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A disputa pelo sentido da democracia

2.  UM NOVO SENTIDO PARA A DEMOCRACIA

2.6.  A disputa pelo sentido da democracia

No entendimento de sentidos para a democracia, tendo em vista a realidade  da América Latina repleta de descontinuidades no processo democrático e de fragilidades nas  instituições representativas – ambas agravadas pelo distanciamento entre a Sociedade Civil e o  Estado – cabe rapidamente apresentar a disputa entre projetos políticos9  que Dagnino  et al  (2006)   define   como   indicativa   de   dinâmicas   de   interação   singulares.   Diante   do   debate 

9 Projetos políticos designam "os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do  que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO et al,  2006:38). 

contemporâneo   sobre   a   democracia   é   oportuno   tratar   da   disputa   pelos   parâmetros  democráticos, sendo as relações entre Estado e Sociedade Civil tencionada pelas disputas  entre os projetos. Segundo a autora, na América Latina, há coexistência, fusão e disputa entre  dois   projetos   políticos   distintos:   o   democrático­participativo   e   o   neoliberal.   O   projeto  democrático­participativo   foi   construído   na   década   de   1980,   a   partir   da   ampliação   da  cidadania e da democracia. Já o neoliberal surgiu com a necessidade de ajustar as relações  entre Estado e Sociedade Civil às exigências do mercado diante da reconfiguração econômica  no âmbito global. 

Embora possa haver uma diferenciação na origem e missão dos projetos,  ambos   têm   usado   discursos   semelhantes   em   relação   à   participação   e   à   Sociedade   Civil,  gerando uma “confluência perversa” (DAGNINO, 2002:288). Aparentemente os dois projetos  “requerem   uma   sociedade   civil   ativa   e   propositiva”   (DAGNINO,   2002:289)   e   têm   na  construção da cidadania e na participação as mesmas referências. No entanto, a “perversidade  se localizaria  no fato de  que, apontando  em direções opostas e até  antagônicas, os dois  conjuntos de projetos utilizam um discurso comum” (DAGNINO et al, 2006:16).

No projeto neoliberal, o papel da Sociedade Civil é fornecer informações  qualificadas sobre as demandas sociais e assumir a execução das políticas públicas voltadas  para   estas   demandas.   A  participação   concentra­se   na   parceria   para   a   gestão   de   políticas  públicas – não incluindo o poder decisório sobre elas – visando à ampliação da eficiência e da  governabilidade. Nesta visão, os direitos de cidadania são universalizados, porém o Estado se  isenta   da   garantia   dos   mesmos   buscando   sempre   minimizar   conflitos.   A   expressão  democrática das disputas de interesses é garantida na luta política travada nas instituições  representativas, local precípuo da ação política. A Sociedade Civil é convocada à ação para  suprir   funções   antes   consideradas   estatais,   sendo   assim  é   concebida   de   forma   seletiva   e  excludente, já que são reconhecidos apenas sujeitos políticos capazes de desempenhar tais  funções (DAGNINO et al, 2006). Já o projeto democrático­participativo visa aprofundar a democracia com a  criação de instâncias de decisão social sobre políticas públicas. Neste, a Sociedade Civil tem o  papel de assegurar o caráter público do Estado por meio da participação, que forçaria a  partilha do poder decisório. A constituição de espaços públicos para a disputa de interesses, 

