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Diversidade nas Figuras de Diferentes Caracteres

2.1 PERPETUAR WATTEAU: FIGURAS DE DIFERENTES CARACTERES E O

2.1.2 Diversidade nas Figuras de Diferentes Caracteres

O presente item pretende comentar, de forma panorâmica, os principais temas encontrados nas Figuras de Diferentes Caracteres. Não se trata de uma análise de figuras específicas, mas de possuir uma ideia geral do tipo de imagens e da temática encontrada nesse conjunto de gravuras. Conforme comentamos anteriormente, os desenhos de Watteau possuem grande diversidade temática, mas dedicam-se mais à representação da figura humana. As gravuras a partir de seus desenhos corroboram essa afirmação. Ao folhear os dois tomos que compõem as Figuras de Diferentes Caracteres, nos deparamos com a ampla variedade do universo gráfico do artista, mas o inesperado foi encontrar também uma certa coesão.

A fim de melhor refletir, identificar e tipificar as figuras desse amplo conjunto, formado pelos dois tomos da publicação ora analisada, recorremos a algumas categorias que pareceram pertinentes. Para tanto, realizamos uma quantificação, visando a classificar cada uma das gravuras segundo critérios recorrentes no conjunto e que poderiam auxiliar em relação ao problema de pesquisa proposto. Era preciso verificar a relevância do traje no conjunto de imagens disponíveis. Antes de diferenciar figuras trajadas de figuras nuas, que, assim como no repertório geral da obra do artista, constituem uma exceção, foi necessário observar a dimensão que as figuras trajadas ocupavam em cada imagem. Afinal, elas podiam estar em relação a um fundo de paisagem, ou ser o elemento único e central da imagem e raramente inexistir. É oportuno lembrar que mesmo as figuras nuas estabelecem um diálogo com a questão da vestimenta, devido à sua ausência, assim como com a representação do corpo.

As gravuras podem ser divididas em três grandes grupos: as figuras isoladas, as figuras na paisagem ou apenas paisagens sem figuras. Por figuras isoladas entendemos

aquelas que aparecem sem um fundo de paisagem ou cenário. Representadas desse modo, possuem poucos ou nenhum elemento além daquilo que carregam junto ao corpo. Podem conter um esboço de pedra, chão, espaldar de cadeira, e até mesmo portarem algum objeto nas mãos. As figuras podem ser identificadas, com diferentes níveis de dificuldade, através dos trajes, de seus adornos, do seu gestual e de eventuais objetos que portam. Nesse caso, portanto, os trajes são essenciais para a identificação do indivíduo.

As figuras que se encontram em um fundo de paisagem possuem diferentes graus de relevância em relação ao fundo. Significa que, em algumas ocasiões, as figuras têm uma dimensão e uma importância dentro da paisagem notórias (imagem 45), enquanto que, em outros casos, elas aparecem em tamanho diminuto (imagem 46). Alguns poucos exemplos apresentam figuras em um cenário interno, como uma oficina de sapateiro ou um boudoir (imagem 47). Existem, ainda, gravuras que representam apenas paisagens, sem a presença de pessoas ou de animais (imagem 48).

Considerando apenas as figuras isoladas, podemos fazer outras subdivisões. Em algumas gravuras, aparece somente o contorno de uma cabeça ou ainda bustos e figuras de meio corpo, além de figuras de corpo inteiro. Muitas delas possuem um estilo semelhante ao do retrato, enquanto outras aparecem de costas ou de perfil. A principal diferença em relação ao retrato é que a identidade pessoal não parece ser um dos objetivos da representação.

Desse modo, as pessoas representadas por Watteau também podem ser divididas em tipos sociais, os quais são reconhecidos principalmente por suas vestimentas e atitudes. Existem jovens damas e homens elegantes, mas também personagens populares, como fiandeiras, savoyards, camponeses e muitos soldados. Dentro dos tipos sociais, encontramos alguns elementos étnicos, principalmente persas. Além destes, temos a representação de uma figura comum na arte italiana tanto do século XVI como em trabalhos de Veronese (imagem 49) e no século XVIII em Tiepolo (imagem 50), que seria o servo negro (imagem 51).

