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DISPUTAS EM TORNO DO SABER/FAZER: MODELOS DE

5 AS DISPUTAS IDEOPOLÍTICAS EM TORNO DO CONCEITO DA

5.4 DISPUTAS EM TORNO DO SABER/FAZER: MODELOS DE

No âmbito da disputa pelo modelo de assistência ao parto, ou seja, pela direção/condução dos ritos de trabalho, se revela outra disputa que não se relaciona com o conceito diretamente, que é a disputa pelo protagonismo profissional na cena do parto. Médicas/os, enfermeiras/os obstetras e obstetrizes ocupam lugares diferentes na assistência ao parto, a depender do modelo de atenção prevalecente.

Neste sentido, para o protagonismo da mulher no parto, o modelo humanizado é o que parece favorecer a sua autonomia, na medida em que

reorganiza a lógica do parto, colocando o/a obstetra apenas em casos cirúrgicos, e o/a enfermeiro/a obstetra e o/a obstetriz no apoio à condução do parto.

No entanto, são também desiguais essas disputas entre as profissões: medicina e enfermagem, pelo protagonismo na assistência ao parto. Conforme problematizado no capítulo anterior, trata-se da relação entre uma profissão consolidada e legitimada pelo processo de medicalização social, composta por profissionais liberais, e por ser uma profissão que demanda uma formação onerosa, é composta majoritariamente por pessoas brancas e de classe média alta. O outro polo da relação são as/os enfermeiras/os que têm o status de profissão do cuidado feminizado e por estas características subalternizadas.

Mesmo diante dessas assimetrias, na disputa em torno do modelo de assistência ao parto, o argumento de que o polo divergente não pode falar por não ter um conhecimento técnico-cientifico, não pode ser utilizado, uma vez que são também médica/os que advogam a humanização do parto e justificam a mudança do modelo acessando o argumento da medicina baseada em evidências.

Por sua vez, os profissionais ativistas da Humanização do Parto, nesta disputa, se colocam como aliados das mulheres nas estratégias de enfrentamento à violência, ao produzir conhecimentos sobre o parto e compartilhar com elas, além de oferecer a possibilidade de uma conformação da assistência em que a autonomia da mulher seja respeitada.

Essa disputa gravita em torno do modelo de atenção ao parto, comportando outras disputas em relação a noções interpretativas, como a noção de risco e cuidado, que os adeptos do modelo humanizado, assim como os adeptos do modelo interventivo, anunciam assegurar com as suas práticas.

Remete à análise de Simone Diniz (2005) sobre os muitos sentidos tomados pela polissemia do termo humanização englobando diferentes perspectivas que reivindicam a legitimidade do discurso. Uma dessas perspectivas se refere à humanização como legitimidade científica da medicina ou baseada na evidência. Para os adeptos da humanização, cuidado e diminuição do risco significam o mínimo de intervenção na cena do parto. Já na perspectiva interventiva, o uso máximo de todas as tecnologias disponíveis são sinais de avanço no sentido de diminuir riscos e evitar a dor, ou seja, se coloca como cuidado.

Esse paradoxo se assenta na concepção inicial de humanização cunhada no início do século XX, em que o parto é visto como doloroso e a mulher como vítima

desse evento, colocando para a obstetrícia o papel de prevenir o sofrimento por meio de procedimentos como a episiotomia, no caso do parto vaginal, e da cesariana preventiva, que é o modelo aplicado à maioria das pacientes do SUS no Brasil contemporâneo (SIMONE DINIZ, 2005). Podemos identificar essa perspectiva nas seguintes falas:

Não se pode confundir conduta obstétrica com violência. Todas os recursos técnicos e científicos que norteiam as ações médicas, visando garantir a vida e a integridade do feto e da mãe fazem parte da garantia dos direitos humanos. Renegar o progresso da ciência como fonte de diminuição da mortalidade materno infantil é desconhecer o avanço formidável nessa área.

