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A DIVERSIDADE DOS USOS LINGÜÍSTICOS

No documento MARINA COELHO MOREIRA CEZAR (páginas 67-78)

3. A IMPORTÂNCIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA PARA O ENSINO

3.1. A DIVERSIDADE DOS USOS LINGÜÍSTICOS

A conversa era para teias de aranha. [...]

-“Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado...faz-me-gerado..falmisgeraldo... familhas-geraldo...?”

(Guimarães Rosa – Famigerado)

A não ser em casos muito específicos de comunidades sem escrita (ágrafas), extremamente isoladas, que praticamente nunca tiveram contato com o mundo exterior, não há comunidade de falantes que não reconheça a importância do aprendizado da leitura e da escrita para o seu desenvolvimento.

A despeito dessa consciência, no entanto, não é raro o professor de língua materna, no dia-a-dia escolar, deparar-se com o que considera um certo desinteresse, uma certa indiferença e até mesmo uma certa rejeição ao estudo de língua materna por parte do aluno.

Perplexo e bastante preocup ado com essa situação, o professor se indaga: como despertar no aluno a consciência de

que a língua é um bem cultural intrínseco à sua identidade?;

como fazê-lo compreender que a ampliação do seu saber lingüístico está intimamente comprometida com a descoberta de novos horizontes para compreender o mundo e, principalmente, a si próprio?; como levá-lo a refletir sobre o seu uso lingüístico, desenvolvendo a sua capacidade criativa e aprimorando a sua competência lingüística?; como desenvolve-lhe o gosto pela leitura e quebrar a resistência (ou temor) em escrever, de maneira geral, e mesmo em falar, especialmente em situações mais específicas, ou mais formalizadas, como na exposição oral de suas idéias diante de seus colegas, apresentando um trabalho, por exemplo?; como intervir nas suas aulas, removendo os entraves que, mesmo depois de tantas propostas e reformulações pedagógicas, continuam dificultando o ensino de Língua Portuguesa, comprometendo-lhe a eficiência?

A verdade é que, conquanto o desenvolvimento dos estudos lingüísticos, principalmente nas últimas décadas, tenha avançado bastante, as práticas de ensino na sala de aula, infelizmente, não têm mudado substantivamente.

Ainda é bastante comum estudar-se a língua materna segundo uma perspectiva prescritiva, centrada em uma metalinguagem gramatical que nem sempre é muito bem compreendida e que acaba limitando os processos lingüísticos

a simples unidades e fatos que necessitam de identificação e classificação, ignorando -se a análise de seu funcionamento, de seus usos.

Privilegia-se o estudo de um sistema abstrato, onde exemplos soltos, frases artificiais, pré-fabricadas sob medida, só ganham vida nas páginas das chamadas gramáticas pedagógicas e dos manuais escolares, verdadeiras cartilhas, que o aluno ac aba decorando para obter aprovação no final do ano letivo.

Os múltiplos e variados saberes, valores, culturas e histórias dos diversos grupos que compõem uma comunidade de fala, da qual faz parte tanto o professor quanto o aluno, são desconsiderados, e a comunidade de falantes é caracterizada como uma entidade monolítica, homogênea, uniforme que, ao se expressar, em qualquer circunstância, usa uma língua unitária, estável, perfeitamente acabada.

Preso a uma norma modelar, idealizada, artificial, esse tipo de ensino desqualifica, estigmatiza, anula a pluralidade dos vários textos50 que fazem parte da realidade lingüística de todos os indivíduos nas mais distintas instâncias sociais.

Não reconhece que, na unidade idiomática do português, como

5 0 Para Coseriu, discurso e texto são termos que correspondem a modos distintos de se encarar a fala: o texto é o resultado ou produto (a obra), enquanto o discurso é uma atividade livre e finalística.

na de todas as demais línguas históricas51, existe o multifacetamento, a heterogeneidade, as diferenças dialetais, fruto da diversidade dos fatores geográficos, sociais e circunstanciais que condicionam o falante.

Refletindo uma concepção de mundo fortemente marcada pela regra, pelo autoritarismo, pelo preconceito e pelo reducionismo, essa visão dialetofágica (Uchôa, 2000, p. 71) de ensino anula a reflexão sobre os usos lingüísticos, legitimando uma única língua - a das camadas reconhecidamente privilegiadas, detentoras de poder – como a única correta, a única certa: a superior.