Além dos tipos sociais, categorizamos outro grupo importante: os tipos teatrais, formado por personagens da comedie francese ou da comédia dell’arte italiana. Alguns são facilmente reconhecíveis, como o pierrô (imagem 52) e o briguela (imagem 53). Temos ainda alguns atores em trajes de peregrinos (imagem 54), ao passo que outros estão realizando passos de dança (imagem 55). Além deles, estão presentes inúmeros músicos e musicistas com seus instrumentos. Parte dos integrantes das imagens podem

ser reconhecidos como atores pela peculiaridade de seus trajes; no caso das mulheres, pelo uso de acessórios incomuns no dia a dia, como o rufo (tipo de gola plissada) colocado no pescoço, mas sem ser costurado no vestido. Este detalhe lembra os trajes italianos do século XVI.

Encontramos, ainda, raros tipos alegóricos ou mitológicos. Eles seriam pastores e pastoras idealizados, ao estilo das pastorais do século XVIII, assim como algumas imagens de deusas ou ninfas e também cupidos. Estes personagens quase nunca aparecem isolados, mas em um cenário que auxilia na sua identificação. (imagem 56)

Também podemos dividir as figuras humanas representadas nas Figuras de Diferentes Caracteres por sexo e por faixa etária. Neste caso, encontramos homens e mulheres, jovens, de meia idade ou idosos, e temos crianças, tanto meninos quanto meninas. Cada figura encaixa-se em mais de uma dessas categorias como, por exemplo, busto de uma jovem costurando (imagem 57). Trata-se de uma figura isolada; de uma figura entre cabeça e meio corpo, lembrando retrato; de um tipo social, a costureira; de uma mulher jovem. Vale ressaltar que os títulos foram dados de acordo com o que aparece na imagem. Esta é uma prática comum daqueles que trabalham com tais gravuras, uma vez que elas não receberam títulos oficiais.

Algumas vezes a quantificação torna-se necessária para a melhor compreensão do conjunto das imagens em análise. Assim, podemos ter uma noção de quais espécies de figuras são mais frequentes ou são verdadeiras exceções. Através dos dados, por exemplo, constatamos que as figuras isoladas são maioria nos dois tomos das gravuras. Percebemos que os tipos sociais, por englobar um número maior de características, superam os tipos teatrais, em uma razão nem tão díspar. Podemos perceber, ainda, que o número de figuras femininas e masculinas é praticamente equilibrado, ao passo a maioria esmagadora é constituída de pessoas jovens.

É preciso conhecer as fontes para a criação dos desenhos de Watteau e que possam nos auxiliar a compreender os temas presentes nas Figuras de Diferentes Caracteres. Apesar da afirmação de Gersaint de que o amigo “ama muito a leitura”, na sua produção não se encontram muitas referências claras extraídas dos livros. Ele não era um erudito que procurava em sua biblioteca um repertório de temas para seus desenhos e quadros, muito menos uma matéria de reflexão sobre os aspectos teóricos de sua arte.

Na introdução da obra sobre Watteau realizada por Dacier e Vuaflart nos anos vinte, eles apontam o que acreditam serem os temas mais importantes para o artista:

“Trataremos das fontes principais de inspiração de Watteau, a saber a moda e o teatro”329. As Figuras de Diferentes Caracteres confirmam essas referências, pois notamos a importância dada ao traje, e, por conseguinte, à moda. Além disso, são abundantes as referências teatrais. Existe uma discussão importante, estabelecida entre aqueles que comentaram inicialmente a obra do artista, de que talvez seu trabalho não possua propriamente uma temática definida. No século XVIII isso não era visto com bons olhos. Conforme recordado por Temperini, o Conde de Caylus, que foi um grande admirador da claridade narrativa e expressiva ilustrada no século precedente por Poussin e Le Brun, afirma que, com muito poucas exceções, “suas composições são sem objeto”330. Podemos perceber traços dessa linha interpretativa ainda em estudos relativamente recentes:

No fundo, em Watteau, o tema é a aparência e o que ele traz justamente de novo, é a abstração mesma do sujeito (tema), expressa pela poesia pura. Suas belas silhuetas decoradas de cetim são os elementos de um poema, ou as notas de uma sinfonia, e elas não nos retêm a não ser pela ordem na qual se inscrevem, e jamais pelo sujeito, eternamente o mesmo, e sem interesse particular331.

