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Capítulo VII Difusão do newtonianismo: a Verdadeira Theorica das Mares

2. Divulgação e objectivos

O autor refere que escreveu a Theorica com o objectivo de tornar a temática abordada “intelligivel a qualquer pessoa, quanto pode admitir a materia” (Sarmento, 1737:v), utilizando uma “expressao diffusa, e copiosa” (Sarmento, 1737:v) e acrescentando um “mayor numero de Figuras do que as que até agora se tem feito uso” (Sarmento: 1737:vi). Isso significa que a obra se destinava aos leitores letrados com os conhecimentos matemáticos necessários para entender os argumentos utilizados na explicação do fenómeno das marés, sendo, por isso, inacessível ao leitor comum. Deve ser notado que a mesma estratégia foi utilizada em outros livros, como na

Materia Medica (1735), a sua obra médica mais importante, que, como vimos, foi

136 propositadamente escrita numa linguagem técnica de modo a torná-la inacessível ao leitor comum (Sarmento, 1758:xlviii).

Na época, a larga maioria das elites intelectuais portuguesas sustentava o modelo geocêntrico7, considerando o modelo heliocêntrico como herético, seguindo as indicações emanadas pela Santa Sé, na sequência da proibição de De Revolutionibus Orbis (1543)8, a célebre obra de Nicolau Copérnico. Devido ao facto de a teoria das marés se enquadrar no contexto do sistema newtoniano do mundo que considerava a teoria heliocêntrica, Sarmento sentiu a necessidade de salientar que a teoria apresentada não dependia de qual o modelo adoptado, provavelmente para evitar possíveis problemas com a Inquisição9. O seguinte excerto dá conta desse aspecto:

E, ainda que no seguinte tratado vamos sempre suppondo o movimento da Terra, tanto por seguirmos o estillo do Autor, que commentamos, como por estar como matéria assentada entre todos os Mathematicos de França, Italia, Alemanha, Inglaterra, &c. nem por isso fazemos mençam delle, como essencial para a Theorica seguinte (Sarmento, 1737:vii)

Como se pode constatar, é referido explicitamente que a escolha do modelo não era importante para a explicação do fenómeno das marés, deixando à consideração do leitor a sua decisão quanto ao modelo a seguir. O autor refere ter assistido a sessões de um curso de filosofia experimental ministrado pelo experimentador da Royal Society, John Theophilus Desaguliers, de quem era “bom amigo”, nas quais era utilizada uma máquina para explicar o fenómeno das marés, sendo salientado que “as demonstraçoens, que se fazem com dita Maquina, tem lugar, e

7As referências ao sistema coperniciano em obras escritas em português na primeira metade do século XVIII são raras. Em 1734, D. Luís Caetano, referiu o sistema coperniciano na sua obra Geografia

Historica de todos os Estados Soberanos de Europa, tendo o cuidado de enfatizar que “a explicaçaõ, que aqui fazemos deste Systema, he ó tomando-o como hypothesi, e sogeitandonos em tudo às decisoens da Igreja” (p. 140). O autor alude nas páginas seguintes aos argumentos contra a teoria coperniciana, sendo dada alguma ênfase às respostas dos copernicianos contra esses argumentos. Esta é uma das primeiras obras onde estes assuntos são abordados com algum detalhe, ainda que apenas no plano especulativo. Devido ao facto de a teoria ser considerada como herética havia o receio de que a Inquisição pusesse entraves, o que provavelmente explica o facto de o modelo coperniciano ter demorado ainda alguns anos a ser aceite. Ainda em 1751, nas aulas da congregação do Oratório, era ensinado o sistema geo- heliocêntrico de Tycho Brahe, segundo o qual o Sol e a Lua rodam em torno da Terra, rodando os restantes planetas em torno do Sol e que era um compromisso entre os modelos geocêntrico e heliocêntrico.

8 Na BACL, na colecção dos livros que pertenceram à Biblioteca do Convento de Jesus, existe uma primeira edição da obra de Copérnico, evidenciando o facto de a obra ser perfeitamente conhecida dos jesuítas portugueses logo após a sua publicação. A proibição da Igreja e a inclusão da obra no Index

Expurgatorio terão sido determinantes para que em meados do século XVIII o heliocentrismo não pudesse ainda ser referido pelos autores portugueses sem que houvesse a possibilidade de problemas com a Inquisição.

9 A Inquisição portuguesa demorou muito tempo a adaptar-se às novas regras de censura de livros. Mesmo depois de o papa Bento XIV ter permitido a leitura da obra de Copérnico, os censores da Inquisição continuavam a seguir as regras definidas anteriormente.

137 confirmam a seguinte Theorica, quer seja o Sol que se mova, quer a Terra “ (Sarmento: 1737). Mesmo que, a seguir, critique o facto de apenas nos países ibéricos existirem entraves à difusão da filosofia newtoniana (Sarmento, 1737: viii), salientando a influência das ideias de Aristóteles e de Descartes, é evidente a sua preocupação em não afrontar a deliberação emanada pela Santa Sé por decreto papal10.

No prólogo ao leitor é referido que a obra foi escrita em português em vez de utilizar “huma lingua mais geral” (Sarmento, 1737:Prologo ao Leytor11), devido ao seu amor pela pátria.

Assim, é salientado o facto de a Theorica se tratar de uma obra ímpar, dado ser a primeira escrita na Europa em idioma nacional a abordar a explicação do fenómeno das marés de acordo com as ideias de Newton.

