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A definição do corpus é o ponto de partida porque envolve um gesto de interpretação do analista, na qual são tomadas decisões quanto à análise dos discursos ali presentes. Uma das principais características da AD é a sua versatilidade, visto que cada pesquisa mobiliza saberes específicos, pensados em razão do objeto e da pergunta de pesquisa (ORLANDI,

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27Ex-atletas da Seleção Italiana. Materazzi era zagueiro da Internazionale; e Gattuso meio-campista do rival Milan. Os dois jogadores são relembrados por um estilo “grosseiro” de jogo, que em vezes descambava para a violência. Qualidades técnicas à parte, os dois se destacavam por características como “raça”, liderança, e identificação com suas respectivas equipes.

2005, 2008; BENETTI, 2016). Ou seja, uma pesquisa em AD nunca é igual a outra, tendo em vista as particularidades de diferentes fenômenos estudados.

Orlandi (2005, p. 66-67) considera a definição do corpus como o início da análise, pois ao mesmo tempo em que se pensam essas definições, “se vai incidindo um primeiro trabalho de análise, retomando-se conceitos e noções, pois a análise de discurso tem um procedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise”. São os interesses do analista que determinam quais aspectos da Teoria do Discurso serão mobilizados, sendo necessário observar o objeto empírico para definir quais são as noções teóricas mais adequadas para cumprir os objetivos de uma dada pesquisa. A linha de raciocínio de Noble (2016) é a de que a AD oferece um quadro teórico que permite o desenvolvimento de um gesto de análise particular.

Daí deriva o “ir-e-vir” a qual se refere Orlandi. A Teoria do Discurso nunca é empregada da mesma maneira nas pesquisas, como uma receita de bolo. “O arcabouço teórico [da AD] nunca é o mesmo, nunca está pronto para ser ‘utilizado’, ele é, de fato, construído juntamente com a análise, a partir das questões de interesse e das indagações do analista acerca de seu objeto” (NOBLE, 2016, p. 28).

Tal gesto de análise se torna possível pela construção de um dispositivo teórico e de um dispositivo analítico, existentes sempre em paralelo. São as ferramentas das quais dispõe o analista para compreender o funcionamento discursivo e podem ser resumidos de forma básica em: dispositivo teórico como as noções teóricas da AD; dispositivo analítico como a mobilização de determinadas noções em razão de uma pesquisa específica (ORLANDI, 2005).

A construção dos dispositivos também corresponde a um gesto de interpretação, pois

“todo discurso é parte de um processo mais amplo que recortamos e a forma do recorte determina o modo da análise e o dispositivo teórico da interpretação que construímos”

(ORLANDI, 2005, p. 64). Pela mesma razão o dispositivo analítico varia em forma.

O aparato teórico desta dissertação corresponde ao desenvolvimento de noções da AD por autores como Pêcheux (1990; 1975 apud ORLANDI, 2005; 1990); Orlandi (2007); Gallo (2012), entre outros. São elas: Autoria; Formação Discursiva (FD); Posição-Sujeito (PS);

Interdiscurso; Paráfrase e Polissemia; Resistência. Para além de um nível teórico, estas noções são pensadas também em relação ao objeto empírico analisado, constituindo-se aí o dispositivo analítico.

Considerando novamente o movimento constante que se faz entre teoria e corpus na prática na AD, é mais adequado não estruturar a dissertação em momentos distintos para a

explicação das noções teóricas e a aplicação delas no objeto empírico. Por isso, haverá detalhamento sobre cada uma das delas conforme elas forem emergindo da análise, que se desenvolve nos próximos capítulos.

3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO DE CENAS LAMENTÁVEIS

Antes de iniciar as análises sobre a produção de sentido em Cenas Lamentáveis, convém inferir sobre as suas condições de produção, isto é, as circunstâncias em que o discurso da página é produzido. Elementos exteriores aos textos postados ali impactam no sentido que circula nos posts e comentários, e fazem parte do processo referido por Orlandi (2005) como passagem de superfície linguística para objeto ideológico, compreendendo o texto para além do que está explicitamente verbalizado nele.

Noble (2016) e Ávila (2009) consideram duas instâncias possíveis: um contexto mais imediato, empiricamente observável da produção de um discurso; e um contexto amplo, em que condições sócio-históricas e ideológicas impactam os dizeres. Estes entendimentos partem da concepção da discursividade como processo nunca fechado em si: dois textos gramaticalmente idênticos podem ter significados distintos dependendo dos lugares sociais em que são produzidos, e com base nas relações que estabelecem com discursos anteriores.

Esta é parte da conceituação de Noble (2016), resgatando o pensamento de Pêcheux sobre relações de força e de sentido presentes na discursividade.

Este capítulo aponta para as circunstâncias em que é produzido o discurso de Cenas Lamentáveis, a saber: as formas de comunicação na internet; o discurso do humor; o discurso sobre futebol e o discurso sobre gênero. Estas quatro “esferas” têm relevância na produção de sentido dos administradores e dos seguidores de CL, sendo possível observar implicações imediatas (registros no próprio corpus de pesquisa) e de origem ideológica (ao se conferir historicidade ao sentido que ali circula).

As especificidades da Internet, e em particular do Facebook, são os primeiros tópicos destacados por serem bastante elementares da comunicação de CL – por se tratar de uma fanpage, é esperado que a sua comunicação seja pautada pelas formas de sociabilidade próprias das redes digitais, e mediada pelas ferramentas tecnológicas do aparato digital. Por isso que analisar o podcast, o site, ou eventos ao vivo de Cenas Lamentáveis seriam experiências bastante distintas, devido aos diferentes suportes para estas comunicações.

Durante o processo de análise (e principalmente após o exame de qualificação), o humor foi identificado como importante mecanismo pelo qual Cenas Lamentáveis produz sentido, passando a ser considerado então condição de produção do discurso de CL. A maioria dos posts analisados é humorístico, portanto, abriu-se espaço para tratar dos pormenores desse tipo de texto, com respaldo de autores que o estudam a partir de um viés discursivo.

Depois, talvez o mais óbvio em uma pesquisa sobre a comunicação entre torcedores, os discursos sobre futebol. Os vieses mobilizados aqui são o do futebol como destacada produção cultural brasileira, e os dizeres sobre gênero dentro deste esporte. Pode-se apenas aí perceber se alguns jargões – “futebol é a identidade Brasil” ou “futebol é coisa de macho”, ficando apenas no mais óbvio – são mobilizados pela fanpage, ou se há renegociação de certos saberes em seus discursos.

E, por fim, são considerados também alguns entendimentos sobre gênero e sobre masculinidades. Coloca-se em discussão o que será chamado de um discurso “tradicional”

sobre estes temas, identificando temas e afirmações recorrentes, as tensionando com referencial teórico da área, para em seguida observar de que maneiras este discurso

“tradicional” reverbera na produção de sentido de Cenas Lamentáveis.

Estas condições estão separadas em diferentes blocos, cada um com uma subseção correspondente, apenas para finalidade de clareza textual. Eles não devem ser entendidos como “universos isolados” entre si, pois incidem sobre as outras. É possível que as formas de apreensão textual na internet modifiquem as piadas que são ali postadas; assim como por meio do humor pode emergir um discurso inesperado sobre futebol, enfim. Pela mesma razão, quando conveniente, se fará o ir-e-vir entre os assuntos Internet, humor e futebol, tendo gênero como elemento transversal, e apresentando eventuais análises de Sequências Discursivas.

3.1 PARTICULARIDADES NA PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE TEXTOS NA