Apesar de concordar que as composições do artista possuam um apelo poético e musical, discordamos que o sujeito ou tema seja sempre o mesmo e careça de interesse. Afinal, Watteau nos apresenta figuras humanas extremamente diversas, desde uma jovem dama elegante que segura seu vestido volante e que pode ou não ter um rosto, até um humilde savoyard esfarrapado, mesclando uma expressão de tristeza e doçura no olhar. Isso sem considerarmos os incontáveis tipos teatrais, que nos transportam para os palcos mambembes do século XVIII. Ainda assim, o trecho reforça a questão da presença e a importância dos trajes na obra do artista, afirmando que a silhueta é dada pelo tecido.

A observação das figuras a partir da natureza, e principalmente das paisagens muito vivas do artista, demonstram a sua dedicação ao desenho. É novamente Caylus quem nos lembra que Watteau empregava seus raros momentos de liberdade “para desenhar a partir da natureza”. No início de seu período em Paris, ele frequentou alguns outros artistas parisienses de origem flamenga, completando a sua cultura visual nos comerciantes de gravuras da rua Saint-Jacques. Apesar de Watteau ter praticado pouco a

329 DACIER; VUAFLART, op. cit., p. 3. 330 TEMPERINI, op. cit., p. 12.

arte da gravura, ele a conhecia bem e, desta maneira, seus desenhos puderam ser transcritos para esse suporte sem grandes perdas.

A trajetória de Watteau ajuda a explicar, em parte, a sua dedicação ao desenho. Um de seus mestres, que se tornou célebre pelos desenhos, foi Claude Gillot, que utilizava técnicas variadas e inspiração livre e, por isso, acabou se tornando um especialista nas cenas de gênero. Ele nutria uma verdadeira paixão pelo teatro popular, que podemos notar em um dos raros quadros que chegaram até nós, Les deux carrosses (imagem 58). Essa pintura nos revela a que ponto esse artista percebera as potencialidades pictóricas oferecidas pela arte dramática de seu tempo. O quadro nos oferece uma interpretação um pouco divertida, mas prosaica do universo teatral. Gillot tornou-se um ilustrador bastante superficial da commedia dell’arte, de onde retira, acima de tudo, os aspectos satíricos e burlescos332. Diferentemente dele, Watteau extrai sentimentos profundos dos personagens do teatro, assim como uma certa nota melancólica, uma beleza mais doce que burlesca.

Alguns autores afirmam que os nus de Watteau são raros. Apesar disso, chegaram até nós exemplos muito importantes. Sua visão sobre a nudez feminina parece distante de todo o idealismo acadêmico e do controle moral. É um nu picante e sedutor, mas nunca vulgar. Às vezes, ele aborda temas um pouco licenciosos, como a mulher deitada e nua, onde o corpo feminino é tratado com uma sensualidade distante de qualquer tipo de vulgaridade, bem como uma ligeira nota de humor que aumenta o seu charme. É o puro bom humor dos sentidos que celebra quadros como La toilette, onde o nu voluptuoso é tratado como objeto de deleite para os olhos, longe de qualquer pretexto mitológico ou pretensão moral. Nas Figuras de Diferentes Caracteres, temos poucos exemplos de nus, entre os quais as ninfas das águas (imagem 59) e a mulher com camisa de baixo (imagem 60), que não está nua, mas insinua os seios ao observador. O primeiro exemplo é um nu mais etéreo, e o segundo mais mundano. Contudo, é possível notar traços comuns nos dois, entre eles a displicência da nudez feminina aos olhos do observador. A sedução está nos pequenos detalhes e, particularmente no caso das ninfas, no olhar lançado para fora da imagem.

