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distinção entre homem e animal, relacionando-a diretamente com a educação, o que, de algum modo, acabou por consolidar o projeto moderno de educação 295

VA

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Há um deslocamento dessa perspectiva kantiana que está

fortemente conectado à vasta crise da Modernidade. E, mais uma vez, é

295 Para Kant (1996, p. 10), “o homem só se torna verdadeiro homem pela educação. A educação é a possibilidade de fazer o homem se desviar do mau e também se diferenciar da animalidade. O homem, enquanto ser vivo e racional, tende para o bem, mas precisa ser educado e disciplinado”. Além disso, para ele, “a educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Todas as gerações, de posse do conhecimento das gerações precedentes, estão sempre melhores aparelhadas para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais, na justa proporção e em conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guiar toda a espécie humana a seu destino. Entre as descobertas humanas, há duas dificílimas: a arte de governar os homens e a arte de educar. Desse modo, quem não tem disciplina ou educação é um selvagem. A selvageria consiste na independência de qualquer lei. A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias leis. [...] Assim, é a disciplina que transforma a animalidade em humanidade” (Kant, 1996, p. 12-16). Neste modo como Kant entende o papel da educação, considero que se manifesta um conceito de cultura subordinado ao de civilidade, o que lhe obriga a proceder uma diferenciação entre humanos e não humanos. Assim, a educação lhe aparece como o resultado de um aperfeiçoamento da civilização, como um processo de disciplinarizar mentes e corpos. Kant também se obriga a realizar uma distinção entre humano e animal. Tal distinção apareceria, na perspectiva de Bruno Latour, como um dos pilares fundamentais do pensamento moderno. Ao nos afastarmos da perspectiva de Kant e nos aproximarmos da de Rupert Read, bem como da do próprio Wittgenstein, consideramos que humanos e não humanos constituem e participam conjuntamente de diferentes ecossistemas ou formas de vida. Em cada forma de vida que conjuntamente constitui e se constitui, tanto humanos quanto não humanos afetam-se entre si, ao mesmo tempo em que são afetados pelo ecossistema ou pela forma de vida que os afeta. Nesta perspectiva, humanos, juntamente com outros animais, participam conjuntamente de diferentes formas de vida e não podem ser classificados ou hierarquizados com base em qualquer critério humano que estabeleça entre humanos e não humanos relações assimétricas de poder. Assim, do mesmo modo que humanos ou animais não têm ou

possuem corpos, mas são os seus corpos, eles não estão dentro ou fora da “natureza” – ou

melhor de suas formas de vida –-, mas são “natureza”, são suas formas de vida. Esse nosso modo de desconstruir as dicotomias que costumam ser estabelecidas – sobretudo no mundo acadêmico – entre natureza e cultura e entre humanos e não humanos nos afasta consideravelmente do ponto de vista kantiano, ainda apegado a dicotomias, tais como mente versus corpo, sensível versus inteligível, dentre outras. Assim, pensamos que o projeto educativo humanista kantiano não erra ao ver a educação como uma possibilidade de se disciplinar normativamente corpos humanos por meio de jogos de linguagem entretecidos em diferentes formas de vida. Acrescentaríamos, com base em Wittgenstein –, mas em identificar corpos humanos “selvagens”, isto é, que não se deixaram submeter a processos humanos civilizatórios com corpos anômicos ou indisciplinados, de se atribuir a estes últimos o estatuto de não humanidade ou de animalidade e sobretudo por ver no regime antropocêntrico-normativo civilizatório da modernidade o critério ético-político legitimador do estabelecimento de diferenças, hierarquias e relações assimétricas de poder entre as diferentes formas de vida.

preciso lembrar de que se trata de um deslocamento que se manifesta em uma dimensão teórica, intelectual, mas que não se reduz a uma questão – nem somente, nem mesmo preferencialmente – epistemológica. Muito mais do que isso, tal deslocamento é inseparável de uma dimensão política em que atuam forças poderosas em busca pela imposição de significados e pela dominação material e simbólica. Se o multiculturalismo coloca a ênfase no Humanismo e, em boa parte, na estética, o multiculturalismo muda a ênfase para a política. Se as atribuições de significados são sempre, e ao mesmo tempo, uma questão epistemológica e uma questão de poder – e, por isso, uma questão política -, é fácil compreender o quanto tudo isso se torna mais agudo quando se trata de significações no campo da cultura, justamente o campo em que hoje se dão os maiores conflitos, seja das minorias entre si, seja delas com as assim chamadas maiorias.

CT – Essa sua fala me remete à pergunta: quem é o analfabeto, o waga ou indígena?

Sobre isso, Hugo Jamioy (JH), indígena camëntsa, se coloca do seguinte modo:

JH

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Ndosertanëng

Ndás cuanttsabobuatm chë ndosertaná ca ¿ndoñ mondoben jualiamëng

librësangá o betiyëng? Canyëng y inÿeng

297 Nesta encenação, este poema foi originalmente declamado por Jamioy na língua

camëntsa. O mesmo autor, na referência (Jamioy, 2010, pp. 178-179), o traduz para o

espanhol, e. tendo como ponto de partida essa última tradução, o traduzi para o português da seguinte maneira:

Analfabeto

Quem você chama de analfabeto: aqueles que não sabem ler os livros ou a natureza?

Uns e outros algo e muito sabem! Durante o dia,

eles entregavam ao meu avô um livro e falavam que ele não sabia nada. À noite, ele se sentava junto ao fogão. Uma folha de coca suas mãos enrolavam e seus lábios diziam o que nela se via.

batsá y bëtscá mondëtatsëmb Bëneten

atsbe bëtstaitá tmojuantsbuaché canÿe librësá

tmonjuayan tonday condëtatsëmbo ca Ibetn

shinÿoc jotbeman chabe cucuatsiñ

coca tsbuanach jtsebuertanayan uayasac jtsichamuan ndayá chiñ bnetsabinÿnan.

CT – As palavras de Jamioy, a meu ver, nos colocam diante do desafio de nos

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