Dessa forma, o aluno, tendo sua fala discriminada, desrespeitada, desqualificada, considerada “pobre”, inferior, deficiente, errada, sente-se uma pessoa estranha, não pertencente ao processo educativo, e reage a essa tentativa de apagamento de identidade, a essa exclusão, calando-se, suspendendo, assim, a sua fala estigmatizada, o que é interpretado, pelo professor, como desinteresse, indiferença, apatia.

Essa não aceitação da palavra do outro, por ser diferente, distanciada do padrão valorizado, é um dos maiores desafios para o professor. Como aponta Geraldi:

5 1 Língua histórica é aquela constituída historicamente como unidade ideal e identificada como tal pelos seus próprios falantes e pelos falantes de outras línguas (Coseriu, 1980, p. 110).

Devolver e aceitar a palavra do outro como constitutivas de nossas próprias palavras é uma exigência do próprio objeto de ensino. A monologia própria dos processos escolares, que reduz o mundo ao pré-enunciado por determinada classe social, é um dos obstáculos maiores interpostos pelo sistema escolar de reprodução de valores sociais à “eficiência” do próprio sistema (2002, p. 54).

Por isso, como vêm advertindo vários estudiosos (Silva, 1996; Geraldi, 1997; Coseriu, 2002; Uchôa, 2002), é imprescindível investir na formação lingüística do professor, tratá-la com mais atenção, valorizá-la, já que a compreensão mais ampla e consistente dos processos lingüísticos que constituem a atividade de fala servirá como antídoto contra as idéias pré-concebidas que tanto têm entravado a eficácia do trabalho docente.

Ao desenvolver seus estudos sobre competência lingüística, Eugenio Coseriu (1992, p. 37) afirma que uma língua histórica, como o português, por exemplo, não se constitui de um sistema único, mas do entrelaçamento, da tessitura, de diferentes sistemas (um diassistema), com seus diversos dialetos, níveis e estilos que se diferenciam e se uniformizam fundamentalmente em três aspectos:

TABELA 6

LÍNGUA HISTÓRICA

ASPECTOS ESPACIAIS SOCIOCULTURAIS EXPRESSIVOS

DIVERSIDADES

DIATÓPICAS

Diferentes dialetos ou falares.

Dialeto carioca, dialeto nordestino.

DIASTRÁTICAS

Diferentes níveis de língua.

Nível popular, nível do estrato social mais privilegiado.

DIAFÁSICAS

Diferentes estilos de língua.

Estilo formal, estilo informal, estilo literário, estilo familiar.

UNIFORMIDADES

SINTÓPICAS OU DIALETOS

Um só região geográfica, um

dialeto.

SINSTRÁTICAS OU NÍVEIS DE LÍNGUA

Um só estrato sociocultural, um nível

de língua.

SINFÁSICAS OU ESTILOS DE LÍNGUA

Uma só situação expressiva, um estilo de língua.

Excetuando situações bem particulares, em comunidades pequenas e muito homogêneas, em que a dinâmica social, a vida cultural, no sentido antropológico, é extremamente restrita, como ocorre com algumas línguas indígenas brasileiras, ameaçadas, ou bem próximas, de extinção, como a língua parintintín (da família tupi-guarani), com 13 falantes, a língua júma (também da família tupi-guarani), com 9 falantes, a língua sabanê (da família nambikyara), com 20 falantes, a

língua cararaô (do tronco macro-jê), com 26 falantes52, e outras, é praticamente impossível uma língua não apresentar nenhuma diversidade diatópica, diastrática ou diafásica.

Na realidade, não há língua viva sem variação diafásica, uma vez que não se pode usar unicamente um estilo em todos os tipos de situações. Existem circunstâncias que exigem mais formalidade (um texto acadêmico escrito, um discurso oficial, v.g.), nas quais o comportamento lingüístico é mais refletido, ao contrário de outras em que a informalidade prevalece (um bilhete para um amigo; uma conversa familiar) e o uso lingüístico é mais distenso.

De acordo com as comunidades, as diferenças diafásicas entre língua falada e língua escrita, língua usual e língua literária, linguagem corrente e linguagem cerimoniosa, o modo de falar familiar e o modo de falar público, e. g., às vezes são notáveis, e, mesmo em uma só situação expressiva, essas diferenças podem tornar-se significativas. Na língua literária, por exemplo, há diferenças marcantes entre a poesia e a prosa, entre a poesia épica e a lírica, e assim por diante (Coseriu, 1980, p.111).

Não se pode esquecer que, como a língua histórica é um ideal, uma abstração da qual o falante não pode abarcar a sua

5 2 Disponível em:

<http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/indios/tira1.htm>. Acessado em 20 jun. 2005.

totalidade, sempre se estará utilizando ou descrevendo um determinado tipo de língua (português, francês, italiano, alemão), em um determinado tempo (sincronia), em uma determinada região (dialeto), de uma determinada classe social (nível de língua), em uma determinada situação de fala (estilo de língua).