O livro de Sarmento distingue-se de outras obras newtonianas publicadas na Europa na mesma altura. Um ano depois da edição da Theorica, Francesco Algarotti (1712-1764) publicou a sua obra Newtonianismo para as Senhoras (1738), onde as ideias de Newton são apresentadas de uma forma simplificada, adequada para leitores com poucos conhecimentos de matemática. A obra foi escrita na forma de diálogo, seguindo estratégias narrativas muito vulgares na época12, tendo alcançado um sucesso assinalável, não só em Itália13 mas também em outros países europeus, incluindo a Inglaterra14. No mesmo ano, Voltaire (1694-1778) publicou os Elementos

da Filosofia Newtoniana (1738), tendo o livro alcançado um impacto significativo entre o público leitor, tendo também sido traduzida para outros idiomas. Em qualquer um dos casos, o facto de os autores terem adoptado um estilo acessível ao leitor comum teve uma implicação directa no sucesso alcançado pelas duas obras, ao contrário do que sucedeu com a Theorica. A Theorica teve apenas uma edição, tendo provavelmente sido impressos entre duzentos e duzentos e cinquenta exemplares. Não existem indicações quanto ao seu impressor, sendo possível que tenha sido o mesmo da Materia Medica, já que foram impressas com um, ou dois anos, de diferença. Apesar de ter sido impressa em 1737, a Theorica só foi anunciada na Gazeta

10 Só após a confirmação da previsão relativa ao avistamento do cometa Halley, se tornou possível aos autores portugueses aludirem ao modelo heliocêntrico – para mais informações sobre a importância das obras publicadas sobre cometas, consultar, Pinto, 2007.

11 Curiosamente, e ao contrário de outras obras de Sarmento, a Theorica contem uma Dedicatória e um Prólogo ao Leitor. Em qualquer uma das partes podem ser encontradas referências ao modo como a obra foi escrita e quais os objectivos do autor.

12 A obra Conversas sobre a Pluralidade dos Mundos (1686), escrita por Bernard de Fontenelle (1657 – 1757), uma das primeiras obras onde se abordam temáticas científicas destinadas ao público em geral também está escrita sob a forma de diálogo. A obra alcançou um sucesso assinalável, sendo uma das formas pelas quais o cartesianismo se difundiu entre as classes letradas europeias (Terrall, 2000). O padre Teodoro de Almeida adoptou a mesma estratégia na escrita da Recreação Filosofica (1751), a obra portuguesa de filosofia natural de maior sucesso do século XVIII.

13 A primeira edição da obra de Algarotti foi proibida pela Inquisição. Esse facto não teve qualquer tipo de implicação no sucesso da obra. As edições posteriores foram retiradas do Index Exporgatorium. 14 Um ano após a publicação da obra em italiano já se encontrava disponível no mercado inglês uma tradução.

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de Lisboa de 28 de Dezembro de 1741, desconhecendo-se as razões que motivaram um hiato tão longo entre a impressão e a sua comercialização.

A obra é relativamente rara, tendo sobrevivido um número reduzido de exemplares15. Ainda assim, esteve disponível no mercado durante muitos anos, até meados do século XIX16.

Ainda no prólogo ao leitor, o autor faz a apologia por a Theorica ter sido escrita por um médico, isto é, por alguém que poderia não possuir os conhecimentos necessários para a poder apresentar com a qualidade necessária. Na sua opinião, contudo, a explicação do fenómeno das marés era do interesse dos médicos, dado o facto de as doenças estarem sujeitas às mesmas forças que intervêm nas marés. Como exemplo desta afirmação, são referidas as “furias dos Maniacos, que repetem com mayor vehemencia na lua nova, e na lua cheia”. É indicado que a influência da Lua e do Sol nas doenças humanas era conhecida desde a Antiguidade, tendo sido Newton o primeiro a explicar como actuam essas forças. O leitor é exortado a ler uma obra de Richard Mead intitulada De Imperio Solis, ac Lunae in Corpora Humana, et Morbis inde

oriundis (Sobre a Influência do Sol e da Lua nos Corpos Humanos e das Doenças provocadas)

onde se considera a existência de uma relação directa entre as forças exercidas pela Lua e pelo Sol e o aparecimento de algumas doenças. Mead foi um dos médicos da Royal Society com quem Sarmento terá estabelecido contacto, devendo ser salientado que o médico inglês gozava de enorme prestígio entre a classe médica inglesa.

No final do prólogo dedicado ao leitor, é mencionada a obra Elementos de Geometria e

Trigonometria Plana (1737) do Padre jesuíta Manoel de Campos. Na opinião do autor da

Theorica, esta obra podia ser considerada como uma introdução à filosofia newtoniana, sendo a sua edição reveladora de que algo estaria a mudar entre as elites portuguesas. Tendo em conta que o livro de Campos foi publicada em 1737, isto é, no ano em que a Theorica terá sido impressa, isso pode significar que o Prólogo ao leitor deverá ter sido escrito após a impressão do corpo principal da obra. Por outro lado, esta parte do livro não tem numeração das páginas, o que corrobora essa hipótese17.

15No seu artigo “Sobre a Aceitação da Filosofia Newtoniana em Portugal”, Rómulo de Carvalho refere que apenas teve contacto com quatro ou cinco exemplares, mas é certo que o número real é maior. Da pesquisa realizada existem em Portugal pelo menos seis exemplares – dois na BN, dois na BACL, um na Biblioteca da Universidade de Coimbra e outro na Biblioteca da Universidade de Évora. No estrangeiro existem mais exemplares, nomeadamente em Inglaterra.

16 Num catálogo de um livreiro lisboeta datado de 1819, (Cf. ANTT, RMC, Cx. 494, nº 45) a obra é mencionada, quase um século depois de ter sido editada.

17 Nesta altura, os livros eram muitas vezes comprados sem serem encadernados, sendo relativamente fácil acrescentar algumas páginas aos livros já impressos.

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