seja loucura. É apenas revolta contra tanta besteira que há no mundo.

– Lá vem você com as palavras plebéias! Muitas professoras, Emília, criticam esse seu modo desbocado de falar. “Besteira!” Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie. Use expressão mais culta. Diga, por exemplo, “tolice”. (DQC, 1973a, p. 80)

O diálogo estabelecido entre Dona Benta e Emília reflete a questão da língua como traço da identidade e que, por isso, pode ser um instrumento de aceitação ou recusa, promoção ou reprovação do indivíduo na sociedade – um elemento de valoração social.

Dona Benta, sendo uma representante da classe adulta, instruída e educada nos moldes de uma sociedade conservadora e repressora, tenta censurar a bonequinha quanto ao seu modo extravagante de falar. “Seu modo desbocado de falar”, o uso de palavras “plebéias”, criticados por “muitas professoras” (possivelmente uma referência ao plano real contemporâneo do escritor), impingiam-lhe um rótulo negativo, dando aos conservadores um motivo legítimo para discriminá-la e, por fim, excluí-la do contexto social (ficcional e real) como modelo de conduta.

De uma perspectiva teórica, a atitude de Dona Benta pode ser explicitada se considerarmos o comentário de Fiorin, em capítulo que define o discurso, “ao mesmo tempo, prática social cristalizada e modelar de uma visão de mundo” (1990, p. 56).

Assim se expressa o autor:

A linguagem tem influência também sobre os comportamentos do homem. O discurso transmitido contém em si, como parte da visão de mundo que veicula, um sistema de valores, isto é, estereótipos dos comportamentos humanos que são valorizados positiva ou negativamente. Ele veicula os tabus comportamentais. A sociedade transmite aos indivíduos – com a linguagem e graças a ela – certos estereótipos, que determinam certos comportamentos. Esses estereótipos entranham- se de tal modo na consciência que acabam por ser considerados naturais. (FIORIN, 1990, p. 55)

Entretanto, do ponto de vista estilístico, Koch & Travaglia (1990, p. 38) argumentam que, embora a coerência estilística “possa ser uma exigência plausível dentro de um contexto normativo do uso da língua, o uso de estilos diversos parece não criar problemas maiores para a coerência entendida como princípio de interpretabilidade”.

Com base nessa perspectiva, ante a crítica de Dona Benta, aconselhando Emília a substituir “besteira” por “tolice”, a boneca questiona:

– E não é a mesma coisa?

– É, mas não ofende o ouvido das pessoas finas. (DQC, 1973a, p. 80)

Dona Benta cita a atitude de D. Quixote, que aconselha Sancho Pança a comportar-se “com a dignidade que o posto exige”, logo que assumir o governo da ilha prometida. E, assim, a avó de Narizinho retoma a história a partir dos conselhos do fidalgo ao escudeiro, em cujo diálogo encontramos uma forma de chiste, comum na literatura de Monteiro Lobato.

Entre outras coisas que cita o Cavaleiro da Mancha como atitude de maior polidez, está o uso indiscriminado de clichês no discurso de Sancho, que se traduziria em atitude indigna de nobre governador:

[...] Deves falar com sobriedade, nem demais, nem de menos; e prestar muita atenção no que diz, nunca usando palavras grosseiras ou plebéias. Deves abandonar esse hábito de ir enfiando um rifão sobre outro, como contas de rosário, venham ou não venham a propósito.

– Ah, isso há de ser difícil, meu amo, porque tenho na cabeça mais rifões do que os há nos livros. Dá aos pobre quem empresta a Deus. Foi buscar lã e saiu tosquiado. Quem quer vai, quem não quer manda. Os rifões são tantos dentro da minha cachola, que quando abro a boca eles se atropelam para sair e, afinal de contas, não constituem a sabedoria popular?

– Perfeitamente. São a sabedoria popular, quando bem empregados. Mal empregados, constituem a estupidez popular – e tu os empregas tão mal às vezes que com isso só mostras a estupidez que Deus te deu.

