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PARTE II INTERESSES CERTEIROS I: INVESTIMENTOS ECONÔMICOS Capítulo III Múltiplas atividades: a abertura do leque

Capítulo IV Capital econômico: mensuração, realidade e fantasia

PARTE III INTERESSES CERTEIROS II: PREFERÊNCIAS ECONÔMICAS Capítulo V Locus colonial privilegiado: a venda

Capítulo VI O esteio da venda: transporte fluvial e terrestre

PARTE IV CONFLITOS MIL: ARTICULAÇÃO E ENFRENTAMENTO

Capítulo VII O esfacelamento do cristal Conclusão

PARTE I – COTIDIANO: RELIGIÃO E FAMÍLIA

CAPÍTULO I – DISPUTA PASTORAL: EM VEZ DE ESPADAS, BÍBLIAS

A cabeça é minha e eu faço o que bem entendo com ela e... Estes pastores precisam saber disto que eu não vou ficar dando dinheiro à toa e abaixando a cabeça para estes ditos pastores.26

A disputa pastoral entre João Jorge Ehlers, Frederico Cristiano Klingelhoeffer e Carlos Leopoldo Voges27 enquadra-se no rol de conflitos que caracterizaram a colonização alemã, sobretudo porque competiram pelos poderes econômico, político e simbólico. Tal concorrência pôde ser percebida na pretensão dos três pastores em fixar residência definitiva na Colônia de São Leopoldo e se estabelecer como líderes locais. Segundo Pierre Bourdieu, o simbólico permitiria conquistar o que é obtido pela força física ou econômica, “graças ao efeito

26

Cristiano Henrique Hoffmann, 1868. APERS – Processo-crime – autos 2934 – 1868 – São Leopoldo – Cristiano Henrique Hoffmann [réu].

27 Tramontini abordou a disputa entre os três pastores sob a ótica profissional: “Em 1832, numa

alteração da lei do orçamento de 1831, o pastor das Colônias voltaria a receber salário do governo imperial, o que abriu um debate e uma ferrenha disputa entre os possíveis candidatos”. Neste texto, pretende-se avançar na discussão e demonstrar que os líderes espirituais também se engalfinharam pelo domínio do capital simbólico que suas profissões representavam. Dessa forma, interesses econômicos, políticos e simbólicos perpassaram o duelo verbal dos três pastores. Ver: TRAMONTINI, Marcos Justo. Ehlers, Voges e Klingelhoeffer: a disputa. In: ELY, Nilza Huyer; BARROSO, Véra Lucia Maciel (Orgs.). Raízes de Terra de Areia. Porto Alegre: EST, 1999a, p. 209-212; p. 209.

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específico de mobilização”, desde que os personagens envolvidos sejam reconhecidos pelos outros.28 Desta forma, o poder econômico, o político e o simbólico serão analisados conjuntamente, sem que haja degraus de hierarquia entre eles. No entanto, como se trata da análise de personagens que vêm carregados de forte carga simbólica, a palavra empenhada por cada um dos pastores tomou novas dimensões, se comparada aos demais líderes locais do espaço colonial, comprometidos tão somente com a economia ou com a política. No caso de Ehlers, Klingelhoeffer e Voges, houve o acréscimo do poder quase mágico da palavra:

O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.29

Ainda, essa análise pode ser complementada com a assertiva de Levi: “a autoridade que provinha de sua posição de pároco acrescentava mais força a sua (pobre) pregação teórica”.30

As referências aos três pastores podem ser encontradas nos documentos relativos à imigração, mas também nas descrições que seus colegas redigiram a partir da segunda metade do século XIX. Um deles, o historiador Carlos Henrique Hunsche (mesmo que não tenha concluído os estudos teológicos), preocupou-se em descrever alguns dados biográficos sobre os religiosos evangélicos que deram início à fé protestante no Brasil. Segundo o autor, João Jorge Ehlers chegou a São Leopoldo em 6 de novembro de 1824, viúvo (sua esposa havia falecido antes da emigração para o Brasil), acompanhado dos filhos Maria Regina Georgina, Augusta

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 14.