Somente a língua funcional, isto é, a língua que funciona no falar, “realizada” nos discursos (ou “textos”) (Idem, ibidem, p. 114), apresenta homogeneidade quanto ao dialeto, ao nível e ao estilo de língua, sendo, assim, ao mesmo tempo sintópica, sintrástica e sinfásica.

A cada momento do discurso se apresenta sempre uma língua funcional determinada (como a usada em uma petição judicial, ou em um texto que relate uma experiência científica), mas são bastante comuns os casos “plurilíngües”, nos quais, em um mesmo discurso, pode ocorrer mais de uma língua funcional, como acontece em um discurso narrativo em que narrador e personagens apresentam modos de falar distintos.

No ensino, nos níveis fundamental, médio e superior, para ser produtivo e conseguir quebrar a forte barreira dos preconceitos, o professor terá de trabalhar, conscientizando o aluno da existência da variabilidade lingüística, levando-o a compreender as circunstâncias em que a mistura dos

dialetos, dos níveis e dos estilos deve ser evitada ou, pelo contrário, deve ser conscientemente mantida (Idem, ibidem, p.

117).

Assim, o saber lingüístico do aluno se ampliará. Ele reconhecerá que, na variedade dos usos lingüísticos, há uma variedade, considerada padrão, eleita “pela própria comunidade como a de maior prestígio, que reflete um índice de cultura a que todos pretendem chegar” (Preti, 2003, p.31), por apresentar maiores possibilidades expressivas que um uso local e ser instrumento de ascensão social, pois é usada nos documentos oficiais, na ciência, na tecnologia, etc., mas que, além dessa, existem outros novos modos ou estratégias de dizer, os quais, dependendo dos interlocutores, da intencionalidade e da situação, são também (ou até mais) perfeitamente adequados. Reconhecendo na fala do outro a sua própria fala, o aluno não se sentirá mais um estranho, um excluído.

Na comunidade lingüística do Brasil, a língua histórica, em decorrência da sua própria formação, como se viu anteriormente, com a chegada de diferentes grupos de imigrantes que se fixaram em partes distintas do país, da vastidão de seu território e da acentuada disparidade social econômica e cultural, apresenta uma notável diversidade de línguas funcionais.

Ensinar é criar espaços para que os saberes experenciados, pelo professor e pelo aluno, dialoguem na sala de aula com outros “saberes historicamente sistematizados e denominados ‘conhecimentos’” (Geraldi, 2001, p. 21).

É importante que tanto o professor quanto o aluno entendam e respeitem essa dialogicidade e que o discente compreenda que a língua nunca está feita, ela não é um produto (ergon) pronto, acabado, mas uma atividade (enérgia) produtiva, quer dizer, um operar, que tem um resultado traduzido em obras ou produtos53.

Posto, na sua natureza essencial, a linguagem seja uma atividade, é-lhe igualmente essencial o produto mesmo que dela resulta.

Observe-se que a língua pode ser também apreendida introspectivamente (interiormente), afinal, ninguém pode negar a sua qualidade (condição) de falante. Assim, quando uma pessoa fica, com ela mesma, em dúvida sobre uma palavra ou construção, há o recurso de consultar um dicionário ou uma gramática.

5 3 Ao discutir a relação entre a atividade verbal e os textos, Carvalho (1967, p. 223), esclarece que Coseriu toma produto (werk) em dois sentidos: 1) como texto; 2) como o próprio sistema da língua (em que o ato se realiza) “criado” em e por cada ato de fala do indivíduo.

É como atividade livre e, portanto, criativa que ela constantemente se (re)nova, se (re)cria, em um permanente (re)fazer-se e que, conquanto seja uma atividade que se repete ou pode se repetir, paradoxalmente ela nunca é perfeitamente idêntica: sempre se diz algo que nunca foi dito antes. Logo, não há, pode-se dizer, donos da língua, mas usuários da língua.

Só dessa maneira, reconhecendo a importância da diversidade das línguas funcionais que constituem o Português do Brasil e os seus diferentes usos e se recusando a legitimar uma postura reducionista, monoglota, que valoriza artificialmente uma única língua funcional e desqualifica todas as demais, é que o ensino de língua materna conseguirá reverter o quadro de resultados desastrosos que as mais recentes pesquisas sobre a construção de competências em língua portuguesa vêm revelando.

No documento MARINA COELHO MOREIRA CEZAR (páginas 67-78)

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