– Muito bem, senhor meu amo. Hei de botar tento nisso, porque Deus ajuda quem cedo madruga, e tantas vezes vai a bilha à fonte, que um dia fica lá. Ou, como diz o outro, quem se faz de mel às moscas atrai.

E o fidalgo se dá por vencido. (DQC, 1973a, p. 81)

Na referida cena, temos ilustrada a idéia do valor de prestígio aplicado à linguagem e especialmente a traços caracterizadores de uma ou outra modalidade de linguagem – a oral e a escrita. Não vemos como gratuita nem incoerente tal referência, mas como um fato proposital na trama, já que os clichês e ditos populares são abundantes na linguagem literária

infanto-juvenil de Monteiro Lobato. Ocorrem, inclusive, em tonalidades satíricas e irônicas, como nesse exemplo em que o escritor faz chiste com a própria discriminação dessas formas cristalizadas.

Desse modo, consideramos essa abundância um fator enfático, cuja intenção poderia ser a de compilá-los aleatória e assistematicamente, o que configuraria um modo um tanto novo e pouco exaustivo de registrar um aspecto característico da linguagem coloquial popular, o qual estava bastante em voga na época, especialmente entre os falantes mais maduros.

Por outro lado, o que Dona Benta chama de “moderação” no uso de palavras ditas “plebéias” podemos traduzir para o que hoje reconhecemos ser uma atitude crítica no momento da escolha do vocábulo a ser empregado no discurso. Faz-se necessário um ajuste ou uma adequação do melhor para o caso, conforme a situação de emprego, o público interlocutor e os objetivos a que serve no discurso atualizado. É uma questão de “coerência estilística”, conforme Koch & Travaglia (1990, p. 38).

Nesse último ponto, talvez, na questão dos fatores a serem considerados na escolha das palavras, pode estar justamente a razão de Emília ter dito “besteira”, em vez de “loucuras”, como sugere o contexto, já que os serões de Dona Benta são um espaço aberto para o questionamento, a sugestão e a crítica.

Ainda que tentando argumentar que “tolice” e “besteira” são “a mesma coisa”, pelo fato de esta não ferir o princípio da interpretabilidade, pode ser que ela quisesse revelar a intenção (fator ideológico) pela qual optou por uma e não por outra. Se, para D. Quixote, a “loucura” – como o ato de dar cambalhotas no ar – era um sinal de penitência ou de auto- flagelação –, para Emília, que não acha que seja “loucura”, mas “apenas revolta” contra o que há no mundo, seria um sinal de protesto. Trata-se de uma nuance na interpretação das atitudes anticonvencionais muito parecida com aquela que, no início daquele século, tomava

por baderneiros e anarquistas os movimentos grevistas e tudo o que tentasse demonstrar insatisfação e desejasse mudanças, no âmbito sócio-econômico e cultural. Uma questão de caráter ideológico, portanto.

Nesse sentido, a bonequinha pensante de Monteiro Lobato, cuja característica típica é a desobediência aos padrões estabelecidos, tenta mostrar em seu discurso que a moderação aconselhada por Dona Benta, usada acriticamente, pode ser um instrumento de luta ideologicamente a favor da defesa e conservação dos “bons costumes”, ao que Emília se opunha.

A personagem “do chifre furado”, como ela mesma se dizia, não caracteriza a “estrepolia da grossa” – que ambos, ela e D. Quixote, praticavam – como uma “loucura”, mas um sinal: para ele, um ato de penitência; para ela, uma atitude revoltosa, um protesto, portanto.

Tem-se, assim, na opção de Emília por “besteira”, em vez de “tolice”, um exemplo da seleção vocabular filtrada pela ideologia do falante, em cuja circunstância deseja refletir ação crítica, já que em “tolice” – “qualidade, ação ou dito de tolo”, por sua vez, considerado “sem inteligência ou sem juízo”, há o fator patológico da insanidade, o que Emília não acredita ser o caso de D. Quixote.

Além disso, apreendemos um sentido mais complexo no emprego de “besteira”, por Emília, dado o conhecimento mais amplo da natureza, personalidade e filosofia da personagem, diluídas na extensão da obra lobatiana, diferentemente do que encontramos no dicionário.