Entre os tipos desenhados pelo artista, um que mereceu destaque e foi amplamente elogiado foi a mulher. Os desenhos de cabeças femininas encontram-se

entre os mais apreciados. Devemos à Watteau alguns dos mais belos nus femininos da arte ocidental:

Não somente ele amava desenhar os corpos femininos, mas também sentimos sua constante atração pela moda, pela coqueteria, pela elegância feminina, pela carne feminina, pela sedução da mulher, pela intimidade feminina. Não há nada de obsceno ou perturbador em Watteau, nada é cru, nenhum subentendido audacioso, existe em troca uma simplicidade, uma naturalidade, uma franqueza, uma facilidade, um respeito da mulher e uma nobreza devido a ele pessoalmente que lhe distingue de tantos pequenos mestres do século XVIII. Antes de tudo há em Watteau um pudor333.

Esta citação nos revela o encanto com que o artista tratou a figura da mulher e do seu universo. A delicadeza e a atenção dedicadas à moda feminina e ao comportamento coquete das figuras era uma maneira de ser sedutora e elegante no século XVIII. Watteau invadiu a intimidade da mulher, que sai do banho, que se arruma defronte o espelho, que lê recostada em um divã. Quando ele desnuda a mulher, faz com graça, com picardia. A consistência dos corpos é verossímil e delicada. Concordamos que seus nus femininos nada têm de agressivos ou vulgares, mas não enxergamos em Watteau tanto pudor. A sutileza de um olhar ou de um movimento da boca, o fato de parecer ser observada nua e manter um ar de pretensa indiferença, todas eram artimanhas da sedução feminina típicas do período.

Uma das temáticas que mais chamam a atenção no conjunto das Figuras de Diferentes Caracteres são os tipos populares. Entre eles, destacam-se os savoyards – pessoas vindas do interior para tentar a sorte na capital e que acabavam nas ruas como pedintes. Vestidos em seus trapos, pediam moedas tocando música nas ruas de Paris. Eles são descritos por Watteau com uma evidente simpatia, mas sem jamais cair na miserabilidade e, assim, conservam uma relativa dignidade. O artista vê beleza e musicalidade no mendigo e não denuncia a sua miséria.

Foram justamente os aspectos mais inovadores de seu gosto que os gravuristas melhor interpretaram: as fêtes galantes, a comédia italiana e as cenas da vida quotidiana. Com uma veia realista, Watteau pintou o povo simples de seu tempo: jovens Saboianos em busca de emprego, fiandeiras da campanha, corpos de guarda e acampamentos militares. Ele renovou o gênero rústico com a pintura de duas festas interioranas, O casamento camponês e L’Accordée de village. No entanto, os camponeses de Watteau eram elegantes e vestiam trajes de seda. As casas e a natureza

evocam voluntariamente mais a Itália, berço de Virgílio, do Pastor Fido e da poesia pastoral, do que as planícies do Norte. À rusticidade dos pintores flamengos, como Teniers, contrapõe-se a fofura de Watteau. Não podemos olvidar que, como anteriormente mencionado, quarenta anos mais tarde, no alvorecer do neoclassicismo, Diderot dirá que daria “dez Watteau por um Teniers”334.

Alguns autores creditam a existência de referências mitológicas em sua obra como uma estratégia para ser aceito na Academia. Depois que aconteceu tal aprovação, os cupidos desapareceram e não restaram na cena nada mais senão figuras em trajes modernos, que ensaiavam um passo de dança, ao som da gaita ou do violão, entre os murmúrios de conversas ou o riso das crianças. É uma requintada urbanidade que emana dessas figuras de gestos contidos, sempre prontas a se absorver em um diálogo cortesão, ou a contemplar a natureza, algo que era uma moda nova, de grandes consequências.

Watteau desempenhou o seu papel, assim como o Recueil Jullienne, na emergência de uma sensibilidade nova. Ele apresentou tipos sociais e teatrais vistos por um novo ângulo, portadores de uma visão e de uma importância renovadas. Prestou também seu tributo à beleza das paisagens, bem anteriormente à efusão rousseaunista e a sua valorização da natureza.