• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 CASAMENTO E TRABALHO

2.2 Divisão sexual do trabalho

O capitalismo introduziu, portanto, a clivagem entre produção e reprodução. Em outras palavras, o capitalismo inaugurou um novo modo de organização social, política e econômica da sociedade, demarcando as esferas do público e do privado, ou seja, separando espaço e tempo de produção e de reprodução. A separação dos agentes de produção e reprodução com base nos sexos e a sexualização dos espaços não data do capitalismo (Combes & Haicault, 1986).

Anteriormente ao modo de produção capitalista, e mesmo sob sua dominação, homens e mulheres participavam de modo desigual na produção e na reprodução. Inevitavelmente, essa realidade implica na comprovação da existência prévia de uma natural divisão sexual do trabalho. Em toda a parte, os homens foram designados à produção e as mulheres à reprodução, bem como foi atribuído um “valor” que distingue o trabalho masculino do trabalho feminino (Hirata & Kergoat, 2003; Combes & Haicault, 1986).

Created by eDocPrinter PDF Pro!!

44

Podemos observar, então, que a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo é um dos elementos organizadores da atribuição de hierarquia e valor que legitima o que seria um "verdadeiro trabalho", conferindo poder a quem o realiza e perpetuando as condições para a divisão e desigualdade do trabalho entre os sexos (Hirata & Kergoat, 2003).

Nesse sentido, produção tem mais valor que reprodução, embora ambas seja modalidades indissociáveis e interdependentes. São as modalidades de produção que determinam as modalidades de reprodução. A subordinação da reprodução à produção sustenta-se numa outra subordinação: a das mulheres aos homens (Hirata & Kergoat, 2003; Combes & Haicault, 1986). Cabe, então, perguntar: Qual a origem da subordinação feminina? A subordinação feminina se originou dos determinantes da biologia ou nos meandros da economia? No intuito de responder a essas questões, podemos aventar diversas teorias ou vieses distintos que tencionam explicar o status de inferioridade atribuído à mulher.

Principiamos por salientar que os determinantes da biologia e as funções sociais femininas — em particular, a reprodução, a maternidade e o cuidado dos filhos — se combinam para estimular as definições culturais da mulher que tendem a ser degradantes, ou melhor, parafraseando Beauvoir (1991), as tornou universalmente “o segundo sexo” (Rosaldo & Lamphere, 1979).

A conexão do sistema reprodutivo feminino com o papel doméstico da mulher serviu, então, para justificar sua inferioridade “natural”. Nesse sentido, Rosaldo (1979) assinala que a orientação doméstica da mulher é apreendida como um fator crítico na concepção de sua posição social. Não obstante, ressaltamos que a biologia impulsiona, mas não determina o comportamento dos sexos. O ser humano tem a capacidade de interpretar e adequar seu comportamento por meio da utilização de formas simbólicas como, por exemplo, a linguagem.

Ao mesmo tempo, os estudos marxistas apontam os fatores econômicos como determinantes para o status feminino. No manuscrito “A Ideologia Alemã”, redigido por Marx e Engels em 1846, o autor se deparou com a seguinte frase: “A primeira divisão do trabalho é a que se fez

entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”, e a essa acrescentou a idéia de que o

primeiro antagonismo de classes que apareceu na história diz respeito ao antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia. Historicamente, a oposição de classes remete à oposição entre homem e mulher, sendo a forma inicial da civilização onde a repressão e a opressão de uns justificam a manutenção do status quo de outros.

Segundo Engels (1985), na família individual monogâmica, o lar perdeu seu caráter social e se transformou em serviço privado. As mulheres converteram-se em criadas e foram despojadas

Created by eDocPrinter PDF Pro!!

45

da participação na produção social. O autor aponta o casamento monogâmico como uma relação que se estabeleceu a partir da escravização de um sexo pelo outro.

Nesse sentido, Engels (1985) denuncia o casamento e a família como instituições que reproduzem e reforçam a existência de condições desiguais entre o homem e a mulher nas sociedades ocidentais, a fim de manter a mulher em posição inferior na divisão sexual e social do trabalho, condicionando a dominação do masculino sobre o feminino.

Cumpre notar que a exclusão da mulher de esquemas culturais de transcendência e o seu aprisionamento pelos ditames da biologia permitiram a construção de uma imagem da mulher mais próxima da natureza e mais distante da cultura. A essa convenção arbitrária entre as funções femininas e a natureza, foi atribuído valor negativo (Ortner, 1979). Rosaldo e Lamphere, (1979) esclarecem o tema:

“[...] a facilidade de associação entre natureza não humana e feminina propicia um fundamento cultural lógico para a subordinação feminina: a biologia, o papel social e a personalidade feminina estimulam as culturas a definí-la como mais próxima da ‘natureza’ do que o homem e por isso subordinada, controlada e manipulada em prol dos objetivos ‘culturais’” (p.

26).

Vale dizer que a visão antropológica atual sustenta que a maioria e provavelmente todas as sociedades contemporâneas, seja qual for sua organização familiar ou o seu modo de subsistência, caracterizam-se por algum grau de domínio masculino. Tem-se conhecimento que nunca se ouviu falar de uma sociedade onde a mulher tivesse poder publicamente reconhecido e autoridade superior a do homem (Rosaldo & Lamphere, 1979). Assim, as autoras asseveram a questão:

“Em todos os lugares, vemos a mulher ser excluída de certas atividades econômicas e políticas decisivas; seus papéis como esposa e mãe são associadas a poderes e prerrogativas inferiores aos dos homens. Pode-se dizer, então, que em todas as sociedades contemporâneas, de alguma forma, há o domínio masculino, e embora em grau e expressão a subordinação feminina varie muito, a desigualdade dos sexos, hoje em dia, é fato universal na vida social” (Rosaldo & Lamphere, 1979, p.19).