Na expressão de Emília, surpreendemos em “besteira” uma conotação crítica, de censura mesmo e de repúdio às atitudes da humanidade, quanto ao tratamento aos tidos como “loucos”, principalmente ao hábito de encarcerá-los em hospícios, ao invés de lhes dar um tratamento mais humano e científico – sacrifício a que ela própria (como D. Quixote) fora

sujeitada, sendo confinada em uma gaiola, por causa de suas estrepolias. Nesse caso, a opção por “besteira” teria mais o sentido de arbitrariedade, de insensatez, que de insignificância, como diz o dicionário.

No instrumento lexicográfico de status e de reconhecimento para o estudo e compreensão da língua, “besteira” significa “asneira”, “coisa ou quantia insignificante”, fato a que contestaria a personagem “língua de trapo”, pela ausência de maior valoração ao vocábulo, dada a variedade de seu emprego e à força psicológica ou ideológica que pode carregar. Talvez seja ideológica também a pouca expressividade dedicada à elucidação de tal vocábulo, no dicionário. Pode ser que tenha sido de pouca importância ou de insignificância mesmo por ele ser, como alerta Dona Benta, de uma linhagem “plebéia” na comunidade lingüística.

O fato é que, vista com olhos mais críticos, a atitude da boneca de pano em encarar como “besteiras” certas coisas interpretadas como “loucuras”, ilustradas mais pelas atitudes da sociedade em referência aos tidos como loucos que pelas suas próprias “loucuras”, é um exemplo para a reflexão sobre os tradicionalmente chamados “sinônimos”, que devem apresentar características distintas no momento de sua atualização no discurso, conforme as várias instâncias a que podem ser submetidos, inclusive ideologicamente.

Como vimos, temos nesses diálogos metalingüísticos uma referência explícita à modernização da língua portuguesa vivida no Brasil daquele século, mais especificamente nas décadas seguintes ao movimento modernista, nas artes e na literatura, em virtude das contingências populares em efervescência, acatadas por artistas e intelectuais.

Há, inclusive, no desfecho referido, uma reivindicação direta à realização da narrativa das aventuras do Cavaleiro da Mancha “em língua moderna, simplificada” (DQC, 1973a, p. 87), em favor da clareza, da facilitação da compreensão por parte dos interlocutores, as

crianças de Dona Benta. E é Pedrinho quem melhor esclarece o pedido, reconhecendo, nas diferenças, cada linguagem com seu valor:

– Eu poderei admirar muito os escritores clássicos, mas, para ler, quero os modernos, como esse tal Machado de Assis que a senhora tanto gaba. (ibid., p. 87)

Fica assim registrada, na literatura de Monteiro Lobato para crianças e adolescentes de seu tempo, uma forma de o escritor introduzir entre seus leitores a questão das variedades de registro, seus valores e possibilidades de emprego. Acrescente-se a isso o valor cultural – e estético, por que não dizer? – da iniciativa do escritor quanto à tradução e adaptação de D.

Quixote para as crianças brasileiras, cujo produto tornou possível e viável a leitura de um dos maiores clássicos literários de todos os tempos. O mesmo se diga de toda obra em que, por meio do recurso à intertextualidade, recupera e redimensiona fatos e feitos sócio-histórico- culturais da humanidade, de mérito incalculável, que com tais características não participam “com leveza e graça” em quaisquer outros veículos de informação.

Como dado ilustrativo da teoria que associa estilo com a personalidade e a identidade do indivíduo (cf. Ullmann (1973b); Riffaterre (1973), entre outros), temos os casos em que Emília, a personagem “língua de trapo”, excede-se verbalmente, extrapolando os limites do bom senso defendidos por Dona Benta.

Em O poço do Visconde (1956), movida pelo desejo de pôr fim ao entusiasmo do Visconde com a possibilidade de extração de petróleo, no Brasil, Emília – após tê-lo satirizado com uma pergunta chistosa e provocadora – acaba caindo numa cilada discursiva por ele preparada e se expressa em linguagem frouxa, revelando a personalidade irreverente e

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