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Vimos fazendo referência à fala em seu dizer e não dizer. O que não é falado e nem dito está implícito. O implícito é o elemento especulativo reflexivo que articula o pensamento

e a linguagem e simultaneamente a interpretação na fala em vista do entendimento no diálogo sobre a coisa em questão.

A linguagem em si mesma é especulativa enquanto realiza sentido na fala. Na fala se articulam o dito e a infinidade de não ditos. No dito está implícito o não dito. Estrategicamente, em Verdade e Método I, essa estrutura básica da linguagem está situada após a dialética da palavra, no item “a linguagem como centro e sua estrutura especulativa”, em que Gadamer apresenta a dimensão pré-reflexivo da palavra e sua relação com o ser. Segue-se duas afirmações a partir das quais se esclarece o dito e não dito como estrutura especulativa da fala no diálogo:

o dizer que alguém quer dizer, o entender-se, mantém o dito em uma unidade de sentido com uma infinitude de coisas não ditas e o que fala se comporta especulativamente enquanto que suas palavras não copiam o que é, senão que expressam e dão à palavra uma relação com o conjunto do ser.

Ressalta-se da primeira frase a expressão ‘o dizer [...] mantém o dito em uma unidade de sentido com uma infinitude de coisas não ditas’ e da segunda ‘comporta especulativamente [...] palavras não copiam o que é [...] expressam [...] relação com o conjunto de ser’. O comportamento especulativo se refere ao uso da fala na linguagem. Na fala usam-se palavras significativas pré-reflexivas que não copiam o que é, mas enquanto fazem parte da realização de sentido na fala, possuem uma relação com o ser e, portanto, expressam sentidos e são capazes de significação. As palavras não reproduzem o ser, mas o expressam. A virtualidade da palavra não permite que o sentido seja apreendido enquanto tal, mas o expressa, pois ela mesma faz parte desse sentido. A palavra desse modo não reproduz totalmente o ser, porém mantém a abertura que conduz a ele. A mesma estrutura dialética dialógica especulativa da palavra Gadamer identifica no diálogo em seu uso na fala pela relação do dito e do não dito. A instância de significação prévia que antecede o dito mantém-se implícita nele, por isso que o dizer mantém o dito numa unidade de sentido com uma infinitude de coisas não ditas.

Há uma apresentação e um esquecimento no dizer. Dizer algo é não dizer tudo. O dito é a realização de esquecimento na linguagem. “O dizer é a ação de auto-esquecimento mais

radical que podemos realizar como seres racionais”6. Pela ação do esquecimento no dito, Gadamer situa a linguagem à altura da razão para pensar o ser, ou seja, a linguagem possui as condições de possibilidades especulativas capazes de aproximar-se dos sentidos das coisas. É isso que ele afirma ao criticar o esquematismo realizado na linguagem e ao postulado da incapacidade da linguagem de dizer totalmente os sentimentos:

toda crítica que nos leva mais além do esquematismo de nossas frases com o fim de entender, encontra a sua vez a expressão na forma linguística. Nesse sentido a linguagem rebate qualquer argumentação contra sua competência. Sua universalidade mantém-se à altura da razão (GADAMER, 2003a, p. 482).

O dito, nem pela linguagem, nem pela razão é capaz de dizer tudo. Desse modo, tanto a linguagem quanto a razão encontram seus limites ali onde lhes falta a palavra. Mas ao mesmo tempo tem suas possibilidades. A linguagem e a razão são finitas. Cabe ressaltar ainda que a universalidade da linguagem está à altura da razão por sua capacidade especulativa em seu uso na fala, o que está cristalizado em conceitos ou proposições lógicas são retomados a cada vez na linguagem pela fala para que possam dizer algo. São reintroduzidos no jogo do diálogo. Na interpretação do slogan gadameriano “ser que pode ser compreendido é linguagem”, Rohden situa no dito e não-dito o enlace ontológico e metafísico da hermenêutica da seguinte forma:

nessa afirmação, encontramos a imbricação entre ontologia e metafísica, uma vez que a ontologia trata do ser enquanto ser, enquanto estrutura argumentativa, e a metafísica manifesta-se na busca de sentido da vida que transcende o nível da pura imediatidade e carrega a tensão irresolúvel entre o dito e o não-dito no medium da linguagem (ROHDEN, 2002, p. 286).

O não dito está implicado no próprio dizer. Gadamer afirma em algum lugar que o que importa à hermenêutica é saber o quanto fica de não dito quando se diz algo. A tarefa da hermenêutica está voltada para essa dimensão da fala, ou seja, para o implícito. O que está implícito na fala coloca em movimento a dimensão interpretativa da compreensão em ação,

6 Para ilustrar esse fenômeno da linguagem Gadamer cita um exemplo de uma conversa com sua filha: “ela tinha

que escrever a palavra morango e perguntou como se escreve: quando lhe disse como fazer, ela observou: “engraçado, quando a escuto desse modo, já não consigo mais compreender a palavra. É só quando a esqueço que estou de novo nela.” (GADAMER, 2004, p. 233).

através do que expressamente em palavras está dito, ou o horizonte situacional no qual foi dito e o contexto situacional do qual faz parte o dito. Essas formas são pistas, direções indicadas pelo dito para as quais deve-se voltar o interprete se quer compreender o não dito. São vias de acesso ao não dito, além do ‘ouvir imperturbável’ que para Gadamer é fundamental pelo seu caráter de abertura. É o implícito na fala que põe em ação o movimento especulativo da linguagem. O implícito é o propriamente especulativo na fala quando se diz algo. Implícito quer dizer, nesse sentido, ausente presente. O filósofo e lingüista pragmático Paul Grice cunhou a expressão “implicatura conversacional” para designar os significados implicados na fala quando alguém diz algo. E na interpretação do filósofo Marcelo Dascal “o (s) significado (s ) implícito(s) só pode(m) ser revelado(s), descobertos (s) ou conjeturados (s), apelando-se conjuntamente ao que é linguisticamente expresso e ao ‘contexto’. Tanto a hermenêutica quanto a pragmática se servem abundantemente da noção de contexto” (DASCAL, 2005, p. 644). Contudo, para Gadamer o dito deve ser compreendido a partir da coisa em questão, a partir da coisa mesma em jogo no diálogo. Só assim a hermenêutica pode superar o subjetivismo e ao mesmo tempo possibilitar a fusão de compreensão e interpretação na linguagem. É no elemento mínimo da dimensão especulativa conversacional que compreensão e interpretação se fundem, possibilitando a universalidade da hermenêutica.7 Tanto a hermenêutica quanto a pragmática encontram na dimensão do implícito ou da ‘implicatura conversacional’ o elemento especulativo essencial à linguagem em seu uso; e no dito, no contexto, na situação, meios de compreender o não dito. Mas só a hermenêutica toma o escutar e a coisa mesma como caminhos de compreensão do sentido.

Cabe ressaltar ainda que nesta estrutura mínima da linguagem não acontece síntese, como em Hegel, na interpretação de Gadamer. Existe, contudo, uma abertura infinita dada pelo implícito, de modo que a cada vez que se compreende algo que é dito na fala, a linguagem já se adiantou na produção de sentido e, portanto, será preciso interpretar novamente, o que cada vez se diz. Pois isso se deve à estrutura prévia da linguagem e do mundo que antecede todo dizer.

7 Por já se ter feito várias vezes referencias às passagens de Verdade e Método I em que Gadamer situa a

4.7 O ESCUTAR COMO ABERTURA E PERTENÇA AO ACONTECIMENTO DA