De fato, toda sociedade conhecida adota e elabora alguma diferença entre os sexos. Mas, o que surpreende é que universalmente as atividades exercidas pelos homens são sempre mais valorizadas culturalmente do que as exercidas pelas mulheres (Rosaldo & Lamphere, 1979).

A diferença nas avaliações culturais referentes às atividades exercidas pelo homem e pela mulher estabelece-se como um fenômeno universal. De tal modo que, produção masculina

Created by eDocPrinter PDF Pro!!

46

“vale” mais que produção feminina, mesmo quando ambas são análogas. Assim, é o valor que distingue o trabalho masculino do trabalho feminino (Hirata & Kergoat, 2003). Como nos lembra Hirata e Kergoat (2003):

“Esse problema do ‘valor’ do trabalho – termo empregado aqui no sentido antropológico e ético, não no sentido econômico – [...] ele induz a uma hierarquia social. Valor e princípio de hierarquia sob aparências múltiplas, permanecem imutáveis: o trabalho de um homem pesa mais do que o trabalho de uma mulher. E quem diz hierarquia diz relação social. Mil provas existem para quem quiser ver, de que essa opressão das mulheres pelos homens no trabalho é onipresente” (p.112).

A mesma hierarquia que organiza pelo valor as diferenças entre trabalhos realizados por homens e por mulheres, possibilitou o não reconhecimento dos trabalhos que ocorrem na esfera doméstica e estão relacionados ao mundo privado. Os afazeres domésticos não são considerados trabalhos, pois tratam "apenas" de atividades de manutenção das condições para a realização do "legítimo trabalho"; este, sim, verdadeiramente produtivo, posto que se consubstancia em produtos com valor monetário. Além disso, esse trabalho é pago por meio de salário e realizado no domínio público.

O ocultamento das tarefas domésticas não parece ser unicamente uma discriminação contra o trabalho realizado dentro do lar. Essencialmente, diz respeito à tradição e aos costumes da sociedade em relação ao papel feminino, ao qual secularmente foi atribuído o exercício dessas atividades. Essa asserção remete-nos à invisibilidade histórica do trabalho doméstico feminino. Tanto que, apesar da entrada das mulheres no mercado de trabalho nos "setores produtivos", seu trabalho e sua identidade como trabalhadoras continuam a ser de mulheres que, de certa forma, "não pertencem a esse lugar". Assim, mantém-se a dicotomia clássica: aos homens, o trabalho assalariado – e quando as mulheres inserem-se positivamente nesse espaço, isto continua a ser considerado como excepcional – às mulheres, a família. Seu lugar legítimo permanece referido ao da casa, ao da maternidade e ao do cuidar dos outros (Brito & Oliveira, 1997).

Atualmente, muitos estudos asseveram que o fundamento da subordinação da mulher está para além da exclusão do mundo produtivo, pois, mesmo quando inseridas no mercado de trabalho, as mulheres ocupam espaços específicos que, na maioria das vezes, se caracterizam pela inferioridade hierárquica, pelos salários menores e por atividades que privilegiam suas capacidades “inatas”. Portanto, ainda hoje, a força de trabalho é sexualmente segredada. Na verdade, o mundo do trabalho somente acentuou a divisão sexual do trabalho (Bruschini, 2000).

A base da desigualdade entre o homem e a mulher fundamenta-se no enraizamento ideológico do patriarcalismo. Como modo de organização e dominação social, o patriarcado

Created by eDocPrinter PDF Pro!!

47

fundou a divisão sexual do trabalho sobre a qual repousa a subordinação da mulher ao homem e edificou um estado de submissão das mulheres com a divisão sexual do trabalho, inscrevendo-se fortemente no mundo social, especialmente nas relações de dominação e exploração das mulheres pelos homens (Lobo, 1992; Combes & Haicault, 1986).

O sistema patriarcal circunscreveu homens e mulheres em estereótipos e funções que pertencem à ordem da cultura, fazendo parte também de processos e interesses históricos e econômicos (Diniz & Coelho, 2003; Lobo, 1992; Bruschini & Rosemberg, 1982). Na medida em que o sistema patriarcal restabeleceu relações de determinação estrutural que normatizaram as diferenças entre os sexos, também omitiu os conteúdos de construção cultural da divisão sexual do trabalho (Lobo, 1992). Scott (1994) ressalta que:

“A história da separação entre o lar e o trabalho seleciona e organiza a informação de modo a obter um certo efeito, um efeito que sublinha vincadamente diferenças biológicas e funcionais entre homens e mulheres, legitimando e institucionalizando, assim, essas diferenças como base para a organização social. Esta interpretação da história do trabalho feminino alimentou e contribuiu para a opinião médica, científica, política e moral a que se tem chamado, com variantes, “ideologia da domesticidade”, ou “doutrina das esferas separadas” (p.444).

Em linhas gerais, as esferas públicas e privadas são pensadas como equivalentes aos sexos. A clivagem entre o público e o privado denota a existência de uma fronteira: de um lado, a intimidade do lar, o castelo do afeto e do coração; de outro lado, o território do público, do manifesto e do político.

Documentos relacionados