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Francisca e Alexandre Constantino; Frederico Cristiano Klingelhoeffer em 17 de abril de 1826, casado, acompanhado da esposa Luisa Stapp e dos filhos Carolina, Joana Sofia, Jorge Carlos Herrmann, Augusta Carolina Elisa, Ernestina Guilhermina Hedwig e Emília; e Carlos Leopoldo Voges, em 11 de fevereiro de 1825, solteiro, dos quais apenas Ehlers e Klingelhoeffer parecem ter comprovado sua profissão.31 Ehlers permaneceu como pastor em São Leopoldo; Klingelhoeffer atendeu aos colonos situados na Costa da Serra e arredores (Campo Bom e Estância Velha); e Voges ficou na comunidade evangélica da Colônia de Três Forquilhas. Em virtude da morte prematura do pastor Klingelhoeffer, morto em combate durante a Revolução Farroupilha, nas proximidades de Triunfo/RS, no dia 6 de novembro de 1838, a análise da disputa pastoral terá continuidade apenas nas figuras de Ehlers e Voges.32

A competição dos três pastores por São Leopoldo foi significativa: os luteranos eram em maior número, a Colônia tinha possibilidade de prosperar e o contato com Porto Alegre era facilitado pelo rio dos Sinos. O projeto de colonização com sede em São Leopoldo previa o crescimento da Colônia e o cumprimento de algumas metas, como a ocupação do solo, a produção de alimentos e o fornecimento de homens para lutar nas possíveis guerras que envolviam o Sul do

30 LEVI, op. cit., p. 78.

31 De acordo com as informações apresentadas por Schröder, Ehlers foi “sacristão-mor na igreja de

São Tiago em Hamburgo, foi ordenado com a concordância dos pastores dessa igreja e de seu Sênior e enviado como pregador de São Leopoldo”. Ver: SCHRÖDER, Ferdinand. A imigração alemã

para o Sul do Brasil até 1859. Porto Alegre, São Leopoldo: Edipucrs, Unisinos, 2003, p. 68. [Tradução

de Martin Norberto Dreher]. Baseado em Schröder, Prien também concluiu que Ehlers possivelmente chegou ao Brasil como pastor ordenado. “Não obstante, o agente Major Schaeffer foi solicitado a recrutar Ehlers como clérigo. Visto que numa carta ao governo com data de 05/04/1824 Schaeffer coloca como condição a ordenação de Ehlers, pode-se pressupor, junto com Schröder, com grande probabilidade que Ehlers emigrou para o Brasil como clérigo ordenado”. PRIEN, Hans-Jürgen.

Formação da igreja evangélica no Brasil: das comunidades teuto-evangélicas de imigrantes até a

igreja de confissão luterana no Brasil. São Leopoldo/RS: Sinodal; Petrópolis/RJ: Vozes, 2001, p. 51; nota 102. Quanto a Klingelhoeffer, os documentos que comprovam sua formação teológica serão

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império.33 Assim, a disputa pelo pastorado em São Leopoldo foi além do desejo de ser o primeiro pastor da Colônia; crescer com ela, aumentar o rebanho de fiéis, ocupar o lugar junto aos maiorais da futura vila estiveram entre os objetivos de Ehlers, Klingelhoeffer e Voges.

Porém, os problemas começaram justamente quando o presidente da província abriu apenas uma vaga de pastor titular. Essa oferta bateu de frente com as declarações dos três pastores contratados pelo Major Schäffer, segundo os quais o império, através de seu representante, havia assegurado a cada um a contratação para o cargo de pastor titular na Colônia a ser formada no Brasil. A alternativa encontrada, longe de contentar os interessados, foi a implementação do posto de segundo pastor, o qual ficaria como auxiliar e com uma remuneração menor, razão pela qual os futuros dirigentes espirituais da Colônia redigiram diversos requerimentos solicitando a sua nomeação e/ou permanência no pastorado, bem como que fossem equiparados à situação do titular. De pronto, João Jorge Ehlers foi instituído oficialmente como pastor principal com o dever de orientar espiritual e culturalmente os alemães estabelecidos na Colônia recém-formada. Como não houvesse justificativa por parte do governo explicando por que Ehlers foi escolhido e não os outros, supõe-se que o fato de ter sido o primeiro a chegar ao Brasil lhe desse o direito sobre seus concorrentes, o que é atestado na portaria de 23 de novembro de 1824 pela qual lhe foi atribuída a “gratificação” de 200$000, “à

apresentados ainda neste texto.

32 HUNSCHE, op. cit., 1977; p. 487-489; HUNSCHE, op. cit., 1975; p. 221-222, 286-287. 33

Mariseti Lunckes constatou que esses mesmos motivos levaram o império a fixar colonos alemães na divisa das províncias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, mais precisamente no Presídio das Torre, a partir de 17 de novembro de 1826. Ver: LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. Um velho

projeto com novos rostos: uma colônia alemã para a Ponta das Torres. São Leopoldo, 1998.

