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2.3 Análise Temática

2.3.3 Divisão sexual do trabalho

A observação de que o trabalho doméstico enquanto atividade socialmente naturalizada como feminina compõe um dos elementos determinantes para o retardo na equiparação jurídica da categoria, apresentou-se constante dentro dos discursos envolvidos no debate. Além disso, há o ressalto do contingente de mulheres que se ocupam desse ofício como apelo para o rompimento de uma infundada discriminação representada na privação de direitos vivenciada pelas trabalhadoras domésticas34.

A constatação de que trabalho doméstico – em seus formatos gratuito e remunerado – atua como peça estruturante da divisão sexual do trabalho é algo destacado. Sendo igualmente reflexionada a noção de colonialismo enquanto elemento modelador das atuais relações de gênero em nossa sociedade. Em grande medida, foram construídas, por parte das/os oradoras/es, análises interseccionais que abrangeram, sobretudo, os aspectos de gênero, raça e classe. De qualquer modo, mesmo aquelas não concentradas especificamente nessa ótica, frisaram a execução desse oficio como algo destinado às mulheres pobres e, em sua maioria, negras.

A força de trabalho é a única mercadoria que possui o trabalhador e a trabalhadora, a sua capacidade de trabalhar e produzir mercadorias. Assim, mesmo sendo fundamental para a sociedade, o trabalho doméstico, seja ele remunerado ou não, é interpretado como tarefa natural das mulheres e, por ser visto como inerente à condição de fêmea, invisibilizado pela sociedade [Cláudia Rejane de Barros Prates – CNDM, 3ª audiência pública] (CD, 2012, p. 12).

A título de retrospectiva histórica, porque a história não é algo que fica parado lá no canto, não é uma herança que reproduzimos automaticamente, o trabalho doméstico no Brasil, além do fato de ser um trabalho assentado nas relações desiguais entre homens e mulheres — ele foi construído “naturalmente” como trabalho feminino —, está historicamente indissociável do lugar construído para as mulheres negras na sociedade brasileira, ainda que na sociedade contemporânea haja um percentual de mulheres brancas que dele se ocupam [Ângela Maria de Lima Nascimento - Seppir, 1ª audiência pública] (CD, 2011, p. 11).

A herança cultural advinda do patriarcado passa por um processo de refinamento e redesenho, propiciando que suas práticas persistam nos dias atuais naturalizadas e reproduzidas cotidianamente. A partir desse entendimento, muito falas convergiram para a indicação desse sistema enquanto um legitimador direto da discriminação oficial dirigida às

34Devido à ponderação de que 92% das/os profissionais domésticas/os são mulheres, a maioria das/os

palestrantes referenciaram a categoria no feminino. Ressalto, mais uma vez, que também optei pela adoção desse procedimento.

trabalhadoras domésticas e indo mais além, indicando-o como um elemento compositor do arcabouço jurídico brasileiro.

Nós vivemos numa sociedade machista e patriarcal, portanto é considerado natural o trabalho doméstico ser invisibilizado. Por isso em nosso País as trabalhadoras domésticas ainda têm menos direitos que os demais trabalhadores. Como o trabalho doméstico, na visão dessa sociedade patriarcal e machista, é um trabalho de mulheres, pode-se pagar pouco por ele, pode-se pagar mal, e sem garantir todos os direitos [Rosane Silva – CUT, 4ª audiência pública] (CD, 2012b, p. 8).

O que está por trás disso? A verdade é que no Brasil, desde o começo da sua história, os afazeres domésticos sempre estiveram entregues às mãos das mulheres, uma herança cultural patriarcal que chega aos tempos modernos condicionando desigualdades incompatíveis com os novos caminhos democráticos que se vêm tentando construir [Comba Marques Porto – Juíza aposentada, 3ª audiência pública] (CD, 2012, p. 6).

Claramente, a compreensão da lógica de atribuição exclusiva das tarefas domésticas às mulheres é algo incontestável. Porém, o modo pelo qual tais atividades são praticadas e quem são as personagens executantes já é outra indagação. Nesse sentido, acredito ser importante retomar a discussão relativa às diferenciações existentes dentro da categoria mulheres (KOFES, 2001) a partir da problematização do “nós” e do “elas” trabalhadoras domésticas.

Dentro das audiências públicas, diferentes perspectivas dialogaram, o que facultou a expressão das posicionalidades das/os diversas/os atoras/es envolvidas/os. Por outro lado, a participação das trabalhadoras domésticas foi bem pontual, não a fala delas, obviamente, mas a presença quantitativa. Houve, sim, a atuação de representantes dos movimentos sociais ligados à causa e em defesas da categoria. Contudo, mesmo as parcerias às vezes deixam escorregar indícios da realidade concreta que marca o cotidiano de execução do trabalho doméstico pago. Considerando o atual cenário de divisão sexual do trabalho e a comparência de muitas mulheres na composição das mesas, cabe aqui uma reflexão: de que maneira as reponsabilidades com o doméstico são vivenciadas pelas mulheres ocupantes de um mesmo espaço de discussão? É inegável que a grande maioria das palestrantes se situa nesse quadro a partir da delegação das atividades domésticas. O intento não é recair no velho dilema a respeito de se contratar ou não uma trabalhadora doméstica, o objetivo não é esse. Porém é necessário visualizar em que medida as falas traduzem situações ambíguas de localização das diferentes mulheres que compõem o mesmo espaço social e que assim permanecerá caso não haja as devidas problematizações.