É obrigação e dever, além de imperativo ético, o médico usar todos os recursos advindos do progresso, da ciência e da tecnologia, disponibilizando-os à saúde da gestante e do bebê (FENAN 01). A justificativa do uso da tecnologia é, na verdade, a justificativa de um modelo interventivo, contrariando a chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE), que preconiza que os cuidados médicos devem ser baseados em evidências empíricas de segurança e eficácia dos procedimentos. Assim, a avaliação científica demonstrou que a intervenção mínima é compatível com a segurança, constituindo, assim, um modelo de parto normal a ser seguido (SIMONE DINIZ; ALESSANDRA CHACHAN, 2006).

As autoras ainda apontam a resistência a esse modelo, os discursos aqui analisados classificam a crítica ao excesso de intervenção como sendo uma demonização de tais práticas:

O problema é que há hoje grupos que dão menor atenção a esses graves problemas, optando por demonizar alguns procedimentos obstétricos, taxando-os indiscriminadamente como uma forma de violência. É o caso do uso da ocitocina, uma substância que ajuda nas contrações durante o parto, para que seja normal e ocorra uma dilatação correta que não leve a parturiente para outra via como a cesárea (FEBRASGO 01)

Nessa fala também se percebe a presença de ruídos na comunicação. Não se trata de demonização ou extinção total de procedimentos, mas da consideração sobre o uso apropriado e não abusivo. A pesquisa Nascer no Brasil (2014) mostra um panorama de abuso desses tipos de procedimentos: episiotomias desnecessárias e cesarianas sem indicação são rotinas da prática da assistência no Brasil, denominadas por Simone Diniz e Alessandra Chacham (2006) como o corte por cima (cesariana) e o corte por baixo (episiotomia). E problematizam:

Não há justificativa para a episiotomia de rotina: ela não traz benefícios nem para a mãe e nem para o bebê, aumenta a necessidade de sutura no períneo e o risco de complicações no sétimo dia pós-parto, trazendo dor e desconforto desnecessários (SIMONE DINIZ; ALESSANDRA CHACHAM, 2006, p. 85).

No emblemático artigo científico ―A vagina-escola‖, Simone Diniz et al.. (2016) mostram como a episiotomia de rotina é utilizada nas mulheres como treino para os residentes: ―(...) em muitas escolas médicas, a episiotomia é a primeira oportunidade dos médicos, de qualquer especialidade, de praticar habilidades cirúrgicas, cortando e suturando a vagina das mulheres pobres‖ (SIMONE DINIZ et al.., 2016, p. 255). Atentamos que quando falamos pobre, sabemos que a maioria é de negras e pardas. Conforme a fala de uma das mulheres que participavam da roda de diálogo do projeto de extensão coordenado por mim, supracitado, quando questionada sobre o possível motivo da violência obstétrica: ―Porque somos mulheres, pobres e negras‖.

Assim, sobre os procedimentos desnecessários, também aponta Lígia Sena (2016), colocam as mulheres em risco. A medicalização do parto, ao lançar toda sorte de intervenção médica patologizante, contribuiu com o crescente aumento das iatrogêneses (ILLICH, 1975). Ou seja, imprime uma contradição: em nome do controle do risco utilizam-se tecnologias invasivas que expõem a mulher a riscos e a doenças próprias da intervenção médica, conforme Ilich (1975).

Segundo Simone Diniz e Alessandra Chacham (2006), estes procedimentos inadequados, desnecessários e por vezes perigosos, contrastam com a chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE), que preconiza uma intervenção mínima e que esteja compatível com a segurança, na assistência ao parto é o modelo a se seguir no caso do parto normal, sendo interferido o processo natural do parto apenas em caso de complicações para a mulher ou para a criança.

Porém, apesar das evidências científicas e das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) (2014), no documento ―Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde‖, e do Ministério da Saúde (Política de Humanização do Parto em 2002, por exemplo) que apontam quais práticas são vedadas e quais procedimentos são considerados boas práticas, A Nascer no Brasil (2014), conforme supracitado, mostra que a rotina da assistência tem negado tais parâmetros de humanização do parto.

Diante do exposto, as noções de risco e de cuidado assumem conotações bem diferentes a partir das perspectivas interventiva e humanitária, o que faz também com que se altere a noção do que é violência obstétrica a partir dessas noções.

Outro ponto também em disputa em relação à assistência ao parto diz respeito às escolhas quanto ao local do parto, que também está relacionada com a noção de risco aqui apresentada entre os dois modelos.