Dissertação [Mestrado]. História da América Latina. Programa de Pós-Graduação em História – UNISINOS, 1998.

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semelhança da Congrua dos nossos vigários”.34 Isso gerou reação por parte de Carlos Leopoldo Voges, que se viu diminuído com a condição de segundo pastor, o qual não somente estava subordinado ao titular, mas também recebia salário menor.35

Conforme resposta datada de 13 de setembro de 1825,36 Voges denunciou que estava sem receber há três meses e solicitou ordenado igual ao de Ehlers, que, no transcorrer de julho de 1824 até aquela data, teve seu salário aumentado de 100$000 para 400$000, conquista que foi obtida via requerimento, o qual foi respondido em 10 de fevereiro de 1825, com parecer favorável: “felizmente posso anunciar-lhe que as privações e faltas, de que se lamenta, acabam de ser remediadas... ordenou que se aumentasse a sua gratificação a quatrocentos mil réis em cada um ano”.37 A petição de Voges teve o aval do inspetor da Colônia de São Leopoldo, o qual testemunhou “o bom procedimento do suplicante” e a intranqüila relação de Ehlers com seus fiéis: “os colonos formam queixas freqüentes sobre os costumes dele”. Além do posicionamento favorável do inspetor, houve referência à

34 Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul (Revista do APERS), n.15-16, set/dez 1924, p.

25.

35 Somente em 21 de novembro de 1825 o governo concedeu oficialmente a Carlos Leopoldo Voges

o título de “Coadjutor ao Pastor Ehlers”, com a gratificação anual de cem mil réis. Cf. aviso de 13 de dezembro de 1825. Revista do APERS, op. cit., p. 169. Os desentendimentos entre os pastores foram contemplados por Tramontini em sua tese (páginas 153-164 e 223-226). Por óbvio, alguns documentos encontram-se repetidos neste trabalho, porém novas fontes foram acrescentadas e aprofundam a questão. Além disso, tomo a figura de Carlos Leopoldo Voges como espinha dorsal, uma vez que Klingelhoeffer e Ehlers desaparecem prematuramente do cenário colonial. Ao perseguir os passos de Voges, consegui chegar ao final do século XIX, incluindo neste período a chegada dos pastores “ordenados”, o que fez surgir novas pendengas envolvendo “ordenados”, “não-ordenados” e comunidades evangélico-luteranas. Como a análise de Tramontini ficou restrita aos três primeiros pastores, o avanço cronológico colaborou para o aprofundamento da questão. Por fim, concordo com o autor quando ele afirma que os desentendimentos entre os pastores extrapolou o assunto religioso, chegando ao plano político. Para reforçar essa afirmação, dei ênfase à disputa e à tentativa de fixação em São Leopoldo por parte das três autoridades eclesiásticas. Longe de se constituir uma réplica, a análise da disputa pastoral estendeu o marco cronológico dos conflitos, aprofundando, assim, a discussão em torno do tema. Ver: TRAMONTINI, op. cit., 2000.

36 Revista do APERS, op. cit., p. 48. 37

Revista do APERS, op. cit., p. 128. Lê-se nessa mesma obra que Ehlers primeiramente teve seu subsídio dobrado para 200$000; insatisfeito, solicitou 400$000 em 27 de novembro de 1824, p. 249.

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“representação assinada por vários alemães da Colônia”, os quais “pedem [que] seja igualado o Ordenado do Pastor Carlos Leopoldo Voges ao que recebe o Pastor, que primeiramente foi para ali João Jorge Ehlers”.38 Embora os cargos estivessem definidos, pode-se perceber que Ehlers lutara por aumento na sua remuneração e que Voges pedira equiparação de condições tais quais as do seu superior, o que resultou na sua indicação para a Colônia de Três Forquilhas.

A indicação de Carlos Leopoldo Voges para assumir a vaga pastoral junto aos colonos que seriam enviados à Colônia alemã das Torres pode ser encontrada no pronunciamento de 11 de outubro de 1826.39 Como o documento anterior estava datado de setembro de 1825, constata-se a demora das autoridades em resolver aquela situação, morosidade que poderia estar relacionada com o planejamento da instalação da Colônia das Torres, pois a equiparação salarial foi vinculada ao atendimento do futuro núcleo colonial:

fiz insinuar ao mencionado Voges, que informaria bem seu requerimento caso quisesse fazer parte da colônia com a obrigação de ser seu pastor. Com efeito anuindo a minha insinuação, como se comprova com seu requerimento aqui anexo, e com a participação que a tal respeito me dirigiu o Tenente Coronel Francisco de Paula Soares, considero de justiça conceder-lhe S. M. o I. o Ordenado de quatrocentos mil réis enquanto se achar no exercício de pastor da referida Colônia das Torres.40