antes   restrita   a   gabinetes   ou   estruturas   formalizadas,   possibilita   que   conflitos   sejam  explicitados e não deixa a democracia confinada aos limites da relação com o Estado, mas  estabelecida   no  interior   da  própria   sociedade   que   afirma   a  cidadania   como   direito   a   ter  direitos. Assim, a Sociedade Civil é concebida de maneira inclusiva e ampla tendo em vista a  heterogeneidade de práticas existentes em seu interior (idem).  As semelhanças no discurso reservam diferentes significados na orientação  da ação política dos sujeitos que estejam mais ligados a este ou àquele projeto. Porém, as  diferenciações são difíceis de serem percebidas na prática. Isso acontece, pois a dissonância  entre discursos e ações é muito freqüente. Como se vê mais a frente, o próprio Governo Lula,  que se afirma democrático­participativo no que tange à relação com a Sociedade Civil, pode  ser considerado neoliberal quando limita, na prática, a capacidade de decisão de espaços de  participação que teriam por finalidade a partilha de poder decisório. Assim, a complexidade  da dinâmica política não permite o uso de categorias estanques. A noção de projeto político  orienta, mas não condiciona ou determina a ação política. Além disso, a confluência de  discursos acaba por derivar um imbricamento nas ações, pois em certos casos as práticas ditas  democrático­participativas assemelham­se às ditas neoliberais e vice­versa.

Reconhecendo   esse   limite   analítico,   não   é   o   caso   de   abandonar   a  classificação sugerida por Dagnino  et al  (2006), mas usá­la para facilitar a percepção das  semelhanças  e  dos  contrastes  entre  as  ações  políticas  do  projeto  neoliberal   e  do  projeto  democrático­participativo, no que tange as relações entre Estado e Sociedade Civil. Para tal, a  leitura   de   Dagnino   está   sintetizada   em   um   quadro   com   os   principais   conceitos   e   seus  respectivos significados nos dois projetos políticos que polarizam o debate contemporâneo  sobre a democracia na América Latina. 

Tabela 2: Conceitos e respectivos significados dos projetos políticos em disputa na  América Latina

Projeto democrático­participativo Projeto neoliberal

Origem / Missão Aprofundamento da democracia Ajuste   às   necessidades   do  mercado

Participação Tomada de decisões e controle Gestão de políticas públicas Prestação de contas Controle social e partilha de poder Eficiência e governabilidade

Conflitos Explicitados em espaços públicos Minimizados e evitados

Cidadania Direito a ter direitos Estado se isenta da proteção de  direitos

Política Noção ampliada Visão minimalista

Democracia Participação social e sociabilidade Instituições representativas

Fonte: Elaboração própria com base no texto de Dagnino et al (2006) Com essa diferenciação em mente, pode­se aprofundar a análise da realidade  brasileira no que tange à ampliação da participação. Assim, chega­se ao final deste capítulo  em que um sentido para a democracia foi buscado a partir da filosofia política de Dewey que  afirma a idéia de democracia em duas dimensões: modo de vida e auto­governo. Passou­se  pela abordagem procedimental focada no processo eleitoral, pelas soluções minimalistas para  a   participação,   pela   ampliação   da   idéia   de   participação,   pelas   visões   que   reconhecem   a  Sociedade Civil e que valorizam o associativismo, pela perspectiva de constituição da esfera  pública – que abre espaço para as análises da relação entre Estado e Sociedade Civil – e pela  percepção da disputa entre projetos políticos. Nesse percurso teórico, diferentes entendimentos sobre a democracia foram  visualizados com o contraste entre a visão hegemônica de democracia como procedimento e  as visões alternativas da vida associativa, da partilha do poder decisório e da constituição de  espaços públicos. Mesmo que o procedimentalismo das correntes hegemônicas não tenha sido  abandonado   pelas   teorias   alternativas,   estas   correntes   identificaram   a   insuficiência   do  procedimento   eleitoral   para   efetivar   a   idéia   de   democracia   que   tem   na   participação   seu  elemento central.

Seja com a participação decorrente da vida associativa ou mesmo com a  participação   que   se   faz   pela   influência   em   processos   decisórios   existentes   em   espaços  públicos, entende­se que o sentido da democracia transcende os procedimentos eleitorais. Nas  sociedades   de   massa,   em   particular,   o   desafio   está   colocado   em   articular   mecanismos  representativos mais inclusivos com novos formatos participativos para a gestão pública. Com  esta base teórica, segue a análise sobre a ampliação da participação no Brasil, tendo em vista  possibilidades e limites da formulação de políticas públicas em espaços públicos que têm a  potência de tornar real o auto­governo como participação plena na gestão da vida coletiva.

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