Será a empregada doméstica que assumirá o lugar na realização desse trabalho reprodutivo. Contudo, a questão de classe não está separada da questão de gênero, uma vez que as mulheres tratarão do tema conforme sua classe permitir. As mulheres da burguesia contratarão as mulheres pobres para assumirem em seu

lugar as maçantes tarefas do lar. Às mulheres pobres, que possuem baixa escolaridade, não resta outra alternativa a não ser vender sua força de trabalho, mesmo que sem o mínimo de direitos. De qualquer forma, a responsabilidade segue sendo feminina, segue sendo das mulheres [Cláudia Rejane de Barros Prates – CNDM, 3ª audiência pública] (CD, 2012, p. 13).

Se existe algo que nós do movimento sindical e principalmente nós mulheres estamos muito acostumadas a fazer é nos adequar, porque estamos sempre em luta e, às vezes, a luta pode acontecer num momento em que não estamos muito preparadas. A maioria de nós que estamos hoje neste debate conta com alguém que está em nossas residências cuidando da casa e dos nossos filhos, para podermos estar aqui lutando pelos direitos de outras pessoas [Cleonice Caetano Souza – Inspir, 4ª audiência pública] (CD, 2012b, p. 4/5).

Temos um déficit de creche muito forte no nosso País, porque, como as companheiras que me antecederam já disseram, a trabalhadora doméstica vai à casa de outra mulher — porque geralmente é na casa de outra mulher, que é quem contrata, já que esse trabalho doméstico é naturalizado para nós, mulheres; quando não conseguimos fazê-lo, pagamos a outra mulher para isso. Aí, essas mulheres vão à casa de outras mulheres, sem saber como vão ficar seus filhos [Rosane Silva – CUT, 4ª audiência pública] (CD, 2012b, p. 9).

Outra questão diz respeito ao papel dos homens dentro da manutenção dos construtos da divisão sexual do trabalho. Se existe a problemática da delegação por parte das mulheres, há de se questionar sobre os posicionamentos dos homens representantes políticos e debatedores de questões referentes a quase 7 milhões de trabalhadoras. E do mesmo modo, deve-se se perguntar quais são as suas perspectivas sobre a extensa carga de trabalho naturalizada como atributo feminino. Cabe dizer que a análise não gira exclusivamente sobre os homens participantes das audiências, mas em torno da representação social que determinadas concepções assumem.

Considero que houve poucas manifestações, por parte dos homens, em relação à temática. Não existindo, do mesmo modo, problematização do papel masculino dentro jogo de manutenção da divisão sexual do trabalho. Conforme já salientado, são os delineamentos presentes no trabalho doméstico não pago que constroem e delimitam a conformação do remunerado (BRITES, 2013). A fala do deputado Adrian é representativa do que está sendo discutido.

Eu me separei da minha mulher, casei-me de novo, e a colaboradora continua a mesma, ou seja, troquei de mulher, mas não troquei de colaboradora. Um dia ela ficou grávida, e eu precisei dar licença a ela. E foi aí que eu vi como é difícil a vida dos que têm um trabalho árduo, do homem público, de todas as pessoas que trabalham fora e como é importante a trabalhadora doméstica. (...) Um dia eu tive de ajudar a minha esposa nos serviços de casa, porque a nossa secretária estava de licença. No dia seguinte, não consegui dormir direito, porque eu fiquei com dor na coluna, dor em todo lugar. E nós, homens, Deputado Marçal, geralmente não damos o valor que deve ser dado ao trabalho doméstico. Ele não é para qualquer um, é um trabalho pesadíssimo [Adrian –CD, 4ª audiência pública] (CD, 2012b, p. 23).

Em síntese, está sendo frisada a ausência da problematização dos signos e das práticas que determinam a divisão sexual do trabalho pela maior parte dos participantes homens. O que não significa que esta constatação não seja também percebida nas falas das mulheres. Ainda que haja a forte consideração dos imperativos misóginos e machistas que determinam as estruturas do trabalho doméstico, os alicerces dessas fixações não são atingidos de maneira profunda. Afinal, verificar e conhecer não são o mesmo que desconstruir. De qualquer modo, não se trata de uma generalização, pois como dito em outras partes deste estudo, o intuito é captar, para além do que está posto, questões sociais que se fazem presentes na consolidação dos discursos analisados.