38 Revista do APERS, op. cit., p. 58. Segundo Schröder, Ehlers enfrentou dificuldades na Alemanha

para exercer o pastorado devido à “tendência a se exaltar”. Problemas com a imigração (ocasionados pelo envolvimento com Schäffer), com os superiores eclesiásticos e demissão do cargo de sacristão- mor atormentaram Ehlers antes de viajar ao Brasil. Entretanto, as inúmeras reclamações contra Ehlers também podem ser vistas como reação dos colonos à nova ordem (novo local de moradia, novos líderes locais e inúmeras promessas não cumpridas). Conforme Tramontini, isso tudo levou a conflitos que representavam articulação grupal e não manifestações isoladas. Neste caso, Ehlers havia sido escolhido como bode expiatório, afinal “as lideranças religiosas, assim como as administrativas, eram questionadas e disputadas, as legitimidades, as hierarquias internas, ainda não estavam constituídas ou instituídas”. Por outro lado, essas considerações não desmerecem o caráter político das atitudes e manifestações do pastor Ehlers. Ver: SCHRÖDER, op. cit., p. 68; TRAMONTINI, op. cit., 2000; p. 110-111; p. 164.

39 Revista do APERS, op. cit., p. 58-59.

40 A mesma insinuação foi dirigida ao médico Jorge Zingraf: “no caso de sujeitar-se o referido Jorge

Zingraf a exercer sua profissão na Colônia das Torres, sou de opinião que S. M. o I. lhe conceda igual ordenado ao que percebe o Facultativo empregado na de S. Leopoldo”. Revista do APERS, op. cit., p.

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Com o envio de Voges para Torres, as autoridades da província pretendiam resolver dois problemas: dar atendimento espiritual aos colonos que seriam deslocados para o Litoral Norte do Rio Grande do Sul (LNRS) e aliviar as despesas com São Leopoldo, pois seria “inadmissível sobrecarregar as enormes despesas da Nação, feitas com aquele estabelecimento, com mais quatrocentos mil reis além de igual quantia concedida desde sua fundação ao referido Pastor Ehlers”.41 Ao mesmo tempo em que a querela entre os dois pastores foi dirimida momentaneamente, e os alemães do LNRS receberam o acompanhamento de um líder espiritual a partir de 17 de novembro de 1826, precarizou-se o atendimento pastoral em São Leopoldo, pois, com a saída de Voges, Ehlers viu-se obrigado a atender aos fiéis sem a cooperação de um assistente. As dificuldades enfrentadas tanto pelo pastor quanto pelos colonos que se viam distanciados do atendimento espiritual e educacional podem ser percebidas no relatório do presidente da província escrito após sua visita à Colônia, em 1826, antes que parte deles se dirigissem a Torres. Em especial sobre a freqüência escolar, o relator observou que:

E quanto ao objeto da Escola, havendo esta sido colocada junto a antiga Feitoria apenas é, e pode ser freqüentada pelos alunos filhos dos Colonos estabelecidos aquém do Rio dos Sinos, e nunca pelo dos que se acham datados além do dito Rio; inconveniente que nem provém da omissão dos Colonos, nem se poderá remediar-se sem que seja criada outra Escola, que parece não convir por ora, atentas as grandes despesas consignadas à manutenção da Colônia.42

Junto à incumbência de zelar pela educação das crianças vinha a responsabilidade de manter a Colônia em paz, o que não deve ter sido tarefa fácil visto as inúmeras queixas das autoridades em relação aos “embriagados” e “desocupados”, que a toda hora provocavam desarmonia entre os colonos. A

66-67.

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portaria de 17 de novembro de 1825 admoestou o inspetor da Colônia, José Thomaz de Lima, a tomar providências nesse sentido e ordenou que este entregasse “ao Pastor Voges essa portaria, que diz respeito, e interessa a muitos dos colonos, para a publicar na ocasião da reunião dos colonos”.43 Assim, a tentativa de apaziguar os ânimos entre os pastores acabou resultando no benefício dos colonos que foram para Torres, mas tornando precário o atendimento que era oferecido aos que permaneceram em São Leopoldo.

O embate entre os pastores Ehlers e Voges não deixa dúvidas sobre a capacidade de articulação dos dois. Solicitar equiparação de título, por um lado, e pedir aumento salarial, por outro, fez parte de uma estratégia maior a qual teve como meta final ocupar cargo de liderança na Colônia de São Leopoldo. Essa capacidade de articulação transpareceu na insistência dos pedidos e na valorização do serviço prestado, o qual, segundo eles, tinha origem na contratação realizada ainda em solo europeu, quando o governo imperial, através dos seus representantes, comprometeu-se a cumprir com as promessas de liberdade para o exercício da profissão, mesmo sem ser a religião oficial, e pagamento de salários. O pedido reiterado de Voges para que lhe fossem pagas as diferenças entre o subsídio recebido pelos colonos e aquele que havia sido combinado para os pastores exemplifica como esses líderes ocuparam seus espaços e construíram os capitais materiais e simbólicos no Brasil. De acordo com o documento de 24 de outubro de 1826, portanto, menos de um mês antes de chegar em Torres, Voges solicitou o pagamento dessas diferenças:

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Revista do APERS, op. cit., p. 62.

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Quando o suplicante chegou a esta Colônia não foi na qualidade de Pastor, é verdade que fazia os ofícios do Pastor, e ensinava a mocidade, porém vencia o subsídio que vence um simples colono, até que S. M. I. lhe concedeu ficar Coadjutor do Pastor Ehlers com cem mil reis de Ordenado, por isso ignoro quais sejam os onze meses que ele diz se lhe devem, pois antes de S. M. I. lhe conceder o ordenado que menciono sempre recebeu o subsídio que é costume dar-se a cada Colono, e depois tem recebido constantemente o seu Ordenado.44

É lícito pensar que, por volta do segundo quartel do século XIX, a obtenção de rendimentos maiores também colocava o possuidor desta quantia num outro patamar, um tanto acima da maioria que recebia apenas o subsídio destinado à imigração. A semelhança dos ordenados fixados para o pastor titular – 400$00 – e para o inspetor – 600$00045 – aproximava as duas atividades no que tange ao dever de representar os governos provincial e imperial junto à população, os quais eram revestidos de poder para exercer aquilo que lhes fora oficialmente designado. Os salários recebidos pelos professores em Conceição do Arroio, no ano de 1844, 600$00, em Vacaria e Santo Antônio da Patrulha, no ano de 1845, 400$00, e pelo juiz municipal e de órfãos em Santo Antônio da Patrulha, neste mesmo ano, 400$00, ratificam a explanação anterior, nivelando as autoridades pelo rendimento que recebiam.46

Porém, mesmo com rendimentos maiores e afastando o possível concorrente para o LNRS, os problemas relacionados aos fiéis continuaram assombrando o pastor Ehlers e estremecendo a concretização do projeto de tornar- se líder local inconteste. Os diversos documentos referentes aos anos de 1825 e

44 Revista do APERS, op. cit., p. 214. Spliesgart relatou com detalhes as reclamações do pastor

Friedrich Oswald Sauerbronn, instalado em Nova Friburgo, RJ, em relação a salário, moradia e demais condições de trabalho. Conforme o autor, a maioria das promessas feitas a Sauerbronn não foram cumpridas pelo império, o que gerou lamentações infindáveis por parte do pastor. Ver: SPLIESGART, op. cit., p. 185-195.

45 O salário do inspetor da Colônia de São Leopoldo é referido na página 169. Ver: Revista do APERS, op. cit.

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1826 denunciam as adversidades que o pastor enfrentou para manter-se no cargo: além de conflitos verbais, sua casa foi arrombada e “roubado sete dobrões espanhóis, um relógio, e seis facas de cabo de marfim”.47 Assim, a violência transcendeu o mundo dos discursos e chegou ao plano físico, atingindo ao mesmo tempo a residência e a figura do próprio pastor, ao permitir que questionassem a versão narrada por ele: “Muitas pessoas dizem que isto foi feito, ou mandado fazer por ele”.48 Dessa forma, a portaria de 3 de julho de 1825, assinada pelo inspetor da Colônia de São Leopoldo, José Thomaz de Lima, deixou transparecer que havia se instalado um quadro de desconfiança entre o pastor e alguns de seus fiéis. O inspetor foi favorável à versão do pastor, ao concluir que a casa realmente fora arrombada. Como autoridade, solicitou ao “Comandante da Polícia para vigiar sobre os Colonos que daqui vão com licença a ver se alguns trocam alguns dobrões, ou vendem o relógio, e mesmo as facas”.49 Pelo relatório do dia 15 do mesmo mês,

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